quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Palavras recolhidas




Escrever é uma passagem pela rua do desvio do destino como pensar é uma passagem pela mesma rua da alma. Nada obriga a uma coisa ou a outra.  Que o mundo se vislumbre por palavras e que as searas se agitem, qual a diferença fundamental? Se é permitida à consciência o todo que é o todo que percepcionamos e que se bebam as águas ardentes enquanto o sol ferve e o mar se agita, qual a diferença? Que diferença há no mundo ou fica no mundo com as palavras brotando em fonte? Que sustentam ou inventam elas que já não esteja sustentado ou inventado? Que diferença há entre nós e as palavras? Ou semelhança já que brotam da fonte que está antes de nós sequer existirmos... Há um universo ritual nas palavras que em determinadas primaveras permitem a sua recolha, como orvalhos... sem que haja diferença entre o alto e o baixo. Com que instantes, eles, os instantes,  únicos, se nos acercam elas de nós? Há madressilvas nos campos e outras tantas palavras, e há as águias que tudo contemplam e tendem a voar sobre os vales para se sentirem ainda mais altas... como os poetas...
Todo o mundo é uma percepção possível de criação, ou assim julgamos nós. Julgamos que criamos mas limitamo-nos, no nomadismo que é da alma, a recolher as florestas de encantos que se oferecem à nossa passagem. Assintomáticos num a-priori que desconhecemos possuímos todos os sintomas da graciosa doença que é estar vivo... as palavras são um caminho como qualquer outro... só que mais vivo pois obrigam ao silêncio e a uma consciência em tendente desmascaramento das raízes e, em simultâneo, perpetuando os troncos das árvores no seu alongamento. A escrita é um alongamento do mundo, a árvore que tende a crescer até ao infinito... que diferença há, nesta anomalia totalmente inconsistente com a normalidade da presença... Ah, mas como?! Se as palavras se desviam do tempo e o aprisionam e o negando na forma e na virtude o transmutam, deveras... e nessa negação se tornam nele... 
Autenticamente, nem palavras há. Autenticamente nem são necessárias  sequer, autenticamente nem deveríamos falar, nem tornar as palavras coisas. Em virtude das características do ser, só lhe resta estar presente para que seja... o resto, é uma anomalia, uns chamam-lhe missão, outros, castigo... mas sempre algo que transborda do ser que não necessita de palavras por estar em todas elas... quase como num mito antes de ser escrito, antes de ser dito, antes de ser actualizado no jornal da mera existência. Só tomamos a consciência do pré-existente que somos diante do ser outro que encontramos. É no espaço vazio, entre um e outro, que encontramos o ser que somos e todas as palavras possíveis antes de as serem. E todas as palavras que deixámos existir antes dessa consciência adquirem o significado de uma história lida sob uma outra luz e sob essa luz, tudo o que acrescentámos ao mundo, retirámos de nós... desse núcleo vivo, algures situado tão acima ou tão adentro que se torna invisível e indizível ao todo que nos foi dado. E nem a explicação pelo mito o traduz na plenitude. Um mito é parte de uma interrogação maior.


(Cynthia Guimarães Taveira)

Sem comentários:

Enviar um comentário