quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Mármore quente


(Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)

Ontem estive a ver um documentário sobre a escritora, suposta escritora, Elena Ferrante. Nunca li nada dela mas os seus leitores são apaixonados pela sua obra, dizem que é muito profunda e original. Aquilo que me chamou mais a atenção, para além da descrição da sua literatura, foi o facto de ninguém saber quem ela é. Se é homem, se é mulher. Quem é? "Ela" resolveu fazer uma separação radical relativamente à imagem de si própria e o que escreve. Dizia um escritor que assim permanecia afastada do mundo literário bafiento italiano. Achei graça ao termo bafiento. O cheiro a bafio é quase putrefacto. O mundo literário terá de ser putrefacto? Todos os circos, mais tarde ou mais cedo, se decompõem. Hoje mais depressa do que ontem por causa do marketing, ou seja e em português, de todos os mecanismos inerentes à publicidade. Passaram a existir "espaços" de apresentação das obras. O cinema tem desculpa, mas até os teatros são uma espécie de casa. Os "espaços" de apresentação são uma espécie de terra de ninguém. Desertos à espera de pilhas de livros, ou de cocktails ou das duas coisas. Nada é verdadeiramente pessoal porque os "espaços" são sempre de alguém e não de quem apresenta o que tem de apresentar. Há algo que estranho nisto tudo. O que me aprazia era mesmo dar prazer aos outros e isso no gelo dos "espaços" d'hoje, até os virtuais é quase impossível. Tenho saudades de qualquer coisa que não sei bem o que é. É como se não me identificasse com nada. O termo bafiento faz-me lembrar o tédio e a falta de entusiasmo que parece propagar-se como uma onda maligna. 
Que se pode dizer à vista deste firmamento de olhares tão vazios e cansados? Talvez seja o peso da história e talvez a história não me diga nada. Talvez aquilo que faz mais sentido é a saudade desse céu. Tão longe do bafio. Imagino sempre uma época e um espaço tão diferentes disto tudo. Tudo claro, luminoso, florestas leves, nuvens com cores pastel, terraços e colunas de mármore quente, cortinas muito longas ao vento, vestes quase transparentes, e sobretudo essa capacidade de voar, e essa capacidade de ser uma deusa ou um deus qualquer numa golfada de imortalidade, um respirar sem tensão, a pura alegria. Quando se imagina assim um mundo o presente pesa como chumbo. Às vezes penso que a minha vida é uma concessão ao absurdo total e que mal tenho espaço para imaginar. Não há forma de achar qualquer piada à densidade da matéria. Com ela vem sempre a dor. O bafio. O tédio. Sinto que vim doutro sítio como um astronauta primordial e que caí na sopa do Kali Yuga. Depois vieram dizer-me, os poetas sobretudo, porque quem não é poeta não sabe dizer coisas desse género, que havia um outro Portugal. Fiquei suspensa entre o "Pomar das Laranjeiras" dos Madredeus e a Atlântida. Na verdade, não sei para onde me virar. Depois o meu anjo ou os meus anjos ainda me vieram com uma conversa muito esquisita sobre a "linhagem", ainda pior fiquei. Isto da saudade e das saudades não dá alegria a ninguém. Alegria tenho-a quando não tenho saudades nem saudade de coisa nenhuma porque o meu coração está cheio de colunas de mármore quente e de pomares com laranjas, os pomos d'oiro. Na realidade estas realidades são para mim muito mais importantes que todas as realidades do bafio e do tédio. Desenvolvi uma espécie de tolerância cínica a esta época. No fundo, bem lá no fundo, poucas coisas me interessam nela. A natureza é o que se mantém ainda que meio manca por entre tubos de escape, edifícios horrendos e pessoas que não sabem "que alma têm", um tédio bafiento. Sinto que vim projectada de um futuro qualquer sem qualquer tipo de literatura e de qualquer "meio" literário. Podemos ser sempre caridosos e ter pena das pessoas e desejar para elas o melhor. Mas o melhor para elas, sei lá o que é. Só lhes sei falar desta suspensão entre colunas e árvores de fruto e da Luz. O melhor para as pessoas pode ser irem ao psiquiatra, sentirem-se úteis ou enriquecerem ou terem simplesmente saúde. Não faço ideia de como praticar a caridade. Quando a pratico ela acaba por ter uma utilidade momentânea, quando não se vira contra mim o que também acontece. A caridade não leva ninguém para esse mundo onde somos deuses, e o fogo arde em tocha no alto das colunas. Ninguém voa para lá. Ninguém o vê. As pessoas estão cada vez mais práticas e angustiadas por excesso de pragmatismo. O bafio não existe só no mundo literário e cultural, e esotérico e filosófico. O bafio está dentro das pessoas que andam exaustas e longe de si próprias. Chegar ao ponto de ter de separar a obra do escritor de forma tão radical mostra bem o quão longe estamos das casas uns dos outros e ainda muito mais dessas colunas e avarandados feitos de mármore quente, sobre o céu e sobre as florestas. E da doçura. O quão longe estamos dessas vestes tão leves e do não-tempo em que ainda assim as transparências esvoaçam porque a brisa é morna e não há diferença entre ela e nós, tal como para Elias não havia diferença entre ela e Deus.

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