sábado, 4 de setembro de 2021

O Demonstrável Mundo Novo


 

Há quem admire a utopia sem a imaginar primeiro. É assim que se vai construindo o mundo das causas. E as causas de hoje têm todas a ver com o conforto. Bem, não é bem assim. Têm a ver com o conforto elevado à potência de luxo. Mas não se pense que é um luxo qualquer. É o luxo do regresso ao útero sem que este tenha alguma coisa a ver com práticas respiratórias arcaicas provindas do yoga. A América, construída ao tiro, dá uma grande importância à sociedade civil. Nada contra. Lembro-me de ouvir a história do gordo que queria uma porta especial pela qual pudesse passar. Fez uma petição, as pessoas sensibilizaram-se e conseguiu uma porta suficientemente larga num qualquer edifício. A utopia por ele imaginada não passava pela dieta, passava por uma porta. Era o dever da sociedade dar-lhe atenção e colocar portas para que pudesse passar sem se sentir discriminado. O mesmo para todos. Para cegos, acessos fáceis, para deficientes rampas de acesso, para paranóicos com medo de portas, buracos por onde se possam enfiar, para construtores de portas, portas suficientes para alimentar a família, para os que não gostam de  portas, janelas, para os canhotos portas que abram ao contrário, para cada um o nível de conforto suficiente para que não se senta atirado para um qualquer canto da sociedade, porque somos todos iguais, com os mesmos direitos e temos o direito fundamental de não nos sentirmos desconfortáveis no mundo e, para isso, temos de ser aceites na nossa diferença (afinal não somos todos iguais). O mundo é encarado como um fato de alta costura feito à medida de cada um onde todos sejam irremediavelmente felizes e onde a tecnologia, muito limpa e respeitadora do planeta, exista para que possamos ter uma existência o mais comprida possível, ficando nela extremamente bem instalados, aceites na nossa diferença,  para que possamos morrer com duas centenas de anos, com um sorriso na cara e dizendo que fomos extremamente felizes, sem problemas nem atritos como se nunca tivéssemos nascido, nem feito anos e tivéssemos permanecido no nosso torpor uterino, quisá a chuchar no dedo, envoltos na placenta protectora das causas que se tornaram efeitos. Já Guénon observava que, segundo o pensamento tradicional, as causas já continham o efeito. Neste caso não encontro outro senão o regresso ao útero como único paraíso possível uma vez que "outro reino" é impensável. A ideia de ir diminuindo cada vez mais as desigualdades tomou o freio nos dentes e cresceu, amadureceu e passou à ideia de ir progressivamente integrando a diferença para que todos sejamos iguais. Na natureza isso não existe e o que marca o devir é exactamente o facto de existirem sucessões de diferenças que vão desenhado o rio e não há um rio igual ao outro. Não há, mas pode haver, a utopia afirma que no dia em que a diferença for elegível e, desta forma, se igualizar relativamente às outras diferenças e à igualdade mãe, os rios, e toda a natureza não terão direito à descriminação e os seus leitos serão desenhados de acordo com regras específicas que os hão de tornar iguais uns aos outros: não haverá um rio maior do que o outro e os desvios dos mesmos serão todos iguais. A sociedade e a natureza serão feitas a régua e esquadro e a árvore não terá galhos, mas apenas um galho onde os macacos se sentam todos juntinhos. Não haverá superior nem inferior e a linha do horizonte é a única possibilidade (já começo a perceber os terraplanistas - são uns visionários). Em termos geométricos até não está mal pensado. Segundo a tradição, a velhinha cruz tem um plano horizontal e um ponto central a partir do qual é possível a ascensão pela linha vertical que a cruza. Tudo certo até aqui. No entanto, sobra-nos o problema do galho e dos macacos. Se eles são todos iguais no plano horizontal há-de haver um a quem lhe calhou o ponto médio do galho e é nesse ponto médio que é possível a ascensão. E lá vai o macaco trepador, ascendendo e estragando por completo a tal igualdade confortável uterina onde estávamos todos tão bem, sem que ninguém se destacasse para que ninguém fosse considerado um não-integrado nesta sociedade utópica onde boiávamos tão descansados no líquido amniótico. O macaco ascende e (veja-se o escândalo) nasce. Nasce e de cabeça para baixo porque a cabeça é a raiz da árvore invertida. Isto dos símbolos é uma chatice e o nascimento estraga tudo. Quando servimos causas convém ver a que utopia pertencem. Por instantes, tudo nos parece um paraíso no caldo das causas e, um dia, alguém nasce e desarruma tudo outra vez. É a vida. E o devir. Sim, o mesmo que é simbolizado pelo rio que passa e não há um igual ao outro, para lamento de todos os que agora abraçam as causas sem lhes conhecer os efeitos que estas já contêm. Enfim, convém sempre haver alguém diferente, nem que seja para ir avisando que não, não somos todos iguais. Na natureza nada é e a mesma espelha o céu. Ups! Não devia ter dito céu. Ele está acima. E o Inferno está lá em baixo. Tanto um como o outro estragam tudo, logo agora que estava tão bem no Paraíso. O problema é de quem está no meio dele. Raio do macaco, é que não pára sossegado!

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