sábado, 29 de outubro de 2016

Sobre a leitura de António Telmo




António Telmo, um místico intuitivo e dedutivo pode se facilmente incompreendido e dificilmente compreendido. Isso advém do Espírito de quem o lê. Se há como que um Espírito Científico a presidir à sua leitura e maturação ele será facilmente incompreendido. Se há um Espírito mais Místico e Intuitivo a presidir à sua leitura e maturação acompanhada de entrega, então, será dificilmente compreendido. Em todos os casos não é um filósofo fácil porque obriga a um constante salto entre o raciocínio e a intuição. Ora sendo a intuição algo de pessoal, é necessário que duas almas se encontrem nessa intuição única. É daí que vem a dificuldade pois a sintonia entre o autor e o leitor exige, de algum modo, uma iniciação (que é tanto pessoal como universal). Para um Espírito Científico é relativamente fácil fantasiar, pois ao não ser admitida a imaginação como algo que se passa num mundo imaginal (tal como lhe chamou Corbin) e que esse mundo é todo ele floresta a atravessar como forma de conhecimento da "composição da alma", ao não ser admitida a imaginação, dizia, como coisa real, toda e qualquer tentativa de imitação da imaginação cai vertiginosamente (sem nunca ter ascendido, note-se), no reino da fantasia (parte animalesca da imaginação) e isto porque, no seu âmago, tal Espírito Científico, visa a anulação de toda e qualquer forma de ilusão, como mal, como acidente, como queda. Nesse tipo de Espírito há como que uma necessidade de uma luz transcendente sem que, no fundo, se acredite nela pois até ela vive no reino da ilusão. Estes Espíritos Científicos, são, normalmente dotados de "higiene mental" e, quando são Pessoanos (se é que há Pessoanos...), fixam-se na determinação com a qual o poeta fez a divisão entre "um Espírito ou temperamento Racional e um Espírito ou temperamento Místico", dizendo o poeta optar pelo primeiro. Não deixa de ser evidente, porém, que ainda esteja por explicar racionalmente como é que o próprio poeta parece ter caído, logo à nascença, dentro do caldeirão da imaginação, tornando-se um Obélix grandioso na criatividade e no pensamento, ao ponto de, no mundo, não existir pessoa que se equipara a Pessoa. Creio que para que tal explicação seja possível seja necessário primeiro acreditar em caldeirões, o que já de si denota um Espírito Místico pois as fórmulas de Merlin têm segredos e dão poderes sobrenaturais o que, à partida, é negado pelo Espírito Científico. O privilégio dado à higiene, e citando de cor uma autor que desconheço, é dado por aquele que a prefere à bondade... Um Espírito Científico não joga aos dados como Pessoa jogou quando jogou a obra toda num baú e a lançou nas correntes do destino. Isso denota uma crença absoluta na sorte, ou seja, no transcendente. E é graças a essa crença de Pessoa que ele é hoje lido por Espíritos diversos. Creio, por isso, que a obra de António Telmo é de extrema importância para quem se interessa pela alma portuguesa, porque até Cristo, andou 30 anos a aprender, e é a alma que aprende... O Espírito Português é a recompensa do trabalho penoso da alma. Inverter o processo é cair na mais básica ditadura e na mais básica urdidura do destino (que nunca é fácil, sorridente e saltitante) que é da de crermos que não há trabalho nenhum pela frente a não ser o ritual. Quando assim é, entra-se na mais frustrante das viagens que é aquela em que até a "saída" ou "escape" do ritual é um ritual ele mesmo, ou seja, a negação da criatividade. A negação do Jardim e nele, toda a ciência não é um fim em si mesma, mas sim, um pretexto para criar. Quando é um fim em si mesma ainda o jardim não existe, é mero esquema no papel. 

(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

O moinho e a nau




Encontrei as mãos e as vozes
num moinho que nem procurei
e no brilho das espadas a sorte
que em toda a arte neguei

 
Ergui a flor do mato
como a princesa das flores
e o profeta de corpo estranho
estava na minha passagem...
 
Nesta nau de meia lua
cabe tudo o o que é
remos fundos que são raízes
que de tão fixas vão mais além
 
A meio gentes sobem e descem
a meio pesam ou não
a meio dormem a ver as estrelas
a meio gritam com o trovão
 
A meio choram com a chuva
a meio a rirem se faz sol
a meio são vento que meio é
E se a meio há terra, não há solidão
 
E lá por cima velas brancas
como sonhos a preencher
e mais acima ainda
um mastro d'ouro que tudo vê
 
Encontrei as mãos e as vozes
num moinho que rodava
e no brilho do mar toda a sorte
que por ser arte já não negava
 
E a História ficou nos livros
e no sangue da memória....
e lá no alto, no mastro d'ouro
outro sol só viu quem o viu bem
troca o passo a quem o nega
e não existe se por certo alguém o tem
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Essa esplanada tem vista para o mar? Todas têm...


 
Todas as palavras são o silencio do que vi. Vejo essas cadeiras espalhadas e nós sentados nelas, bebendo um tónico ou não, de perna cruzada, essa esplanada de gente que vem e se senta, que vem e que trás mais alguém que se levanta e sai, que se estende pela tarde na esperança de uma companhia morna. Vejo esse sentido de estar a olhar como se nele se procurasse a verdade no rosto deste e daquele. Vejo a alma calada que a todos vê, metida por dentro do silêncio que não retive.
Procuram saber todos os rostos que se cruzam, nesse passeio de fim de tarde tendo o mar como plenitude e os outros sempre por ansiedade. De se saber quem é, de se saber o que pensa, o que diz ou tem a dizer. Vejo multidões de gentes que tudo querem saber. Do outro, nesses passeios diversos da cidade, da praia, do campo que já pouco campo se sente assim com tanta gente que por ele passa.
E em mim, rostos param também, atentos aos meus olhos perguntando-me sem perguntar: quem é? O quê?
Todos se envolvem nessa explanada, nessa conversa de nada mas que tudo diz das crenças e dos dias onde tudo se passa onde tudo se comenta e se fala deste e daquele e da curiosidade que neles há. Nas perguntas dos pormenores dos trabalhos, onde estão, onde ficaram, para onde vão o que têm ou o que não têm, nos comentários sobre o estado do tempo que é sempre toda a gente embutida nele.
 
E olhamo-nos da mesma maneira que nos perguntamos porquê, mas se fizéssemos a pergunta “porquê” estremeceríamos de medo e então camuflamos o “porquê” nos outros e eles são todos os “porquês” que não ousamos perguntar porque a filosofia custa sempre uma lágrima qualquer e os outros talvez nos deem a possibilidade de um sorriso.
 
Dói perguntar porque a dúvida suspende-nos no ar quando é verdadeira. Porque é um primeiro voo de um pássaro…
 
Ah! Tantas caras e tantos olhos e tantas bocas e tantas perguntas sobre elas que são sempre as mesmas. As mesmas que trazemos do berço à cova, as mesmas esplanadas no Verão, as mesmas mesas de café no Inverno, os mesmos comentários, as mesmas horas sem uma rosa que nos trespasse.
 
E juntam-se alguns ao meu redor esperando um outro “porquê”, que seja diferente e que os tire dessas horas arrastadas das mesmas perguntas. E nada sei dizer porque só sei ver e de tanto ver apenas escrever. E tudo o que é sério só encontra lugar no papel porque as palavras ditas em voz alta fazem barulho demais no sossego que a alma tem se só lê. Porque todas as palavras ditas em voz alta soam a teatro e a cenário e a voz é como se nunca fosse tão perfeita como aquela que lê para dentro da nossa alma. É como se a manifestação da voz soasse a inconsistência pela vibração cheia de atrito no ar, e que a voz de dentro, imanente à presença atordoante, soasse de cristal, puro som,  no nosso cosmos interno.
 
