quinta-feira, 30 de setembro de 2021

O doce mel da escrita

 


A escrita para agradar tem sempre as palavras bem medidas, os sentimentos regulados a tal ponto que parecem ser institucionalizados, senão mesmo, instituições eles mesmos e o comedimento do pudor entrincheirado entre uma ou outra observação ligeiramente provocatória em forma de gracejo infantil. Este tipo de escrita encharca tudo com a água do lacrimejo próprio das carpideiras de encomenda e amiúde aparece  emparelhada com a aprovação da modernidade, conseguindo vislumbrar nela os focos de luz necessários à esperança ainda que esta última seja coisa vaga e indefinida. Chamar o fogo, a carne e a vida pelos nomes não consta neste tipo de escrita soft-filosófica à procura de votantes e abençoada pelas multidões de analfabetos da alma. Tanto dó provoca a quem a alma luta para não se afogar neste mar de musas "afreiradas", tanto torpor fazem sentir a quem a insofismável verdade de se ser é incontrolável por entre escritas tornadas florestas negras de sofismas de uma ortodoxia da contemporaneidade. Este tipo de escrita revela o estado caótico da cultura, o mesmo demonstrado pela dança moderna, caos da alma tornado corpo com trejeitos de epilepsia vendidos como se de arte se tratassem. E há qualquer coisa de sujo nisto tudo, como hippies que não o foram na devida altura e que o são agora não lavando o cabelo por ser coisa natural que a poeira do cosmos, tão aplaudido, penetre os filamentos, outrora tentáculos extra sensoriais do corpo. Há uma toxicidade na novi-arte impregnada de visões obscuras e justificadas com aglomerados de palavras que, assim dispostas, parecem reclamar um sentido que não possuem. É uma novi-arte descalça no asfalto e não na terra batida de Woodstock, deixando os pés cinzentos, de betão, imóveis e mortos como as pseudo ideias que dizem transmitir. Há grupos de gente que seguem  este tipo de escrita que vai buscar aqui e ali laivos de cultura obtida numa biblioteca rapidamente, descontextualizando-a e tornando-a visível em teatros com gemidos demasiados audíveis, gritos e expressões aflitas ou dolorosas sem sequer lhes passar pela cabeça o que é a Melancolia de Dürer que não necessita de uivos, mas tão só de um livro que não se entende e de um céu que não se alcança. Parecem lesmas estas personagens da cultura instalada, verdadeiras lesmas que absorvem o fumo dos carros, as vidraças por lavar, as “avant-gardes” psíquicas que proclamam ter descoberto a pólvora. Os melodramas de literatura de cordel são hoje preenchidos com lobbys gay, lobbys doenças raras, lobbys climáticos, lobbys de cannabis misturados com a cocaína do artifício, o teatro do absurdo elevado à intelectualidade demasiado visível para o ser. Constrange-me esta criação feita em cima das mesas das esplanadas da cidade ou em traseiras de semi-teatros que é, sempre e sempre, chamada de “trabalho”, como se a criação fosse trabalho... são fornalhas de gente que há décadas se movem neste bailado contemporâneo sem eira nem beira e que vão espalhando coisa nenhuma ao longo do tempo porque, para eles, o mundo nasceu com eles e o passado é só um manancial donde podem retirar algumas ideias contrastantes, sempre contrastantes, com a mensagem, essa sim, verdadeiramente moderna e oca que dizem estar a transmitir. A minha alma enoja-se só de os ver a agitarem-se nos espectáculos nocturnos em qualquer jardim da cidade, ou escrevendo docemente o mel enjoativo que se entorna de forma pegajosa nos candidatos à cultura e os impregna de dessacralidade até à medula e os torna todos fraternos, iguais e, por isso, absolutamente nada livres, mas presos à “originalidade” que para eles está sempre à frente do tempo e não atrás dele.  Já não há ateliês, há mesas de trabalho, funcionários culturais, administradores de sentimentos imediatistas como é qualquer uivo de qualquer lobo à lua. A beleza perde-se e exclui-se porque não traduz, nem de perto nem de longe, a psicadélica desventura do desnorte e a arte, em vez de luz, a escrita, em vez de guia, torna-se o cinzento que é cor nenhuma, o branco sujo de uma aurora que nunca foi consumada, o diâmetro de trapézio irregular, a forma mais absurda de todas porque nem sequer a proscrita inversão dos candelabros permite. E pedem o nosso perdão sistematicamente como se só fossem crentes nele e nunca em algo que verdadeiramente os transcenda? Como se o nosso perdão nos salvasse, a nós que já estamos salvos por não acreditarmos nessa escrita que ensopa até as raízes, nessa novi-arte cujo valor é nulo. Não é a nós que devem pedir perdão, é a vós mesmos que se encontram nessa papa distribuída por várias tribos, mas ligadas à árvore-mãe do “avatar” das naves espaciais ou a um comunitarismo desnaturado como quem se instala no Alentejo a construir a sociedade perfeita cheia de compreensão, quando no que fazem, não há nada para compreender. O meu digestivo é a memória e o cheiro de outras artes. A escuta interna onde só encontro quem lá está e sabe absolutamente o que aqui estou a escrever e sabe que o que escrevo não é para agradar a ninguém, nem satisfazer, nem encher a barriga de doces, nem proclamar vencedores. Antes pelo contrário. É para desagradar aos não exilados. Para os expôr no pelourinho da Verdade, para os sentar num burro que anda para a frente enquanto os castigados andam para trás para ver se alguma coisa é reposta. É tudo mau aqui. Concreta e absolutamente mau. Como um exílio. 

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