quinta-feira, 4 de julho de 2019

O subaproveitamento em proveito próprio



Lembro-me de que quando dei aulas, no prolongamento de horário, de artes "plásticas"  (vão chamar "plástico" a outra coisa, mas não à arte) dei umas aulas em que resolvi limitar propositadamente os meios dos meus alunos pequenos, todos do ensino básico. Lembro-me, por exemplo de lhes mostrar uma aguarela oriental, em tons pastel de amarelo canário, preto e cinzento azulado, de lhes colocar apenas essas cores à disposição e de lhes pedir que fizessem uma pintura o mais parecida possível com a original, até porque era muito simples. Muito bonita e muito simples. O resultado era fascinante. Todas diferentes mas todas uma tentativa absolutamente própria e pessoal de alcançar o modelo. Em suma, limitava-lhes os meios e a criatividade surgia espontaneamente e de uma forma que só os verdadeiros artistas (já pareço o Serafim Saudade) sabiam reconhecer - lamento mas há, e sempre houve, verdadeiros e falsos artistas. Isto a propósito do subaproveitamento que torna vítimas algumas almas artísticas. Esse subaproveitamento não é mentira nenhuma, é estúpido e faz sofrer. Quanto mais capacidades tem uma pessoa mais susceptível fica ao subaproveitamento porque a sociedade, no geral e actualmente, não entende nada nem de arte nem das capacidades inerentes à mesma. Foi na agonia do sofrimento de sucessivos e convulsivos episódios de subaproveitamento que descobri que os outros não precisam de nós, nem das nossas capacidades para absolutamente nada. Na verdade, no corrente momento da história, as pessoas estão-se nas tintas umas para as outras e para as capacidades de cada um. Como anda tudo doido, isso não conta para nada. Foi assim que descobri uma verdade de La Palice: quando há subaproveitamento nasce o proveito próprio. E foi assim, também, que sobrevivi à cegueira e à ignorância que me contextualizam. De um dia para ou outro deixei de ter o sentimento de "dever", de "possibilidade de ajudar", de "mostrar o que fazia" o que para o contexto foi uma mudança insignificante, pois o contexto definitivo é o "estar-se nas tintas" mas para mim foi como achar um tesouro. Mais um porque tenho vários. O "proveito próprio" das nossas capacidades maiores foi a única forma que essas capacidades arranjaram para sobreviver no meio de cegos, ignorantes e invejosos. Descobri que ajudar os outros nas coisas práticas era o único grau de exigência que as pessoas tinham para comigo. Tudo o que fosse mais do que isso, era perfeitamente dispensável. Ninguém perguntava nem ninguém queria saber. Mas o proveito próprio é o acto mais egoísta e, porém, o mais lúcido se não queremos adormecer e/ou tornarmo-nos dormentes. O mais estranho, e que tenho vindo a descobrir é que, quanto menos contactos tenho com esse contexto que não quer, nem nunca quis saber das minhas capacidades para nada, com mais capacidades fico. É uma espécie de criação num viveiro, como uma cerca natural, feita e mantida pelo contexto, não por mim, e que acaba por resultar em algo  parecido com o que se passava com as crianças a quem limitei as cores e as formas. Foi assim que dei comigo a fazer coisas que pensava que nunca seria capaz de fazer. Em proveito próprio, claro, porque o contexto permanece indiferente à minha existência e deixá-lo estar assim sem contaminações desnecessárias e inócuas. Nunca pensei que o egoísmo trouxesse tantas benesses, sobretudo numa época em que todos são egoístas e todos criticam o egoísmo. Fazem-no de forma egoística, claro, porque o nosso egoísmo é sempre melhor do que o dos outros.

Sem comentários:

Enviar um comentário