Há nessa voz de dentro que nem se ouve quase a ausência de palavra. Como se essa fosse o traje do sentido. E assim, todos os sentidos explodem por dentro, nessa voz sem palavras que tudo assimila e ecoa na simultaneidade da nossa presença.
 
E juntam-se a meu redor, vêm em busca da “conversa interessante”, que não sei ter, em busca da distracção das miudezas do mundo, em busca de uma grandeza inesperada, e só lhes sei dizer que tudo o que escrevi foi esse silencio que retive. E que passei pelo mundo invisível, e que assim eles também, invisíveis uns aos outros, por não saberem que o amor, quando encontrado é só sentido absoluto das coisas, sem palavras que o valham ou leituras que o compensem.

(Cynthia Guimarães Taveira)

 

Do ver as estrelas até ao “até ver estrelas”

 
 
 
O sistema económico em que estamos absortos, para não dizer, submersos, prende-se com uma série de defeitos, muitos deles ligados à má relação que se tem com o tempo.

René Guénon sexualizou a questão do espaço e do tempo, concedendo o primeiro ao masculino, porque os homens caçavam no espaço e construíam no espaço e o segundo ao feminino porque as mulheres geravam no tempo. A questão da sexualização quando ultrapassa a fronteira do símbolo pode ter como consequência exactamente o mesmo erro que pode ocorrer quando se lê um texto considerado sagrado: a leitura literal do texto sem que ocorra profundidade qualquer nesse acto de ler e mesmo de pluralidade de interpretações. A palavra, entre as suas múltiplas facetas é também simbólica. Exactamente como qualquer símbolo, quando reduzida a um só significado perde a sua mobilidade e, ao perdê-la, perde a sua capacidade de ser coisa viva.

Temos vindo a ver ressurgir um certo gosto no paganismo, produto, em grande parte, de um crescente desejo de se regressar “à terra”, “às origens”.  Perfeitamente compreensível num mundo que construímos cada vez mais artificial. Tais movimentos são vistos como um “ai Jesus” pelas religiões monoteístas que assim assistem perplexos  (e às vezes em pânico) áquilo que consideram, por um lado uma “involução”, na base da total crença que a conquista de um só Deus é uma conquista benigna para a humanidade e, por outro, porque tais movimentos seriam a entrada no inconsciente ou subconsciente das religiões coisa que as mesmas optaram, na maioria das vezes, por não falar delas (quantas vezes apelidados de demoníacas) ou por outro ficando tais áreas reservadas a uma elite, secreta mas convertida a uma instituição (veja-se o caso de Dante e do Catolicismo).

A perpétua queda do homem no materialismo foi acompanhada pela completa inaptidão para simbolizar.

A má relação com o tempo, em termos simbólicos terá, para uma cabeça simbólica, relação com a má relação com a mulher/planeta terra/mãe natureza.

Antigamente, homens e mulheres (porque não creio que vendassem as mulheres) observavam as estrelas. O passar delas e o seu percurso pelo céu. Construíam, em seguida, autênticos observatórios astronómicos que tentavam estar em sintonia com o movimento temporal dos astros e corpos celestes. A noção e o conhecimento do tempo pareciam tão fundamentais que se construía em redor de tal coordenada terreste.

Hoje o homem, tal como afirmou Mircea Eliade, foge para a frente. Tem medo do tempo. O tempo é o grande devorador dos homens. O problema é que, nessa fuga, os gestos dos homens provocam a própria aceleração do tempo e consequentemente a contração do espaço. O tempo passa mais depressa quando o espaço é contraído.

Dizem que houve um dilúvio e que a espécie humana esteve em perigo. Se isso é verdade, e se a mulher é aquela que transporta e gera a espécie humana dentro do seu próprio ventre, então ela veio a adquirir, em termos simbólicos um excesso de zelo traduzido nos inúmeros tabus sociais de que foi alvo ao longo da história e ao longo dos monoteísmos. Ainda não ultrapassamos o trauma do dilúvio. Aliás, toda a nossa cultura tem como base esse acontecimento. A reprodução em massa da espécie humana é um sintoma de um trauma colectivo que se disseminou por formas religiosas traumáticas elas mesma. A figura feminina tem sido alvo de excesso de zelo. Sob as mais diversas formas, positivas e negativas, mas em excesso. Essa relação foi tendo importância no modo como se percecionava o próprio tempo. E hoje não entendemos o tempo da mesma maneira que Freud dizia não entender as mulheres…

A economia não pode ser sustentável enquanto no nosso mais profundo fundo traumático não esquecermos, de vez, o dilúvio. Enquanto no nosso fundo mais arcaico reinar a ideia de que ter um filho é um dever, um dever social, uma prova de amor, uma exigência da família e dos vizinhos, um desejo animal de um qualquer relógio biológico que se impõe à mulher como se esta fosse um animal com períodos de cio e não um acto simplesmente natural, enquanto não se entender que são os próprios gestos humanos que geram o tempo e a percepção que temos dele iremos sempre entrar em guerras dualistas pelo controlo do planeta.

Antigamente procurava-se andar de acordo com os ritmos cósmicos. Onde é que isso já lá vai. Começa logo pelo horário de trabalho e por relógios que não se adaptam à estrela do nosso sistema solar. De Inverno levantamo-nos de noite e recolhemo-nos quase de madrugada. O desfasamento com o tempo do próprio universo produz um desfasamento do homem consigo próprio. As consequências estão à vista. Pior que o dilúvio foi o trauma dele.

As populações ligadas à agricultura ou à recoleção tinham ainda alguma relação com o tempo. Nós perdemo-la por completo. E como a perdemos a única maneira de a recuperar será por via intelectual uma vez que já ninguém tem uma relação com o tempo natural.

Intelectualmente talvez consigamos lá chegar e, se formos capazes, isso implica a alteração total da relação que se tem tanto da sexualidade como com aquela que se tem com o tempo. Xiva, o grande dançarino cósmico na sua dança erótica sabe que a música se desenrola no tempo. O seu gesto no espaço é uma consequência do modo como percepciona o tempo. O seu gesto provoca o tempo e o espaço em gesto.

