sábado, 6 de julho de 2019

Chovia nesse dia triste


Chovia, chovia devagar
Nesse dia triste
Em que as sombras
Não aguentaram mais
E saíram de dentro dos corpos
E via-as a navegar
Por debaixo das faces
Eram sombras, simples sombras
Mas já lá estavam há tanto tempo
À espreita, à espera
Desse gesto teu que sempre
Esteve envolvido em véus
Que disfarçavas com músicas
E canções
E lamentos de lira
Eu vi-as sair
E rodopiar de alegria e triunfo
E ficaram para sempre ao teu lado
Perto do teu rosto
Impressas na tua capa de cavaleiro
Sem norte nem verdade
Tenho a satisfação que há num jardim
Onde estão todas as flores que queira
Todas elas se oferecem e se inclinam
E murmuram nos recantos:
Poderemos ser tudo num instante.
De ti ficaram as sombras
Dispersas pelo jardim, só a forma
Sem cor nem cheiro
Nem verdade que amanheça
Nem prisão sem grades donde possam sair
Tive um amor um dia
Era um pássaro sem fim
Cantava como um cisne
Voava como um merlo de veludo
Atravessava os céus com olhos de águia
Ia e voltava como uma andorinha
Rodeava-me com danças
E julgava ser
Todos os pássaros de uma só vez
Um dia caiu morto
Mesmo junto de mim
Peguei nele e perguntei-lhe
Porque tinha morrido assim
Piou ele que foi por ser
Só um pássaro sem princípio
Para além de não ter fim
E nesse instante voou
Por já saber do início
Não bastava não ter fim...
No princípio estava a verdade
Tão escondida como as tuas sombras estiveram
Soltaste-as, viveram e dependem de ti
Dependem sempre de ti
Sou o graal que esconde Portugal
Se é sombra ou um jardim?
Isso é a prova que cada alma faz
Quando toca os seus lábios
Nos astros que rodeiam toda a esfera
Depende do pássaro que voa
Depende se a arte apavora
Depende se cais morto junto de mim
E voas a partir do início
Tive um amor que foi assim...

(Cynthia Guimarães Taveira)

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