quarta-feira, 27 de novembro de 2019
As pinturas
Este e outro estão há alguns meses no escritório de uma amiga. Por via do meu irmão soube hoje que as pessoas ficam espantadas e até gostam quando os descobrem. Não é mau.
Depois de ter sido desconsiderada, não é mau saber que, algures, em Carcavelos alguém vai gostando. Não tenho dever nenhum de pintar, nem de escrever. Pinto por necessidade. A mesma com que decoro uma casa. Escrevo porque causa daquilo a que René Guénon chama (pelo menos foi pela pena dele que li), o "lugar dos possíveis" que é o lugar da palavra e do verbo que fica à superfície das águas... Não tenho o dever moral de o fazer porque a moralidade é apanágio das religiões. Não estou ligada a nenhuma instituição religiosa, e por isso, a nenhum dogma. O dogma sou eu e altero-o se me apetecer e não porque há sacerdotes que o digam para fazer. A sacerdotisa sou eu.
Assim, depois de anos a tentar encontrar "espaços para expôr" e a pouco ou nada conseguir (para além da trabalheira que é andar com os quadros de um lado para o outro, sozinha num Smart - se quisesse ir para feiras, escolheria coisas mais facilmente transportáveis) e de não ver grande interesse (nem ajuda) das pessoas para o fazer, decidi que a "iniciativa" ficaria por conta dos outros. Limito-me a pintar quando me apetece, se me apetece, sem qualquer obrigação para com ninguém. Os outros é que passaram, sob o meu ponto de vista a ter a obrigação de gostarem do que faço, de gostarem e de entenderem, se não o fazem, não sou eu que os vou julgar até porque tenho mais do que fazer. Uma das coisas que tenho de fazer é ir estudando. Não para ser professora de ninguém (nem temos vocação para tal) mas para que vá tentando entender melhor o que me rodeia e o que está dentro de mim. Também isso não é dever para com ninguém. E escrever, coisa que só me trouxe dissabores com as pessoas, muitas delas que julgava serem minhas amigas não o sendo, é fundantalmente um exercício da Liberdade. Ora sendo uma prática de Liberdade não pode, naturalmente, ser um dever para com ninguém. Os deveres são outras coisas nas quais podemos ou não colocar o coração e não é certo que o façamos sempre - ninguém gosta de pagar impostos e se gostam devem ter em conta os ladrões que ficam com parte deles. O dever, é sempre ambíguo e pantanoso demais para a Verdade Interior.
Sendo o "lugar dos possíveis", um lugar especial (primeiro é preciso "cair nele", é o lugar onde tudo pode acontecer - e daí ter entrado a cisão fraterna em jogo como algo que possivelmente seria a consequência da escrita) é também o lugar onde a possibilidade de escrever o que os humanos querem que escreva é apenas uma entre muitas. Para o fazer, teria que sentir admiração. Admiração pelas ideias dos outros. Infelizmente tenho admiração pelas ideias dos que já partiram o que torna essa possibilidade (que é uma entre muitas) num diálogo com defundos. Daí o ensaio sobre o que os outros escreveram como uma das formas de expressão. De resto, escrevo o que me apetece, quando me apetece. Nunca pensei que o lugar da pintura partilhasse tantas semelhanças com o da escrita e isto do "apetecer" acabou por ser uma libertação do sentido de "dever" que durante anos tive e me levava à constante auto-culpabilização por não me fazer entender nem na pintura, nem na escrita. A natureza do "dever", pesada e demasiado apegada a dogmas que me eram estranhos na alma, teve o condão de me tornar uma pessoa frequentemente triste. E até essa tristeza acabava por me surgir em segunda mão, não era minha de origem. A minha origem era e é a da alegria. Foi no dia em que, depois de muito treino, me libertei do dever que recuperei a alegria. Treinei com o vazio do pensamento. Durante alguns anos, ia dar uma volta de uma hora ou mais todos os dias. Durante esse tempo não pensava. Julgava que não era capaz de não pensar, mas a pouco e pouco, fui ganhando essa habilidade a que chamei de "tela em branco" e vi que era possível não pensar (pensava que era uma coisa só possível de fazer pelo sexo masculino mas vi que eu também era capaz) e isso ajudou-me a libertar-me da ideia de "dever", do sentimento de culpa posterior e da malfadada tristeza que lhe seguia. Quando me trazem numa mão um presente, qualquer que seja, e na outra o dogma em contraponto, sinto-me a anos luz dessas pessoas. Normalmente fico com o presente e, quanto ao dogma, devolvo-o com um sorriso. Uma simples frase que faça recair sobre essa pessoa um qualquer dever, mesmo que abstracto. Qualquer coisa que a faça sentir o peso do que "oferece", o peso do seu fanatismo, o peso de carregar dentro de si um templo que não é o seu mas sim o de alguém que um dia lhe fez essa oferta. É uma boa forma de nos livramos dos idiotas.
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Muito bom
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