A economia tem a ver com isto. A economia é um termo que quer dizer “governo da casa”.  Neste momento até vimos estrelas com os embates. O que é muito diferente do que ficar a ver as estrelas.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 18 de julho de 2016

A verdade e a doutrina

Dalila Pereira Da Costa é uma mistica portuguesa que escreveu livros. Como todas as figuras de verdadeiro destaque nacional (e não aquelas que aparecem recorrentemente na TV ou nos jornais "culturais" ou nas secções culturais "anichadas" dos jornais gerais e que de "nichos" culturais nada têm, antes pelo contrário, falando sempre da mesma "espécie" de cultura que alterna entre os nomes sabidos de cor e com um prestígio de décadas e com figuras da "moda" porque a cultura está hoje entrelaçada com a moda de tal forma que quase não se distingue, às vezes... Dalila Pereira da Costa, dizia, é uma figura de destaque nacional e, como todas elas, desconhecida. Esta verdade é inevitável para quem leu a sua obra, e que são muitíssimo poucos. Mística, poetisa, visionária, ensaísta que coloca Eduardo Lourenço num cantinho no qual pouca ou nenhuma luz brilha, foi, como é usual neste país, abarbatata por leituras tendenciosas querendo colocá-la, por vezes, num altar da Igreja Católica com umas flores por baixo. O esforço foi quase inútil pois na sua obra vigoram bastantes detalhes, para não dizer imensos, de experiências e observações que contrariam as doutrinas da referida instituição.
Possuindo um mundo interior vasto e rico a sua capacidade de análise feita a partir de vivências pessoais (intransmissíveis por serem isso mesmo, pessoais), paira acima, com grande frequência, de qualquer ideia pré-estabelecida em e com  vigor numa qualquer carta fundamental de princípios.
Um dos pontos em que isso se revela está no seu relato de vidas passadas feito em consciência. Sem margem para dúvida, Dalila relata-nos, por exemplo, o Porto de outras épocas, com outra paisagem e outro sentido de tempo. Os actos imaginários, são fantasiosos para qualquer mente positiva e formatada da época. Os actos imaginários, para outras sensibilidades, contêm em si, toda a promessa de experiência e seu encontro com a verdade. A fantasia confunde-se com a imaginação para os primeiros e é mero infantilismo para os segundos.
Nesses relatos de outras vidas nos quais o véu do tempo é levantado, há um "distanciamento" tal como a autora escreve, face ao próprio tempo como se essa fosse uma condição necessária para que um outro tempo fosse visitado. É na distância de nós mesmos que tudo nos é dado ou apresentado.
A re-encarnação, aceite no oriente, torna-se motivo de reflexão.
Deve tornar-se motivo de reflexão. Não pelo motivo enganador da chamada "evolução espiritual" tão em vigor agora como se se tratasse de uma carta de condução com pontos, mas motivo de reflexão absolutamente materialista, com consequências materiais. Se voltarmos a esta terra voltamos à própria matéria que aqui deixámos. Tão simples quanto isto. Se deixarmos uma casa em ruínas é à casa em ruínas que voltamos. É o chamado "consciente colectivo" de que ninguém fala tão distraídos que andamos com o inconsciente e por isso mesmo com a inconsciência ou pura fantasia.
Há uma casa de "férias prolongadas" possíveis a que vulgarmente se chama céu. E há aquela de uso frequente que é esta. Se é um jogo de espelhos isso fica para as teologias que são sempre matérias vagas em vagas navegando nas vagas do vento.
A visão materialista das religiões e das políticas diz-nos "aí de nós, que planeta vamos dar à nossa descendência!" e no fundo não se rala. Mas e se a descendência, mais tarde ou mais cedo formos nós? Nós.
E se nós por mero capricho do destino voltássemos com a consciência exacta de que somos nós? Talvez já se perceba que o dilúvio tenha sido um mar de lágrimas e que o próximo seja um mar de fogo. O fogo é a consciência. Com tudo o que ela pode trazer. A memória, inclusive. É esta a questão fundamental que Dalila Pereira da Costa levanta quando fala de outras vidas. E até trememos.


(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 12 de julho de 2016

A desordem inaparente da escrita

 
Há um provérbio judaico que diz que Deus criou o homem para que este lhe contasse histórias. Como se toda a criação do mesmo não lhe chegasse. Há na Criação, independentemente de esta ser queda ou não, uma ordem que se confunde com a matemática. Conhecendo a exactidão da matemática conhecer-se-ia a exactidão de Deus. O sustentáculo do mundo seria o número e o “jogo de dados”, (que Einstein não diz quantos são, nem os jogos, nem os dados) seria, para quem busca o conhecimento, o conforto da probabilidade e o leve esvoaçar do número como símbolo. As histórias seriam a desordem aparente de um mundo inteligente, mas fechado. Qualquer história de vida ou historieta principal seria arquétipal, ora inserida no grande enredo ora inserida no pequeno enredo que atravessa o drama teatral. De uma maneira ou de outra, viveríamos confortavelmente incrustados no drama da nossa presença. A comédia estraga tudo porque se ri do drama. A poesia invade como ondas a cidade fazendo-lhe tremer os alicerces. A profecia encarna o demónio da sabedoria e a graça o eterno problema do imprevisível e sobretudo da liberdade. O drama da nossa presença permite que haja comédia, poesia e graça.

A conversa com os deuses permite-nos perceber o nosso engano. O engano de não os sermos e o engano de os sermos. Os deuses são demasiados humanos… porque o poder é o antónimo de ser-se humano, pois este possuindo todos não possui nenhum.

A improbabilidade do sonho mais incongruente acontecer coloca em causa o jogo das probabilidades. Porque qualquer pessoa entende que não há sonhos improváveis e que a sua probabilidade de acontecer no real que se nos apresente é uma probabilidade. O acto criativo é por isso aquela probabilidade mais alta porque permite o improvável. Fora do acto criativo há o aprisionamento incondicional na matemática das histórias arquétipais, ou entendidas como tal. O “dispor” das formas que se nos apresentam e a sua permanente reorganização é apenas o lado externo do processo criativo, porque os deuses andam à solta para dentro e para fora de nós. A eternidade não é um cristal, até porque frio, só e  na escuridão do cosmos não serve para mais nada a não ser para existir. E o existencialismo é tão cansativo como a mais pura animalidade. Resume-se a uma entropia que mais tarde ou mais cedo expira.

O pressentimento da melodia, dirá Damásio, intuitivamente, resume a herança de luz que nos salvaguarda, não pelo acto imediato de identificação mas pelo acto de fusão;  identificação tem o seu quê de racional e de intencional, a fusão é irracional e sem intenção. A animalidade superior trata desta questão. O homem caminha para ser irracional e sem intenção, só assim se funde na consciência que falta aos animais. Só assim conhece. O leitor é o criativo por excelência:

“O leitor sabe que está consciente e sente que está em pleno acto de conhecer, porque o subtil relato imagético, que está agora a fluir na corrente dos seus pensamentos, manifesta o conhecimento de que o seu proto-si foi modificado por um objecto que agora mesmo se torna saliente na sua mente. O leitor sabe que existe porque, nesta narrativa, o leitor é o protagonista no acto de conhecer. O leitor eleva-se, transitória mas incessantemente, acima da água do conhecimento, sob a forma de organismo sentido, imparavelmente renovado a cada novo instante, graças a toda e qualquer coisa que afecta a sua máquina sensorial, vinda do exterior ou recordada na memória. O leitor sabe que existe e que está a ver esta página, porque a história da consciência narra um personagem, - o leitor – no acto de ver […] T.S. Elliot pode ter pensado em qualquer coisa de semelhante quando escreveu nos Quatro Quartetos, sobre uma música ouvida “tão profundamente que nem sequer é ouvida” e quando disse “tu és a música enquanto a música dura”. Pelo menos deve ter pensado no momento fugidio em que um conhecimento profundo emerge – uma união ou encarnação, tal como Eliot lhe chamou.” . (Teresa Martins Marques - Clave de sol - Chave de sombra - Memória e Inquietude em David Mourão-Ferreira, Editora Âncora, Lisboa, 2016. pag. 733)
As histórias que externamente contamos foram já escritas no jogo de escondidas, achadas e de novo perdidas no Jardim das Delícias. As histórias que internamente contamos estão todas por contar, situam-se na desordem inaparente da escrita. A mesma desordem que há no movimento fluente da luz. Impossível de agarrar e, no entanto, jorra.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 14 de junho de 2016

"Querida, encollhi a língua" por Jorge Colaço


Com a devida permissão do autor, transcrevo esta excelente reflexão sobre a relação dos portugueses com a sua língua:

«Querida, encolhi a língua».
 
