sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O belo


 

Estava noutro dia a ver um filme quando uma das personagens chamou a atenção para outra para o facto de, em muitas línguas, a palavra “mentir” ser um verbo e de a palavra “verdade” raramente o ser. Achei graça, parecia coisa de António Telmo quando observa à lupa, e com extremo cuidado a língua portuguesa. A verdade é exacta e o grau ilusório desta existência está, apesar disso, contido na verdade como seu eixo e motor. A meia verdade é condição da existência, embora não seja meia, seja apenas um pequenino indício dela que se espalha depois pelas acções, pelas palavras, pelas cores, pelas almas. Dizia ontem cá em casa, num misto de revolta e de firmeza: “Peço imensa desculpa, mas gosto de colunas de mármore. Gosto da visão delas num patamar de pedra que dê para uma paisagem tão alta que seja possível fazer companhia às nuvens e donde se possa ver todos os amanheceres mornos e novos, sobre as árvores, sobre o mar, sobre o manto branco do vapor de água enquanto leves cortinas claras esvoaçam com a brisa que lhes toca como uma carícia.”Para mim, isso é a beleza e não prescindo dela, nem a troco, nem a substituo, nem permito que nenhum outro “projecto estético” moderno possa conviver, lado a lado, com essa visão interior que me acompanha como epifania daquilo que é belo. E como é belo, é verdadeiro. Não há Picasso que derrube essa imagem, por mais intelectual que seja, por mais que se entenda que o homem é um conjunto de fragmentos que, quase por sorte, se alinham numa possível caracterização da imagem humana. Neste época moderna, este tipo de intransigência é logo apelidado de fanatismo, conservadorismo cego, algo retrógado... há um conto sufi que fala de Jesus Cristo a passar numa estrada quando se depara, em conjunto com aqueles que o acompanhavam, com um cão morto à beira do caminho. Todos voltam a cara e comentam o facto horrorizados. Cristo, porém, repara nos dentes de marfim do cão e diz serem belos, brilhantes e reluzentes. Nem a morte o desviou da verdade da beleza. Evidentemente que foi mal tratado, moído com chicotadas e espetado com pregos. A heresia que a verdade é, tal como a da beleza, choca os verdadeiros fanáticos deste mundo. Os que não possuem qualquer discernimento, os que não reconhecem o eixo, o centro e o motor da própria existência e, com a maior leviandade, pelo puro prazer de se estar vivo e não morto, pela euforia de se estar vivo por não se conhecer a outra face da morte, proclamam que o inestético, o feio, o aberrante é equivalente, em termos intelectuais ao belo. Quando a intelectualidade é reduzida à sua capacidade mecânica e, por isso, quantitativa, nem se trata de relativismo no juízo aquilo a que se assiste. Trata-se de um paupérrimo jogo de damas em vez de um riquíssimo jogo de xadrez. É assim que Picasso, a grafitização, a arquitectura moderna, etc e tal e imagens de beleza conseguem viver lado a lado, coexistido alegremente no mesmo departamento mental da mentalidade moderna. E exctamente com o mesmo valor, como as peças de um jogo de damas. Algo frívolo, uma simples e lúdica estratégia para que haja um casamento com o mundano e não um complexo jogo de xadrez, entre-cruzando peões, reis, bispos, torres e rainhas, com as suas personalidades diversas e cuja conquista desejada é a de um Novo Reino. Esta comparação pode ser aplicada até no cartaz escandaloso da candidata Garcia que diz que irá fazer tremer o sistema, levando os politólogos a estremecer de raiva. Se observarmos bem a política aberrante em que andamos envolvidos veremos que o valor das lindas peças em jogo é todo igual. Porque é que o sistema treme? Porque deixa que os extremistas se aproximem cada vez mais do poder. E porque é que o sistema treme para os extremistas? Porque os impede de chegar ao poder... a profundidade e a inteligência da política actual não passa disto e os reinos, que tinham personalidade, História, passado, peso e propósito há muito que foram abandonados como um jogo de xadrez com todas as peças derrubadas, não por nenhum xeque-mate, mas por ter sido invadido por damas e senhores, frívolos de uma corte de esfarrapados que se distraem nas tardes aburguesadas, a bebericar chá, abanado o leque, se estiver mais calor, para conquistar o mundo porque todos eles são príncipes deste mundo e nunca reis ou rainhas de qualquer reino cujo perfil é imediatamente reconhecido ao ponto de aparecer nas moedas trocadas entre reinos... De maneira que Picasso pode ser engraçadinho como um bebé cujas fraldas o fazem parecer um pato, mas a grandeza da imagem de beleza, pairando acima das nuvens, entre colunas (há muito se esqueceu que entre as colunas só pode reinar a verdade), persiste teimosamente no meu espírito ainda que, por causa disso, tenha de renunciar a esta arquitectura moderna cujas rectas geladas fazem a delícia de Lucifer, lá onde se encontra, no lugar gelado da pirâmide invertida. É assim que começa a nascer uma verdadeira desobediência à lei da modernidade a qual nada mais é senão a redução do intelecto a um sistema binário sob a capa do relativismo, da hiper-tolerância  (onde é que já vai e tolerância simples? E o Amor, consta que em tempos houve) ou sob a capa do pacífico-agressivo ou pior, da total indiferença e hipocrisia que terão os seus “avatares” nas próximas gerações que já se preparam para isso, agarradas ao ecrã (como verdadeiro mundo) e às causas ensinadas nas salas de aula com as quais hipocritamente concordam só para não terem chatices. A geração futura é a mais bem preparada nestes tópicos, para além da soberba, sua matrix, que os ensinou a sentiram-se superiores porque “leram” na Internet as “gordas” das notícias, que são afinal escanzeladas... Alegra-me saber que não cedo nem um milímetro na minha falta de tolerância no que toca ao belo. É a taça por onde bebo a bebida da imortalidade, é a cornucópia da abundância que me permite ainda sentir e não dizer que sinto. Porque o que se diz, actualmente, é uma mentira em acção, podia até substituir-se o verbo “dizer” pelo verbo “mentir” que ninguém notaria a diferença. Excepto uns poucos, intransigentes e demasiado apegados a uma determinada visão da beleza. Não por mérito, mas porque nasceram assim. O mérito é dos príncipes deste mundo que se esforçam por herdarem qualquer coisinha. Em vão, porque só herdarão este mundo, nunca um outro, e muito menos um Novo Reino. 

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