quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Rosalina, o puzzle e o público


Rosalina trabalhava lá em casa. Vinha quatro vezes por semana e limpava, lavava, cozinhava. Menina e moça tive a época dos puzzles com mil, duas mil peças que deixava meio feito, num tabuleiro, para ir para as aulas. Rosalina, por duas vezes, nos nossos desencontros de horários, desfez o puzzle e arrumou-o na caixa em conjunto com as peças soltas já divididas por cores. Rosalina não fazia a mínima ideia do que era um puzzle e obrigou-me a recomeçar até a conseguir ver e explicar-lhe que um puzzle era meio desarrumado com vista à arrumação. O público creio ser assim. Pula de evento em evento, de palestra em palestra, de curso em curso e não faz ideia do que é um puzzle e é por isso que no fim, não só nunca faz perguntas, como se dirige ao "centro" com palavras amigas divididas entre o "gostei muito" e o "muito interessante".
O "muito interessante" é o equivalente a dizer "tão giro, já esqueci". São raros os elementos do público que se deram contam da existência de um puzzle. Frequentam estas actividades como o Jet Set frequenta festas. Andam à procura deles próprios nas actividades dos outros. É o que se chama a verdadeira especulação. O público é já por si mesmo uma massa acéfala e quando se senta para "assistir" essa característica parece ficar ainda mais em evidência, sobretudo quando não há perguntas a fazer. Não há perguntas, na maioria das vezes, porque não há um passado de estudo e quando não há futuro, também não há perguntas. Porque o puzzle é uma pergunta. O facto de não haver perguntas também é sintoma de barriga cheia: "Gostei muito dessa refeição que serviu. Estive aqui passivamente a comer o que Vossa Excelência, ser perfeito, me deu para a refeição". Quando é este o caso estamos perante um ser perfeito que dá a refeição ao ser imperfeito que a devora. É a chamada animalidade intelectual, semelhante à selva e aí também não há puzzle nenhum porque o puzzle já vem resolvido. A selva e a ditadura são uma e a mesma coisa, a intelectualidade é a máscara do acto.
Diz o povo "Quem sabe faz, quem não sabe, ensina". A noção de puzzle é o primeiro acto em direcção à sabedoria. Depois há que o resolver. Um puzzle não é "muito interessante", nem algo que se coma  e de que se diga "gostei muito". Um puzzle é um verdadeiro problema que traz "angústia para o jantar" e ninguém quer jantar angústia. O olhar baço do público nunca é angustiado. Ou dorme ou está feliz como se estivesse a ouvir alguém cantar e adormecesse ao fazê-lo. Quando o ensino é espectáculo, então, já é uma prática, um rito. Porque a arte é um rito e, num rito, todos participam ou então estão fora dele e, se participam, já estão a fazer qualquer coisa, a resolver um puzzle por exemplo e não vão olhar para si próprios e dizer "muito interessante" e "gostei muito" porque estão esquecidos de si (um dos propósitos do rito). Foi assim que o erro da Rosalina chamou a atenção para algo maior. A amêndoa mística é deliciosa.

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