Reflexões sobre empobrecimento da língua 
 
    1.
    Tornou-se lugar-comum repetir que a língua nos é uma pátria. Não se terá ela tornado, porém, uma pátria longínqua, minguada, apenas uma língua de terra?
 
    Aprendemos todos que a língua portuguesa é muito rica. Acontece que todas o são a seu modo. O que faz então a riqueza da nossa? 
 
    Em primeiro lugar, a solidez da sua formação, ancorada na velha ordem latina, depois na energia vernacular resultante da sua territorialidade própria, na sua história de unidade e dispersão, na sua capacidade de dar e receber, na diversidade e ductilidade das suas capacidades expressivas.  
 
     Só uma língua forte seria capaz de dar novas vozes ao mundo, conservando uma unidade essencial. É nesse sentido que se pode falar, e se fala, de lusofonia: uma galáxia de particularismos lexicais, morfológicos, sintácticos, semânticos e prosódicos, mantidos em relação por acção da força gravitacional constante assegurada por uma gramática e um léxico comuns. 
 
    No âmbito do universo lusófono, esses particularismos, ou variantes, não têm hoje um centro geográfico. Essa centralidade é ocupada por um corpo histórico imarcescível: o tecido de peripécias e transformações que a própria língua foi produzindo ao longo do seu trânsito através da História.  
 
    Esse trânsito tem contudo um ponto de partida, um lugar matricial, um rol de circunstâncias e condicionalismos internos que veio a resultar no que se chama a variante europeia do português, ou o «português de Portugal».
 
    É este «português de Portugal» que nos preocupa e aqui nos ocupa. Preocupam-nos os fenómenos de redução, estreitamento, afunilamento, todos eles eufemismos de um empobrecimento, que muito transcendem a questão ortográfica, aquela que mais emoções desperta e que a seu tempo também terá reflexos, embora ainda não totalmente discerníveis, neste processo de empobrecimento, termo que muitos não aceitam, invocando alguma espécie de saldo de uma contabilidade de ganhos e perdas que em todas as épocas se repete.
 
    2.
    Também aprendemos todos que a língua se transforma e que o uso é o grande agente dessa transformação, à qual nos habituámos — de uma forma um pouco simplista — a chamar evolução, presos ainda à euforia e às metáforas organicistas da ciência oitocentista. Tornámo-nos assim condescendentes, ansiosos por corroborar, por participar nessa espécie de progresso que a evolução passou a representar. Até nos dispusemos — e dispomos — a antecipar e «facilitar» essa evolução, cujo desenrolar julgamos vislumbrar, a abrir caminho à sua inevitabilidade histórica, que vemos inscrita na sua própria natureza. 
 
    Rimo-nos gostosa e desdenhosamente dos esforços inglórios — sobretudo por terem sido inglórios — dos gramáticos antigos para preservarem a língua contra o uso espúrio, opondo a língua culta à língua popular, opondo a língua escrita à língua falada. Desarmados pela evidência histórica e munidos do preceito pragmático que é «se não os consegues vencer, junta-te a eles», eis que nos pusemos a agir em nome e a favor de um certo futuro, ou melhor, de uma certa ideia de futuro.
 
    [Quer isto dizer que, para dar um exemplo por enquanto caricatural, dadas as suas actuais misérias, as vogais átonas pré-tónicas — que no português do Brasil vivem na abundância — poderiam um dia vir a ser suprimidas por via administrativa em nome da antecipação do seu destino histórico.] Em desfavor deste futuro, inevitável e irreversível, só poderiam estar os velhos do Restelo, agrupando puristas, saudosistas, conservadores, e todo um exército de contumazes oponentes da mudança e a ela resistentes, que muitas vezes o são, dizem-nos os adeptos do progresso, por mero desconhecimento ou incompreensão (como se conhecer e compreender fosse igual a aceitar). Creio que muitos reconhecerão esta panóplia discursiva de outros contextos, embora se trate certamente de uma coincidência… 
 
    Quisemos, então, examinar os usos em termos quantitativos e determinar que língua falava o cidadão comum, de que mínimo necessitávamos para nos entendermos. Encolhemos a língua na medida das necessidades e fizemos dicionários e gramáticas à medida dessas necessidades.
 
    O descritivismo triunfou sobre a normatividade. Significou isso, na linha do que acabámos de dizer, que a descrição linguística operou sobre um corpus em parte determinado, ou pelo menos sancionado, pelo uso. A norma gramatical tornou-se permeável, por exemplo, à suposição de uma «intenção» do falante ou mesmo às suas «preferências». [Vejam-se por exemplo as hesitações na concordância com expressões partitivas, ou de quantificação, e respectivas justificações.] Além disso, o antigo sistema de regras e excepções gramaticais, considerado insuficiente para abarcar todas as possibilidades da língua usada, foi tomando a forma de um vasto e complexo estendal terminológico.
 
    Esbateram-se as antigas distinções entre culto e popular, entre escrito e falado. Quem alguma vez deu aulas de português a estrangeiros conhece as dificuldades de explicar a «utilidade» da aprendizagem do mais-que-perfeito do indicativo, do futuro do indicativo, ou do condicional, que a língua oral substitui sistematicamente, substituição que ninguém parece particularmente interessado em corrigir: ninguém quer ficar do «lado errado da história». Porque é assim que os falantes dizem, é claro. «É a evolução da língua, estúpido!», dirão alguns mais acerbamente. Algum dia alguém exigirá que se amputem essas excrescências inúteis.
 
    Entrámos assim no reino da superstição democrática (a expressão é de Jorge Luís Borges). A lógica é, grosseiramente enunciada, esta: «se se diz (ou se se diz assim) é porque existe; se existe tem de ser descrito». Certíssimo! O pior é que esta proposição gera outra, igualmente verdadeira: «se não se diz, é porque não existe; se não existe não tem de ser descrito». 
 
    A «pátria antiga», arcaica e empoeirada, e a «pátria pequena», no sentido em que por exemplo João Araújo Correia ou Tomaz de Figueiredo a evocaram, foram assim convidadas a retirarem-se da mesa e irem para a cama de castigo, uma por ser velha e desconforme, a outra por ser aldeã e rural.
 
    Temos reduzido, então, a língua, por desbaste, a uma língua essencial e urbana, ufana da sua contemporaneidade, desconfiada de vernaculismos obscuros e de construções inabituais, aberta sobretudo ao momento, atenta a rumores e tendências, sempre um pouco avessa à nacionalização de terminologias em voga com que nos damos ares de cosmopolitismo e sofisticação. Sobretudo, a «pátria» estreitou-se, resignada a uma certa ideia de simplificação, que é, no nosso modesto entendimento, um argumento inaceitável em linguística.
 
    Creio que temos de ser capazes de olhar este processo com lucidez, quer reconhecendo os erros e excessos, quer sublinhando as qualidade e virtudes. O que não podemos é olhar o fenómeno, prazenteiramente, como um infeliz embora divertido acidente, que, por meio de jigajoga, se haverá finalmente de recompor. Talvez não possamos mesmo limitarmo-nos a descrever o acidente e anunciar: «Querida, encolhi a língua». Afinal, o empobrecimento nunca é um filme cómico. 
 
