quarta-feira, 24 de julho de 2019
As tias desavindas
Conta-me alguém a história das duas tias da aldeia que tinham sido muito amigas durante muitos anos e que, logo a seguir ao 25 de Abril, ao ficar uma de um partido e outra de outro, se deixaram de falar até ao fim das suas vidas. Esta história é frequente ultimamente, não porque haja um ou outro partido, mas sim, por causa dos fragmentos, restos e rastos de ideologias, pedaços soltos de religiões, e crenças nas mais variadas teorias, desde as das conspirações até às esotéricas com os dois pés bens metidos nos lamaçais ideológicos. Assim, assiste-se a sucessivos desentendimentos, afastamentos e raivas súbitas, até aí insuspeitadas, com base, muitas vezes, nas mais estranhas razões, e na mais aprumada irracionalidade. No meio de tudo isto, sinto que tenho sorte. Depois de, entre 2008 e 2012 de ter atravessado o pântano onde conhecidos se batiam por causas e "batiam" uns nos outros por causa delas, e depois do dia em que me tocaram e me empurram fisicamente por causa dessas aberrações modernas (por mais defensores das tradições, dos arcanos, das raízes que dissessem ser), dei por mim num deserto. Lembro-me de uma pessoa chegada ter dito que me metia nos copos por pura maldade, quando os meus copos eram cheios de lágrimas... Assim, a minha sorte foi a de ter passado pelo pântano e dele ter prosseguido para o deserto, nele ter chorado um mar de lágrimas e a de quando dele saí, ver que, num campo fértil, esperavam por mim alguns novos anjos que tinham vindo do alto e alguns velhos amigos que sempre o tinham sido com uma amizade imune a essas rodas vivas ideológicas, esotéricas, conspirativas e políticas. As tias desentendidas tinham desaparecido no horizonte baço devido aos incêndios e a mais cristalina manhã aparecia com flores cobertas de orvalho...
Um cerco invisível tinha-se erguido à minha volta e só o atravessariam aqueles que passassem inúmeras provas, algumas delas mesmo iniciáticas. Outros não precisavam porque estavam dentro do meu jardim donde, aliás, nunca tinham saído.
Em épocas caóticas as tias desavindas proliferam e parecem aves mortas a cair subitamente do céu. O espectáculo é deveras triste. O mundo, por mais que o neguem, anda deveras triste. Aparecem umas Fúrias (ver teatro grego) a atravessar o palco de uma ponta à outra, a meio do espectáculo, e cantam "paz e amor". Assim como aparecem, desaparecem, o que torna a figura delas em qualquer coisa de ridículo. Pregam isso como pregadores das novas seitas de microfone na mão e palmas no fim (quando não geram mesmo suicídios).
Ora a matéria prima da humanidade são as próprias pessoas. Esta verdade parece de La Palice e não é tão óbvia assim, como a verdade da Lili Caneças quando afirmou que "estar vivo é o contrário de estar morto" também não é tão óbvia assim. Aquilo que ainda mantém o mundo de pé são essas cercas invisíveis e as provas necessárias para as superar. E o apregoar em alto e bom som "paz e amor" não só não consta do rol dessas provas como se tornam imediatamente suspeitas por, a curto prazo, se tornar o apregoador do dito numa das entre muitas tias desavindas, ou nessas aves que quedam em morte súbita do céu.
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