Mais vale o assunto ser abordado directamente. Passo a vida criar. As semanas passam, os dias passam e digo sempre o mesmo. Não fiz nada de jeito. O meu ouvinte tem muita paciência para esta insatisfação e diz sempre o mesmo. Diz para parar e para observar os dias anteriores e, os dias anteriores são afinal cheios de tudo. Pequenos desenhos a preto e branco quase como quem não quer a coisa, pequenos textos, pequenos cozinhados inventados ao sabor da hora, pequenos estudos que me levam a dúvidas e a conversas, pequenos temas que me intrigam o cérebro e me obrigam a soluções criativas, uma máquina de costura abandonada levada a um vizinho para arranjar torna-se imadiatamente no pretexto para fazer um saco para colocar as toalhas de praia. Os amigos telefonam, um a seguir ao outro e as conversas não duram menos de uma hora. Quando chega a noite penso sempre que não fiz nada e a resposta é um sorriso. Aberto. É que, na verdade, sentir-me-ia mais completa se montasse um espectáculo todos os dias e erguesse as tábuas do palco com pregos e martelos, e pintasse os cenários e fizesse o guarda-roupa depois de o pensar e escrevesse o texto da peça e dirigisse os actores e fosse para cima do palco e representasse e me sentasse na plateia e aplaudisse. Só assim pensaria que teria feito qualquer coisa porque teria feito tudo. É este um problema com o qual se lida. Esta fome de actividade criativa. No repouso imagino as exposições de pintura que faria, se pudesse. Como organizaria o espaço. Como tornaria tudo numa memória de um tempo que não voltará. Mas os lugares da visibilidade estão ocupados e muitas vezes mal ocupados por gente que afasta outros com os pés e a minha actividade criativa fica fechada entre os muros que pintei com ondas do mar, como um segredo do qual ninguém quer saber, nem pergunta, nem se interessa e, quando lamento em voz alta o facto, a resposta vem contemplada com um sorriso: "Os outros não veêm o que fazes, mas Deus vê". E é desta forma que tudo fica resolvido, o coração sossega por segundos até à próxima insatisfação, ao próximo desassossego que me dizem que nunca faço o suficiente, que devia ter nascido num qualquer século, quando não havia especializações e podíamos ser os nossos próprios criadores do teatro da vida sem que ninguém nos afastasse, nos condicionasse perpetuamente como agora. A exuberância e visibilidade internas são dádivas para Deus, sobretudo quando os homens andam cegos, egoístas e incapazes.
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