segunda-feira, 15 de julho de 2019
A Salvação
Há uma nítida tentação de se escrever para se salvar o mundo do mal. Não me ocorre salvar o mundo. Chega a ocorrer-me salvar o mundo de ele próprio. Escrever para fugir do mundo. Escrever contra o mundo. Escrever a favor do mundo. Salvá-lo é entendê-lo à beira do abismo. Para cada salvador do mundo há uma solução. Um remédio de salvação. A panaceia para os salvadores do mundo nunca é universal. E são tremendamente aborrecidas. Tão aborrecidas como os salvadores das almas. Deviam existir complementos literários. Duas prescrições antogónicas, dois olhos. A literatura tende a parecer-se com um ciclope. Para os mais místicos esse único olho é o frontal que, como a glândula pineal, dá acesso a outros estados, a outras pecepções. Depois os escritores mais místicos erguem a taça do que percepcionaram e dizem: "À nossa!" Querendo dizer com isso que o que viram ou percepcionaram vai contribuir para a salvação do mundo. Para quê? Se tudo são ciclos o mundo já está salvo e perdido e salvo de novo há muito tempo. Se ficarmos calmos, se conseguirmos ficar calmos por entre tantos salvadores do mundo e tantas almas perdidas segundo o ponto de vista dos salvadores das almas, do mundo e de tudo o que possam encontrar pela frente como glutões, o que resta somos nós. Sós. A sós com os nossos pensamentos. Quando pensamos. Nós, a sós com os nossos sentimentos quando sentimos. Quando os salvadores concordam uns com os outros tornam-se extraordinariamente perigosos. Quando não concordam tornam-se também perigosos. A sós connosco não somos perigosos para ninguém. Se formos perigosos para connosco salvamos o mundo de nós porque o perigo fica concentrado no pequenino ponto que somos. Se não formos perigosos para connosco o mundo e o caminho dele não interessa para nada porque é quando começamos a querer salvar o mundo, as almas dele, ou até a alma do mundo que começamos inevitavelmente a ser perigosos para nós, para os outros e para o mundo. Quem é que quer, de facto ter razão? Ou quem quer sentir mais do que os outros? Percepcionar mais que os outros? Ou quem quer ter aquela mania irritante de que "todos contribuimos" com o "nosso olhar sui generis" para a salvação do mundo dos outros e para o caldo entornado logo que há discórdia em maior ou menor grau? É por isso que não quero saber do mundo, da salvação dele, das almas que há nele e da alma do mundo. Não há frescura nenhuma em se querer fazer isso ou contribuir para isso. Todos querem isso, de uma forma ou de outra. A humanidade é um bando de gente bem intencionada e profundamente desastrada. Uma geringonça desengonçada. Também me choca quando me dizem que somos um "aglomerado" biológico, genético, social e para os mais místicos com o bônus (que sorte!) de uma alma individual. Lembro-me sempre de contraplacados não sei porquê ou então ponho-me a imaginar percentagens. 32,2 % de biologia, 18% de alma individual e por aí fora. Uma autêntica conversa de tolos. Para não dizer de doidos. O complexo de "Fernão Capelo Gaivota" invade todos os espaços, até os mais elitistas da intelectualidade, mesmo que venha com muita literatura e palavras caras à mistura quando estamos em fases decadentes de um ciclo. É inevitável. E como a qualidade é nula, como a desse romance, todos contribuem alegremente e com a tal boa intencionalidade para esse escorrega descendente e cada vez mais acelerado. O verdadeiro embrião da ascendência consiste em não querermos saber da salvação para nada. Nem da nossa, nem dos outros, nem do mundo nem da alma dele. Borrifarmo-nos nisso não é panaceia nenhuma. Não é remédio santo. É já estarmos livres disso tudo.
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