terça-feira, 24 de setembro de 2019
Ela e eles
Na realidade, morro de tédio. Sem contar com a paisagem, os animais, umas quatro pessoas, e o gosto de estudar e de criar, tudo o resto é tedio. Ainda assim, as coisas enumeradas acima muitas pessoas não as têm e, ainda assim, também, são capazes de não sentir tédio. A última que consegui fazer foi estar a discutir com uma vizinha que conseguiu dizer mais palavrões por minuto do que uma arma automática e no meio daquilo estava a olhar para ela enquanto ela soltava os demónios que utilizaram a minha pessoa como bode expiatório, e sentir que estava a morrer de tédio, que nada daquilo era uma surpresa embora na aparência o fosse. Sabia que dentro dela estava aquele chorrilho interminável de raiva, inveja, amargura e dor e que bastava dizer-lhe uma frase simples, sem ofensas nem acusações para ela desatar naquilo. Olhei para ela, que berrava, ameaça e insultava e tive a imagem da monotonia, como se já viesse vivido aquilo milhares de vezes e fosse verdadeiramente inútil aquilo que ela estava para ali a dizer. Um tédio sem fim, como se ela concentrasse a imagem que tenho do mundo: um mundo amargo, raivoso, invejoso e cheio de dor. O mundo dos seres humanos actuais. A grande maioria deles vertidos em gordura, tatuagens e em injustiça. A franqueza pura de se odiar o belo, o bem, a sabedoria. A imensa História que estava por detrás daquilo. Como concentrou toda a civilização abrutalhada nela agora reporto-lhe todas as injustiças, arrumo-as no vasto corpo dela, que não pára de parir, pior do que os animais porque nem cria os filhos que vai tendo, é inerte porque nunca se mexe para nada, está sempre parado e preparado para mais uma tatuagem que lhe diga que é única e especial. Mas não é. Ela é o tédio desta humanidade imensa atordoada por estes tempos do fim. Ela é o fim a desfraldar as últimas sombras, enquanto eu sou o princípio do desdobrar da luz. E não temos nada em comum. Somos apenas dois tempos obrigados cruzarem-se na rua pela lei da cadeia temporal que diz que quando uma coisa está a morrer, outra está a nascer. Ela é o tédio que observo e que nada tem a ver comigo excepto ser obrigada a senti-lo. Eu sou a fonte de um mundo diferente e novo que pressinto.
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