domingo, 7 de julho de 2019
O valor da indefinição
Tal como no êxtase, num determinado tipo de arte, ou num determinado patamar, no momento em que nos entregamos, tudo à volta desaparece e/ou fica para segundo plano. O tempo é, na verdade, inexistente, de maneira que, embora a aceleração possa contribuir para uma espécie de expressão no imediato, isso não é o mais importante. O mais importante é o facto de todo o corpo entrar numa espécie de viagem cuja urgência é o resultado final ainda que não se saiba muito bem qual seja. Esta indefinição quanto ao resultado final pode ser confessa, abertamente confessa ou pode ser escondida pelo artista em relação a si mesmo de forma inconsciente e nesse caso, não é confessa. Mas a realidade é que essa indefinição existe. Confundir arte com ciência, cuja meteorologia é rigorosa, é regredir, exactamente, por não se desejar esse espaço de indefinição. A ciência trabalha com objectivos claros, o mais que pode ter são surpresas. Arte e ciência não se opõem (até porque ambas podem ter uma relação mutualista) mas as suas naturezas são diferentes. A arte anda mais próxima de um êxtase porque contém, tal como ele, o dom da revelação. Há uma respiração parecida. Um universo único que se atravessa e se sustém no período de elaboração. Um tom, um timbre, um toque da asa de um anjo. Ao fim de alguns anos, a actividade artística, quando seguida nesta linha de honestidade interior e total entrega, esquecimento de si, e apagamento e/ou secundarização de todo o contexto e cenário envolvente, existe uma estranha capacidade que se adquire de observação dos seres. Assim como a asa do anjo toca a obra, toca também o artista. Dá-lhe um olhar vigoroso, profundo e perspicaz que nada têm a ver com a esperteza, a vivacidade ou a assertividade que alguns seres humanos parecem possuir desde a nascença. Esse olhar é um produto, um resultado de uma actividade para a qual se nasceu ao passo que quem nasce esperto, vivo e assertivo nem tem por isso obrigatoriamente, a propensão para a actividade artística. No caso dos artistas, o que se passa é duplo: capacidades que até aí estiveram em latência despertam e novas capacidades, por sua vez, são adquiridas. A marca da arte é a transfiguração, entendendo-se que o figurado corresponde ao interior do artista, e que a transmutação corresponde ao seu génio ou anjo ou duplo ou o que se queira chamar. Ambos são necessários. No êxtase místico pode haver ou não transmissão de conhecimento uma vez que o místico é passivo. Na arte, como a obra é sempre colectiva, sempre, nem que seja nessa relação entre duas entidades, ela forçosamente é uma actividade devido à dialéctica, ao movimento e ao entrecruzar entre duas realidades, a física e a extra-física. Estes pressupostos, que são tradicionais, são completamente alheios à suposta arte que se faz hoje em dia e é por isso que se assiste à possibilidade de qualquer um poder ser artista da mesma forma que qualquer um pode ter quinze minutos de fama. Quando nos desviamos destes pressupostos, aquilo com que se fica é com uma espécie de ginástica artística, sem nunca se alcançar o sublime bailado. Tem valor como exercício, quase apenas físico, enquanto a arte permite, de facto, uma transfiguração e uma transmutação no ser.
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