    3.
    Mas não é tudo.
    A língua literária foi sempre considerada o repositório dos tesouros da língua, guardiã da sua história, a sua linhagem nobre, espaço de fixação lexical e sintáctica, e, na mesma medida, o lugar da sua reinvenção.
 
    Tal era possível porque o escritor — «semelhante a uma luz que, invisível em si, aquece e torna visível o mundo», como escreveu Jünger — era uma reconhecida autoridade no domínio da língua, fonte de abonação e de legitimidade. Exemplar, mesmo que disruptor, pois só sabe desfazer bem quem também sabe fazer bem. A principal razão disso residia no facto de terem os escritores, em geral, um forte domínio da língua e uma consciência aguda das suas variações e possibilidades, bons conhecedores dos seus usos literários através dos tempos e, muitas vezes, defensores, com especial filáucia, das suas particularidades. Desses, já só se reconhecem uns poucos. Mário de Carvalho ou Fernando Echevarria representam bem os que aqui não menciono. 
 
    A abonação e a legitimidade é hoje vulgarmente procurada em jornais e blogues, onde todos podemos ser autores. O texto publicitário, a reportagem, a entrevista, a notícia, o requerimento ou a carta dividem entre si, em partes irmãs, com a literatura, o espaço curricular da língua, nas escolas. A literatura veiculada escolarmente barricou-se num universo «infanto-juvenil», e daí não sai.
 
    Mais do que para a literatura, os poderes públicos estão orientados para os problemas da literacia, que é, hoje, entre outras coisas, também um problema de saúde pública, o que só por si diz muito sobre o empobrecimento da língua. Não que esses problemas não sejam reais por esse mundo fora, mas porque a aprendizagem afastada da língua literária é objectivamente empobrecedora. É um trabalho de modista que desconhece a alta-costura. 
 
    Se escritor é todo aquele que escreve, ao contrário do que afirmaram Nemésio ou Mourão-Ferreira, confunde-se agora com o publicista, que não pode ir muito além da língua essencial que lhe permite ser lido: a língua literária também encolheu, talhada e tolhida pela necessidade. Passou a quase não se distinguir da língua comum, a procurar mesmo uma normalização, uma habitualidade reconhecível. Até porque a língua comum absorveu e banalizou certas fórmulas e recursos, como a inversão da ordem entre nome e adjectivo. O fenómeno, que não é exclusivamente português, tem uma clara dimensão económica e editorial.
 
    Folheemos romances ao acaso para vermos como as personagens reagem encolhendo significativamente os ombros a cada passo e a cada página; para vermos como, em diálogo, respondem sempre, mas rarissimamente replicam, retorquem, retrucam, redargúem, anuem, assentem, objectam, argumentam ou contrapõem; para vermos como as estruturas sintácticas e lexicais não ultrapassam um determinado grau de simplicidade ou de sensaboria. A simplicidade e a sensaboria de uma língua normalizada e abençoada pelos processadores de texto, que maldosamente insinuam a dúvida em quem não tem já muitas certezas. 
 
    Significa isto também que o leitor médio, e sobretudo o leitor jovem, tem vindo a perder a capacidade de ler os clássicos, antigos ou modernos, crescentemente feridos de ilegibilidade, quantas vezes impedidos de entrar, quando não expulsos do cânone escolar.
 
    Sabemos que a língua sofre transformações. Sabemos que cada época tem a sua língua essencial. Mas sabemos igualmente que a língua é cumulativa, o que não é usado num certo momento não deixa de existir por isso, é um remanescente, pronto a entrar em acção quando tal lhe for solicitado, ou, para ceder aos usos de agora, um importante activo.
 
    É preciso olhar este fenómeno de encolhimento, não de forma relativista, observando apenas — encolhendo os ombros — que sempre foi assim em todas as épocas, mas trabalhando para que os múltiplos afluentes da língua não sejam estancados. 
 
    4.
    A nossa língua – a comum e a literária, nos seus diversos registos – é muito rica em tesouros escondidos. Como desenterrar e recuperar essa riqueza?
   
    Lendo. Descobrindo, aprendendo. Lendo. Redescobrindo, reaprendendo. Observando as diferenças necessárias entre a língua falada e a língua escrita. Escutando. Corrigindo. Lendo. Redescobrindo e reaprendendo a língua na sua grandeza e na sua diversidade, diacrónica e sincronicamente considerada.
 
    Evidenciando, por exemplo, a importância de uma prática de escrita e de leitura confiável: 
 
    «No que toca à precisão e propriedade da linguagem, fontes indispensáveis da clareza, é preciso que desde logo aprendamos a distinguir o sentido próprio e figurado das palavras, a explicar, por meio de frases, diferentes acepções da mesma palavra, a indicar a ideia geral comum a várias ideias e a ideia particular expressa por cada uma delas.
 
    Aprenderemos a descortinar, por exemplo, que em “abater, demolir, arruinar, destruir” existe uma ideia comum qual é a de “fazer cair”, mas que cada um destes verbos tem um significado e emprego particulares. Compreenderemos que indicar sinónimos não é tanto apresentar palavras que exprimam as mesmas ideias (caso que geralmente só acontece com palavras de origem diversa ou chegadas até nós por via diferente, e ainda assim com diferente emprego), mas sobretudo ideias semelhantes. Aprenderemos a encontrar por nós próprios locuções e frases correspondentes de outras, por meio das quais possamos evitar as repetições de forma ou as desarmonias do estilo. Aprenderemos também até que ponto os provincianismos e os neologismos são admissíveis, e seremos levados a reconhecer que os barbarismos de construção são muito mais reprováveis que os de simples palavras, porque sujeitam o pensamento a moldes estrangeiros e brigam com o que há de fundamental no espírito de uma língua.» 
 
    Palavras colhidas no livro Problemas de Análise Literária, de F. Costa Marques, licenciado em Filologia Clássica, professor do Liceu de D. João III, em Coimbra, na sua já longínqua primeira edição da Livraria Gonçalves, de 1948. 
 
    Muitos serão os caminhos, como as moradas. Apenas me atrevo a enunciar um deles: voltar a uma orientação que faça regressar a semântica, e com ela a atitude e o procedimento filológicos, que faça regressar todo um programa de minúcias e subtilezas com que sejamos capazes de enfrentar a bruteza dos tempos. 
 
 
 
Jorge Colaço
 
Lisboa, Maio de 2016

sábado, 16 de abril de 2016

Sem título, nem honras, só grandeza.



Porque eram flores do campo
e eu só as escutava

Porque navegava num longe que era tão perto
Porque não sossegas com o meu silêncio?

E não o vês como a obra prima da tua alma
a face que nunca digo
porque se o dissesse
explodia o mundo...

porque eram flores do campo e corriam selvagens

porque nem interessa os "porquês"
que nos perseguem dia e noite...

O meu silêncio é a obra prima da tua alma
onde te re-escrevo
em tons que nem sonhas
embora saibas os meus sonhos

A verdade? Digo-ta de forma surpreendente:
O mundo ainda não está preparado para a grandeza
do que é ser-se humano.

