segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Real

 


Na noite passada sonhei que alguém, que mal conheço, tinha dito que tinha almoçado uma comida da qual nunca tinha ouvido falar, “ruelfa”. Acordei, estremunhada e escrevi num bloco a palavra. Procurei no Google e nada. Há coisas que parecem não ter sentido nem nos sonhos nem naquilo a que se chama vida concreta. Comprei o Expresso e lá dentro vinha uma entrevista a Hervé Le Tellier, um jornalista e matemático com sintomas de ateísmo que pergunta se temos provas de que este mundo é real. Apeteceu-me responder-lhe que não é tão real como pensamos, mas que tem a sua parcela de realidade, se assim não fosse estava fora da realidade o que é impossível. Tal como o almoço do vagamente conhecido há-de ter a sua parcela de realidade nem que sejam as letras juntas que dão a palavra “ruelfa” e onde pode caber tudo, desde cebolas caramelizadas a pargo cozido. Muito provavelmente aquilo que me chamou a atenção no sonho não foi o mais importante. O nome do prato não interessava, mas sim o facto de ele ter almoçado. Ironicamente a pessoa que conheço vagamente tem vagas ligações à filosofia e o almoço, neste caso, trata-se se uma comida substancial, para alguns, a refeição mais importante do dia levando mesmo à dispensa de jantar. Lembrei-me da Bíblia, e do livro com sabor a mel, ardente, porém, no estômago, dado a Ezequiel e a João, o Apóstolo. Este fogo estomacal tem a ver com o estado alterado de consciência, induzido por drogas ou não, “ao natural”, como costumo dizer, mas aparece como alimento na Bíblia: um livro doce ao paladar e amargo no estômago fazendo oscilar os humores do fígado, alimentado por ácidos, revelando os efeitos das Palavras de Deus.  No mesmo jornal, o Expresso, li hoje de manhã um artigo de um psiquiatra, José Gameiro, que conta a história de um paciente perdido em terras de África e que acaba por perder a mulher que o deixa, porque ele se tinha esquecido de que ela era Antropóloga e que, por causa disso, conhecia os costumes da tribo com quem ele iria contactar e que passavam pela partilha do leito com uma das mulheres da tribo em jeito de oferta.  Os planos cruzam-se e nem sempre são uniformes. Em ambos os casos o conhecimento provoca alguma amargura e, no entanto, a Luz que ele traz parece rematar as histórias. O alimento, ou conhecimento predominam sobre a amargura, ao contrário de Hervé Le Tellier quando diz frases como “estamos programados para morrer”, como se fôssemos computadores ou esta, “Temos esperança porque necessitamos de serotonina e de dopamina”. Esta visão puramente materialista das coisas obriga o matemático a encalhar num beco sem saída e, a única saída questionável diz respeito à realidade desta existência. Questiona o autor se, quando bebe café, estará mesmo a beber uma café e se o café e ele são algo de real. A leitura de Fernando Pessoa talvez o elucidasse: tudo é mental, no entanto, tudo é, faz parte da realidade não a preenchendo na totalidade. A Antropóloga previu (e não antecipou como hoje se diz) o comportamento do marido porque conhecia os costumes da tribo e, provavelmente, conhecia o marido que tinha e reagiu em conformidade com aquilo que lhe ocorreu na mente antes mesmo de acontecer, deixando o marido incrédulo. Mentalmente o facto estava consumado na cabeça dela. Tinha a sua parcela de realidade e foi o suficiente para agir, pegar nas malas e ir-se embora. Falta-me revelar o essencial:

Há uma semana atrás tive um sonho que ontem se tornou realidade e a noite passada voltei a sonhar com a mesma personagem, desta vez, alimentado por “ruelfa” e acabei por escrever esta história. Os acontecimentos de ontem foram tal e qual aquilo que tinha sonhado a primeira vez. O segundo sonho provou que a personagem tinha “recebido” o meu alimento mental e se tinha comportado exactamente como tinha previsto. Ruelfa, é portanto e, neste caso, o alimento dos sonhos e que há nos sonhos. Onde fica a realidade no meio de tudo isto? Em toda a parte. Até porque ambos, sonhador e sonhado, recebemos exactamente o mesmo alimento mental. 

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