segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Noés


Pintura de Cynthia Guimarães Taveira


Ainda alguns hão-de deixar arcas sabendo que a sua acção só pode ser reservada num mundo dissolvido e no qual a política se imiscui em tudo, até nos mais inocentes actos como a escolha de um nome, de uma cor, de uma palavra. A política avessa e contrária ao espírito gravada na consciência dos homens como sendo o mais elevado, a mais elevada aspiração, a mais gloriosa das lutas e guerras a travar. 

Neste meu quarto, onde ouço tudo amplificado, mais tarde ou mais cedo, as palavras que parecem grandes, os gestos que parecem nobres, têm na sua raiz a política, a ideologia, a escolha democrática obrigatória para quem se quer dizer gente porque assim foram educados desde o 25 de Abril e desde o antes 25 de Abril. Homem que é homem, mulher que é mulher, define-se politicamente.

Quando nos encontramos com o passado e com as horas nele passadas a trabalhar para aquilo que nascemos, porque o outro tipo de trabalho é só fadiga, tédio e perda de tempo, quando entendemos que esse trabalho é desconhecido, resta a arca que guarda o arcano e o arcaico, quer seja uma arca visível ou invisível. Na realidade, tanto faz.

O gosto do lucro, do prestígio e do poder, sem contar com o da imortalidade mais frágil de todas que é a da memória,  de se ficar com o nome preso a uma qualquer memória,  qualquer encantamento temporário, torna em ouro tudo o que não é isso, como a outra face de Saturno, o outro tempo que não este escorreito e dos quais  Saturno é ambos senhor. A arca é uma responsabilidade voluntária meramente pessoal. Nada nem ninguém obriga a ela uma vez estando feito algum trabalho.

Imagino uma série de Noés, com barba longa em fila indiana, guardando pedaços da sua viagem, não vá a humanidade precisar deles quando resolver crescer qualitativamente, coisa que não o tem feito.

O presente torna-se um mero subterfúgio para esse envolver em panos, em rito funerário e protector, o corpo das obras, mais para os outros do que para Deus, porque Deus já as viu.

A arca é sempre um berço reunindo forças. Se há coisa de valor nesta época é esta espécie de solidão benéfica atingida e em que alguns são largados. Aí, encontram-se nos seus olhos as suas experiências e os seus entusiasmos escutados apenas acima deles, sem intervenções políticas que são sempre transitórias e mudam de lugar no xadrez do mundo que é feito de tempo e de espaço. O tempo contribui muito mais para esse jogo de xadrez do que se supõe porque o tempo é essencialmente memória e fadiga.

Alguns tiveram a sorte de ter tido um percurso tão rico e tão simbólico que permite que a arqueologia do seu próprio passado seja uma revelação, ou uma série delas.  Esses, quando se olham ao espelho, são caleidoscópios vivos, mas que só a eles dizem respeito. Hoje os homens odeiam-se porque têm medo. Os que não se odeiam têm passado e os que amam têm futuro. São, esses os mais reservados, boas colheitas, na cave que é caverna onde é guardada a Luz do Espírito.


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