Como falar então?

nem há pincéis, nem telas, nem arte sequer
que demonstrem, passo a passo,
como uma simples teoria
aquilo de que somos feitos

um imenso símbolo inexplicável
quase labiríntico no seu interior
feito de percursos de sentidos vários

sim, mais do que árvores, nós humanos
mais do que frutos, ou flores ou sementes
como se fossemos tudo ao mesmo tempo
e ainda o céu

esse céu
tão dentro de nós

o silêncio é uma pausa de criação
não é quando escrevemos, ou dançamos
que criamos

é nesse silêncio que não compreendes
nessa não manifestação aparente
mas que é toda por dentro

mas que é uma força de luz
mas que contém os germes
de toda a verdade que há-de ser

não estranhes o meu silêncio
aquele que mostra uma expressão séria
aquele que vibra em todo o coração
e o faz crescer até às estrelas

como se dá a mão à humanidade?
Eis o desejo secreto de alguns
o mais secreto e o maior

Não há templo, religião, crença ou filosofia que o valha...


(Cynthia Guimarães Taveira)






terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Vida interior


Hoje dei de caras com o JL (Jornal de Letras, para quem não sabe) e, para além de gostar de dar de caras com os jornais -pertenço à velha guarda que gosta de mexer em papel jornal- fiquei a saber que, num livro de oitocentas páginas, Teresa Martins Marques nos vai trazer muitos elementos novos sobre o poeta e ficcionista David Mourão Ferreira e que este será lançado nas Correntes d'Escritas que, de vez em quando, acompanho pela rádio.
O natural interesse por antiguidades (hoje Mourão Ferreira é uma antiguidade, valiosa, penso) levou-me a abrir o Jornal. Aberto o Jornal pus-me a lê-lo e conforme ia lendo da página 8 à 11 uma coisa ia ficando clara para mim. A vida interior deste escritor e professor era um mundo vasto tendo começado na infância, muito ao jeito de Fernando Pessoa, aliás...
A páginas tantas, num texto auto-reflexivo, diz o autor (página 11, no fundo,  onde diz auto-análise aos 18 anos, para quem tiver muita pressa em procurar - risos): "Ao contrário de certos indivíduos que teimam em procurar na vida os temas literários, eu estou sempre disposto em transformar a vida em literatura. Por isso, encontro-me sempre disponível.  Detesto as escolas, os partidos políticos, enfim, todos e quaisquer facciosismos".
Perante tal afirmação, dirão hoje uns "era um jovem, não pensava..." ou "ainda não tinha vivido nada...", o mais natural serão respostas assim. Mas lendo estas palavras avançaria com a impressão de que David Mourão Ferreira, teve daquelas intuições que aos jovens sensíveis é dada em plena imaturidade e que se traduzem em palavras maduras de quem parece ter vivido muito, incluindo os tempos presentes que nunca chegou a viver.
Tal afirmação proferida nos tempos de hoje seria considerada blasfémia perante as hostes e tal vida interior, tão dividida entre a poesia, a ficção, o ensaio, o romance tradicional e o teatro seria alvo de críticas tão certas como "não se decide, dispersa-se muito, é um viajante sem destino, está mesmo perdido".
Não sei se andaremos preparados para personagens e pessoas antigas deste tipo pois penso pertencerem a um outro mundo, a um outro tempo, no qual não havendo "A Via" como um estado de graça que hoje é exigido na surdina dos comentários, havia, e num tempo nada fácil em termos de liberdade por causa do Regime, mais possibilidades daquilo a que vulgarmente se chama "vida interior" e que esta pudesse passar da invisibilidade latente para a luz do dia sem que fosse chocante o que, em formas de expressão artística, se traduz (e quantas vezes) em incoerência, a repulsa natural ao facciosismo demonstrado, em ambiguidade, em dúvidas existênciais, sem que estas minimizassem alguém como hoje parece acontecer ou então serem denominadas de "desabafos" como se estivéssemos eternamente deitados no divã de um psicanalista e senão mesmo sentados na cadeira de um confessionário.
As razões desta psicose invertida na qual o artista passa a maluco e o pãozinho sem sal a artista talvez resida no facto de se ter perdido o fio à meada do que é a criação e dos caminhos pela qual ela naturalmente deambula e sempre deambulou.
Almada Negreiros passeava no Chiado, em jeito de provocação, num Modernismo tão novo que incomodava os Dantas-botas de elástico, mal sabia ele que esta mera afirmação de vida interior de David Mourão Ferreira, no Futuro que tanto "futurizou", e que era, quem sabe, a raiz criativa até do próprio Dantas, iria ser alvo de peneira crítica, logo à nascença, pelos sensores do bom tom das facções.
Se Mourão Ferreira, viveu, num certo silêncio que agora se revela, hoje, teria talvez dúvidas em escrever um poema sem que isso não fosse uma pedrada num charco qualquer. É que do grande mar que é símbolo das grandes almas passámos aos charcos dos patos bravos que bicando os que ainda se.atrevem a ser antigos e  criativos, se sentem bicados pela criação como se está fosse um "nú" na cabeça do Islão. Ora como se sabe, o "nú" tem muitas interpretações e a arte, a ficção, enfim, todo o domínio da criação vem sempre nua ao mundo, e cresce nua e caminha nua. Esta nudez d'alma escrita por David Mourão Ferreira, hoje era, evidentemente e convinentemente tapada, por um comentário, por uma crítica, ou pela mais recorrente e moderna forma de censura: o silêncio e a aparente indiferença. Evidentemente que o livro tem interesse. Sempre gostei de antiguidades. Até mesmo quando são jovens, têm dezoito anos, e são tão modernas que até espantam.

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Caminho para o Infinito



[E o mais irónico serão,  (porque já o foram )
Os caminhos desenlaçados como histórias
E o mais estranho é (porque sempre o foi)
Essa infinitude dos caminhos e da história.]

{Há qualquer coisa de ausente a partir daqui
Como se visse os teus sonhos como romances
E tornasse a lê-los como duplos romances
Rescritos com o mesmo vigor

E tornar a recordá-los uma outra vez
Como se recortasse pedaços de palavras
E deles levasse o que de mais luminoso são

E com eles pudesse
Reconhecer caminhos
E deles também levasse
As flores que se entendem por destino}

]...Não é tão exacto o céu como supões
Dispostos os astros sem contradições
Servem as estrelas o navegar
Mas não servem quem além do céu estrelado ousa passar

Não é exacto por viver no corrupio
Do suor do poeta em desafio
É mais como essas gotas caindo
Por aqui e por ali fazem elas o caminho

Caindo em palavras no papel
São soluços de um coração que não é frio
Guiam sem guiar por quem escolhem
Aparecem sem razão ou previsão

Muito se assemelham ao calafrio
Que há no silêncio donde cai
Essa nota de música que de súbito vem
E revela a exactidão da certeza
Que da alma tanto tempo esteve refém

E para que o espírito viaje
Tem de atravessar as rotas
Entre elipses e cornucópias
Entre todas as linhas tortas
Mais torto que elas delas se desvia
E tão rápido e solto assim vem
Que sem saber dele os astros prosseguem
Seguros e soberanos em seu designíos
São belos vestidos ocultando
Outros e mais secretos sentidos...[

(Cynthia Guimarães Taveira)











terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Mistério Musical


A dança consente que a música entre no corpo. Se possível no corpo todo. Se possível apagando-o, anulando-o até ser só música. Decide-se dançar.

Subia o Chiado progressivamente triste, entristecendo a cada passo e, só à medida que me aproximava da Brasileira, era audível uma violoncelista  solitária tocando uma música qualquer mas que o violoncelo se encarregava de a tornar matéria depressiva.

Sempre reagi mal ao violoncelo. Ao violoncelo isolado. Já ouvi a não sei quem ser o instrumento que mais reflecte a voz humana e talvez, por um mistério maior, ouvi-lo assim isolado, como um humano-ilha me atinja qualquer coisa de pesado, como uma solidão anti natura no meio de um universo preenchido.

