sábado, 5 de outubro de 2019

A gruta


Ia a subir a rua e a pensar: há pessoas que não acreditam no transcendente-transcendente, com ifen, porque se forem inteligentes percebem facilmente que há coisas que as transcendem porque se assim não fosse, sabiam tudo. Por isso, acreditam, mesmo que não o digam a si próprios (o que se diz aos outros é cada vez menos importante), no transcendente. Aquilo em que não acreditam é no transcendente-transcendente, numa sobrenaturalidade. Nascem, crescem e vivem como aqueles que acreditam nela, se a vida for assim tão redutora quanto isso. E pensei que no meu caso (o caso dos outros é com os outros), mesmo que não quisesse, teria mesmo que acreditar no transcendente-transcendente, porque, então sim, estaria a ser completamente irracional se não o fizesse. É a evidência de um conhecimento que me é superior que me leva a ser racional quanto a isso. A clarividência de qualquer pessoa não é um caminho para o encontro com os outros é, na maioria dos casos, o percurso para a mais-do-que-consciência da distância que nos separa dos outros. Um encontro existe sempre entre, pelo menos, dois seres, duas coisas. O facto de o "mais" perceber e conter em si o "menos" não é, em si, um encontro porque o menos não se dá conta do mais e daí que haja, sim, uma distância cada vez maior. A reciprocidade nada têm a ver com a reacção a um estímulo. O que existe é a aceitação de que as coisas são assim. Qualquer pessoa hoje que leia meia dúzia de coisas é levada a pensar que foi convidada para o baile, que pode e sabe dançar. Ora a dança é das poucas actividades humanas que requer reciprocidade, até porque o baile é sempre entre deuses. Em castelhano, "hostia" quer dizer "murro", "estalo" e asneiras bem fortes. Dou este exemplo porque o resultado de um baile entre "gente que não sabe dançar" consegue ser ibérico nas potencialidades que a palavra "hóstia" contém. E a Península Ibérica é constituída por dois países. O baile acaba por receber crentes no transcendente que não sabem que são, por crentes no transcente que sabem que o são, por crentes no transcendente-transcendente que não sabem que o são e por crentes no transcendente-transcendente que sabem que o são. Já não é um baile, é um concerto do Tony Carreira... Onde todos vão lá parar, quer queiram quer não. Raros são na verdade os encontros e quando insistem nessa coisa do "amor ao próximo", numa espécie de caridade (dizem que é o outro nome do amor, mas não é, é apenas a sua parte mais baixa) esquecem-se de que o amor assim é o mais passageiro que existe, até muito mais do que a paixão que está muito mais unida ao Amor do que aparenta. Quando cheguei ao cimo da rua, já não queria saber destes pensamentos para nada. Já estavam embutidos na minha alma há tanto tempo. O tempo que levei a subir a rua. Como aquilo que dizemos aos outros tem cada vez menos importância, aquilo, pela lei do pêndulo, que dizemos a nós próprios, torna-se importante, ganha grandeza e amplifica a vida. Quando aquilo que dizemos aos outros tem importância, então, pode ser que haja um encontro, e aí, já podemos falar de um baile à moda antiga ... porque naturalmente aquilo que os outros nos dizem entra na esfera dessa amplificação. Na verdade, quanto maior for essa amplificação que só é possível na medida em que nos distanciamos dos outros, menor a probabilidade de um encontro, porque o encontro entra naturalmente na obra que o transcendente-transcendente vai fazendo com a nossa ajuda. Somente o transcendente-transcendente nos dá a verdadeira dimensão do outro. Esse outro é raro, precioso e único, como nós e só assim ambos se reconhecem. Tudo mais são tácticas de venda que podem ir desde os livros, ao prestígio, ao poder até à caridade de valor transitório, útil mas transitória. Depois disso, de subir a rua, o meu irmão, que fala pelos cotovelos, encontrou-se comigo e disse meia dúzia de coisas que confirmavam o que tinha pensado. Apareceu com um caderno de frases de escritores debaixo do braço. Frases que algumas delas já conhecia. Uma delas falava dos véus. E pensei: até os véus deixam de ter tanta importância quando percebemos em que baile estamos... E de que gruta viemos.

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