sábado, 14 de setembro de 2019

As palavras coerentes





A menos que sejam textos legais (e mesmo assim), não há texto que seja verdadeiramente sério, nem que seja apenas pelo facto de ser interpretado. Todo o rio da literatura e seus afluentes são paródias, mentiras e denúncias das censuras de poderem nunca terem sido escritos. Mas até a realidade pode estar nessa classificação se entrarmos pelos corredores de Maya. Há muito que não ligo ao que vou escrevendo. Nada é para ser levado muito a sério. A escrita não passa de uma vertigem momentânea, duma bebedeira requintada, de um teatro de sombras a desvanecer-se. Os livros não nos mudam, nós é que mudamos os livros e pintamo-los com a cor mais bonita. René Guénon chama a esses tipos de coisas "suportes". São iluminados pela nossa própria chama. A chama que trazemos no sangue e na memória. Porque aquilo que existe é sangue e memória, a parte mais profunda e íntima da matéria que nos constituí e com a qual imprimimos a realidade que nos parece ser a realidade. As empatias são aproximações de memórias e das chamas. O Amor só o tenho por Portugal quando está cheio de Deus. Quando não está, apaga-se e dilui-se no Atlântico. Foi para isso que nos deram o Atlântico. Para ver o sol a ser engolido pelo mar à moda egípcia. Para termos um culto solar só nosso. Agora quando se põem a levar as palavras muito a sério parecem donas de casa desesperadas à procura da arrumação perfeita. É a parte pior das mulheres quando estão doidas. Na verdade tenho visto vultos a levarem as mãos à cabeça com as palavras. Não lhes vejo os rostos mas ouço-lhes os gritos na câmara escura onde se vê tudo ao contrário. Quando num texto me esqueço de ser acessível a quem não lê um livro por ano, ouço guinchos de porcos antes da matança. Quando sou acessível demais ouço os vultos intelectuais a bufar como os touros numa pega. Deve ser o seu lado mais popularucho que vem ao de cima, como alguém que nasceu nas barracas e que agora não consegue ter um pêlo de um gato dentro casa mas ao contrário. Se as palavras fossem para ser levadas a sério eram cumpridas e compridas, e muito, porque a vida flui como um rio. Tinham de ser do tamanho do rio que nunca se sabe bem onde começa e onde acaba. Assim, quando as palavras começam a ser levadas muito a sério tornam-se em tanques de rega com microorganismos verdes a boiar, num verde putrefacto. Dizer que se entra na mente de um escritor porque se lê o que escreve é recusar-lhe o anjo escritor. Não admira que o anjo pareça inútil e que Deus seja grande. Como um rio. Já me cansei de afirmações definitivas e não há nada mais incoerente do que um ponto de exclamação. A coerência na escrita é o autismo de um rei que vai sempre nú. Quando as coisas se tornam muito coerentes torna-se evidente que não podemos contar com elas. A minha linhagem não permite coerência alguma. O meu avó comunista que exercia o capitalismo não o deixa. Pulsa no sangue e na chama, às vezes às direitas, outras, por causa da câmara escura, ao contrário. Se quiser coerência tenho de ir às memórias e aos olhos do céu. Vou para lá a dançar rap, e a batucar, com Mozart e Vivaldi em pano de fundo... Apanhei uma gripe que não passa. A cada espirro expulso um intelectual. E até o povo vai, a voar pelo ar, de vez em quando, quando me vem com a conversa da "dignidade" e da "honra" que caem ao primeiro palavrão pesado que solta enfurecido quando as coisas não lhe vão de feição. Contemplo-os a todos ora a direito, ora de pernas para o ar conforme me apetece. Depois descrevo o que vejo despreocupadamente. Aí de mim ter o mundo às costas. Até porque o fardo nunca se sabe se é esférico ou cúbico. Depende dos dias e da coerência em falsete.

Sem comentários:

Enviar um comentário