Pascal Quignard disserta, às tantas, sobre o facto de os ouvidos não possuírem pálpebras sendo por isso a música, ou o ruído, mas aqui falamos de música qualquer coisa que se impõem. Tem qualquer coisa de tiranica, se deixarmos. Não se queremos.

A música serve-nos servindo-se de nós e vice-versa... pode ser a ilusão da cura de um sentimento ou pode ser mesmo a cura dele...

Erik Satie, esse personagem formidável, vivendo de cabaret em cabaret, bebendo até à cirrose final, único ao ponto de criar a sua própria ordem iniciática criou a música ambiente e pedia encarecidamente aos amigos que a ouviam para continuarem a falar normalmente. Para que não se calassem. Pediu-lhes, sem que estes dessem conta e, talvez até ele, que não se subjugassem à música. Intuindo tanto o subliminar como a vontade dos seres acima de qualquer influência.

Pode gerar um desacordo teórico, a música. O minimalismo deste compositor que tocava, quantas vezes, aquela harmonia oriental, compôs em contra-corrente à grandeza dos clássicos e em contra-corrente à sua própria vida caótica. Fica sempre a pergunta: como tendo uma vida assim, de garrafas, de copos, de corpos, de instantâneo caos, como com tudo isto lhe saia o oposto em notas breves, pontuadas de silêncios que caminhavam tranquilamente por entre as frestas do que de mais profundo e sagrado há no ser humano?

Quem sabe se a resposta está no Heavy Metal? Lembro-me, por diversas vezes, ao longo da vida, me ter cruzado com aquele tipo de alunos que tira sempre a nota máxima a tudo. Achava-os geniais. Mas naquilo em que achava haver o maior prodígio era o facto tirarem eles aquelas notas altíssimas e serem incondicionais admiradores de Heavy Metal. Em qualquer cabeça lógica isto não faz sentido até se chegar à auto-análise.

Como me saem anjos, mundos barrocos, luminosos e harmoniosos dos pincéis, tantas e tantas vezes ao som da mais banal estação de rádio com música da moda, quanta dela sem grande qualidade? Como? Da mesma forma que Satie e tantos outros que viveram na aparente ambiguidade. A harmonia é interna e não externa.

A leitura fácil e idiota de ler os homens pelo que ouvem é tão infantil como lê-los pelo que vestem.

Mas pode-se voar ao som da mesma música. Como se pode voar em conjunto vendo um filme, lendo passagens de um livro, olhando uma paisagem. A sintonia... a dois ou a três ou a mais é possível quando o ser se despe e se entrega no mesmo fragmento de segundo, da mesma maneira.

Como se explica a esfera celeste de onde parece provir alguma música, e como se explica que esta seja tantas vezes utilizada em sociedades primitivas para que o corpo cesse e se possa entrar na esfera celeste ou infernal? De que trocas falamos? Místicos que, subitamente, ouvem anjos cantar, instrumentos provindos de uma outra esfera a tocar. Almas que se erguem, capazes de voar...

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

O Anagrama quase infinito de Pessoa



Teresa Rita Lopes numa entrevista dada  à  edição do jornal Sol de 13 de Fevereiro de 2016 tem várias afirmações interessantíssimas mas uma delas parece-me de extrema importância: "Mais de metade dos textos do espólio continuam inéditos". Esta afirmação, que não é inédita, parece ser esquecida frequentemente por quem ousa atravessar os universos de Pessoa. Se menos de metade do que escreveu nos confere imediatamente a noção de um anagrama de ideias, de mundos, de presenças, de sensações, creio que a outra metade, provinda de uma pessoa tão complexa, nos compromete com a ideia de que esse anagrama tende para o infinito ou para o Absoluto como tantas vezes o poeta referia o "ilimitado".
A pergunta que se pode fazer, depois de tantos anos passados da sua morte, (até mesmo aqueles anos necessários para que as edições da sua obra passem ao domínio público) é o porquê desse espólio não ter sido ainda pesquisado e editado. Teresa Rita Lopes fala-nos da tendência para edições com falta de qualidade e deixa entender que a obra do poeta é, muitas vezes, um trampolim para a exacerbação dos egos, para a venda (com edições feitas de qualquer maneira) de livros, para a confirmação de teses pessoais quer sejam ideológicas, religiosas, académicas e por aí fora...

A complexidade do espólio, das caligrafias presentes nos manuscritos do poeta (que tinha vários tipos de letras...), a ausência de capacidade de relacionar esse espólio entre si (confrontar os escritos, decifrar percursos, datas, coerência de pensamentos e por aí fora), requer a paciência de um chinês, (de vários chineses) uma capacidade de investigação exaustiva, uma entrega de várias vidas.
Gozando nós de um estatuto "europeu", essa Europa da cultura e civilizada, não deixa de ser estranho, e passados quarenta anos de democracia que, tendo nós no nosso património um poeta tantas vezes considerado como um dos expoentes da literatura mundial, ele continue por estudar. Se parte é "culpa" dele - quem o mandou ser tão complexo, tão versátil e tão indecifrável, às vezes? - outra parte parece prender-se com vários problemas que, todos juntos, bem embrulhados e com devido laçarote de oferta, sejam um presente da ignorância da sua obra. Da pessoa que era Pessoa, há várias teses, plasmadas ou não dos próprios autores que constroem as teses sobre a "figura" de Pessoa, e se não plasmadas quantas vezes misturando o artista com obra numa espécie de ficção tridimensional baseada na fórmula: Pessoa + Obra = ao Pessoa que calculo que fosse... ou que gostaria que fosse ou que dá jeito que seja, ou que eu teimo que seja ou que "ai dele se não for" e por aí fora.
Existem lutas por espaços académicos que não facilitam a obra arqueológica? Não sei, mas é provável... Existem lutas ideológicas com a mesma consequência? É provável. Será que noutro país europeu a sua obra já estaria, pelo menos, mais estudada? É bastante provável que sim, ou talvez não, e esses problemas que nós temos sejam comuns a muitos países. No mundo editorial há razões para que o desconhecimento prevaleça? É provável que sim.
Um dos problemas, facto para o qual já alertei várias vezes ao longo de anos, prende-se também com a cada vez menor atenção dada aos estudos humanísticos, por assim dizer, dando primazia à tecnologia e cursos que a ela conduzem.
O que se pode fazer para resolver esta questão? Bem, Teresa Rita Lopes diz ter vontade de reabilitar o poeta o que já é muito bom que alguém o queira fazer em termos académicos, (embora não morra de amores pelo mundo académico sublinho que algum rigor que possa ter faz, de facto, muita falta), por outro, podemos esperar que a conta gotas saiam inéditos mesmo que estrategicamente colocados por entre a obra já publicada.
As edições críticas são o suporte de uma leitura de Fernando Pessoa e se houver dúvidas quanto à qualidade da edição há sempre alguma ponta por onde "agarrar", alguma pergunta que se pode fazer, alguma investigação na qual possa (tendo alguma fé) tirar uma dúvida sobre uma palavra ou outra.
O anagrama de Pessoa pode tornar-se cada vez mais denso à medida que vai sendo explorado exactamente pela inexactidão de algumas edições que apenas dão a impressão de serem "seguras" ou "fiáveis" ficando o seu estudo semelhante a uma sobreposição de anagramas onde se cruzam os do autor e os do autor-leitor.
Para além disso, e essa é a melhor parte desta história rocambolesca do poeta e seus leitores, há poemas (lindíssimos), fragmentos (sensíveis), escritos (inteligentíssimos), frases (magníficas), ideias (ultra avançadas e originais), livros, que enchendo estantes, nos permitem lê-lo, interpretá-lo devagar.
Temos, portanto, um banquete crítico à nossa espera e até um poema, um só poema, em ensaio transformado, ensaio ao qual nos entreguemos de viva voz e vivo coração pode ganhar a dimensão de uma experiência para a vida.

(Cynthia Guimarães Taveira)


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Lugares sagrados



Estás a dizer-me:
- Cada pedaço de terra, cada paisagem, cada cenário por onde foste passando era sagrado, só que não o vias.
Penso ser isso óbvio, basta que haja história para que esses pedaços de terra, essas paisagens, esses cenários possam ter sido sacralizados um dia...
- Não compreendes o que digo. Mesmo que nunca tivessem sido sacralizados e reconhecidos como tal eles já faziam parte da tua história sagrada sem que te desses conta. A virtude está em perceber como todos eles, agora que os podes repetir, fazem o sentido da tua história. Passarás por eles outra vez mas olharás para eles como se os lesses. O passado só pode erguer-se à tua frente quando efervescente de sentido é o teu futuro. Se assim não for, resta-te a infância como lembrança e não alcanças esse lugar onde, por onde passas de novo, é possível que avances por entre caminhos invisíveis, outros tais que mais tarde reconhecerás como se os soubesses.

(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Imperfeito vento



Os livros que escreves
Ordenam o teu caos em palavras
São lembretes amarelos
De compras que não justificam
A ordem inalterada dos deuses
Lineares, eficazes,
Vão enchendo a dispensa
Na firmeza dos próximos passos
E sempre é breve...

Os deuses aparecem em sopros
Com máscaras do que não são
Incaptáveis em livros
E nem em surrealismos vão

É no intervalo do imperfeito vento
Que eles sempre vivem e sempre estão.

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Iniciação à Leitura de Fernando Pessoa e Iniciação à Leitura dos Leitores de Fernando Pessoa



Houve um tempo em que havia profetas depois... Depois isto endureceu, então no último século, endureceu ainda mais, e restaram os poetas nos seus acessos de loucura expedita na revelação. O afastamento da dimensão múltipla dos homens, devido à "especialização" temática e gestual concedida "generosamente" pelos efeitos da Revolução Industrial conduziu-os, inevitavelmente (?), à leitura parcial das coisas, (efeitos do trabalho sequencial fabril - febril) causando artrites (atritos) e artroses (atrasos atrozes) - os "erres" parecem empatar a palavra... - crónicas. O primeiro empate é óbvio: a confusão entre profecia e adivinhação que confere o tom "irremediável" àquilo que é apenas "revelação" subsistindo no limbo atemporal até que seja confirmado, ou não, não havendo obrigatoriedade alguma a que os factos revelados se comprovem (quando condutores à desgraça até é bom que nunca se cheguem a comprovar...). O segundo empate é o da confusão entre profecia e poder (tirando os poderes proféticos cujo orgulho tende a ser imediato), há uma leitura igualmente errónea e parcial uma vez que, no concreto e na vida real, tais capacidades se tornam um fardo, uma permanente marginalização de qualquer espaço social. Se estou a inventar? Não, basta ir à História... E, por último, e tendo tais funções passado para as mãos dos poetas (malta de esquerda leiam o Manuel Alegre anos antes do 25 de Abril e a sua conversa com cravos - nem os homens de esquerda laicos se escapam ao dom) são, tantas vezes, alvo de leituras erróneas e parciais, provindas de nós, leitores, produtos de comportamentos intelectuais fabris, recolhidos em tocas ideológicas (as ideologias são uma misturada de Revolução Industrial, Messianismo e platonismo - a única Revelação que foi dada a Platão foi a da sua própria morte..., o resto foram exercícios demonstrativos do mito e entender isto custa ...). Convém então lembrar que a leitura pode ser uma forma de arte. E como? Basta rever os princípios do rito que estão presentes na construção de uma obra de arte (que como já referi começa e acaba na liberdade não deixando de ser um Rito). Outro princípio é aquele que diz que o artista se transforma a si próprio enquanto transforma a matéria prima. Outro princípio está em ir além do mestre, "matando-o". Todos estes princípios (porque necessitamos sempre de pontas por pegar senão cai-se no vazio vazio e não no vazio cheio - é este o erro do budismo acelerado e importado aceleradamente, aliás, esta visão acelerada também é produto da formatação do pensamento por via do decréscimo do trabalho manual... E estou convicta que nas aldeias japonesas muitos sabem disto - a elaboração de uma e uma só espada tradicional de samurais, dentro de uma família que possuí o segredo da sua elaboração, demora mais de um ano, todos estes princípios, dizia, podem estar subjacentes ao acto que é ler. A qualidade não é mensurável por se mover nestas águas. O acto de ler poesia, em voz alta ou não, é em si próprio um acto criativo. Se o autor não está ausente, o leitor também não o está e tratando-se nós de seres holísticos (embora muito esquecidos disso) imaginem a quantidade de possibilidades que vós, leitores, escondem dentro de si. Fernando Pessoa fragmentou-se todinho para que um dia os homens fossem poetas. Fragmentou-se em busca do seus leitores futuros, parte das suas saudades, iam para aí. Pelo caminho, sabia bem, teriam revelações, como ele as teve. Uma delas foi essa dos seus leitores futuros. Mas sabia perfeitamente que a visão parcelar das coisas contrariava a natureza humana que tende para o Absoluto. Então aqui em Portugal, nem se fala. E o que ele sublinhou isso... isso e a matéria-prima que é a língua portuguesa.


(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Um dia...




As crianças têm coisas destas sobretudo quando conseguimos algum silêncio no universo do nosso mundo adulto sempre mal arrumado e bem arrumado para as visitas... o exercício de Português pedia ao aluno que acabasse as frases. Era-lhe dado um sujeito da frase e o resto era com ele,  isto para que ele distinguisse o Grupo Nominal do Grupo Verbal na moderna línguisitica saída de um qualquer programa de computador. “Mostra”, pedi-lhe, para que pudesse ver se havia alguma coisa a corrigir.
Uma das frases tinha por sujeito dado: Os poetas. O rapaz acabou da seguinte maneira: fazem um poema todos os dias.
“Os poetas fazem um poema todos os dias”, melhor que qualquer oração, verdadeira brisa de Elias escrito num lápis tão leve que custava a ler.
Andei uns anos a ler umas coisas sobre Portugal e também andei uns anos por aí a ver o que via e não devia. Das coisas que li ficou-me uma certa tradição poética do país. E ficou também a importância dada à língua por poetas, escritores e até governantes. Ficou-me assim uma espécie de promessa misturada com uma espécie de evocação da língua portuguesa como se ela fosse, na sua essência, uma reunião das duas.
Creio que Pessoa teria gostado de ler esta frase do menino. Muito dele há igual àquele outro do seu poema que anda pelo Outeiro a correr e a jogar com pedrinhas. Tive mesmo pena que o poeta não estivesse ali ao meu lado. Teríamos olhado um para o outro e dito ao mesmo tempo:
“É esta a pedra invisível do novo tempo. Aquele no qual todos os homens farão um poema por dia na absoluta liberdade de poder escolher não o fazer”.
(Cynthia Guimarães Taveira)