sábado, 27 de julho de 2019
Leonor
O gosto pela obra cega-nos momentaneamente para tudo o resto. Mas é necessário que estejamos na mesma obra para nos esquecemos de nós e de tudo. Depois, voltamos ao normal como se tivéssemos vindo do mesmo sonho e parece-nos que isso é impossível. Não, não é possível partilhar o mesmo momento quase como se não estivéssemos lá, sem corpo, sem eu, sem nós. São estas as piscadelas de olho da eternidade. Um conhecimento antigo. Uma verdade mais do que tudo que, quando quer, se impõe ao tempo e ao espaço. É soberana. E todo o resto perde importância perante esses momentos de eternidade que sempre o foram. É como uma espécie de visão mística fazendo desaparecer tudo à nossa volta. Há experiências que Fernando Pessoa nunca teve. Nem sequer virtualmente nos seus heterónimos e nas suas figuras. Creio que intuiu a Aldeia, mas só a sua chegada a ela. Intuiu um Mestre nela, mas só a simplicidade dele. Nunca saiu da cidade e todo o campo para ele era um apelo. Daí que se idenficasse com a nostalgia de António Nobre. Apesar de tudo, e de uma infância ainda muito tenra no campo, a nostalgia de António Nobre era verdadeira e vivida. Pessoa chega à aldeia pela infância de António Nobre. Era aí que se encontravam, na infância, onde tudo era possível e a latência das coisas era ignorada. Mas há algo de mais profundo no Portugal profundo. Algo que provavelmente só a Ordem se Cristo soube. E Pessoa chega também à Ordem de Cristo, pelo alto, vindo de um espaço do tamanho do cosmos e sintetizando-a quase ao nível do átomo para que melhor essa Ordem fosse entendida e, em simultâneo, escondida, dependendo o pendor do pêndulo do leitor: ora compreendendo o que lê, ora mais próximo do mistério que é sempre um som indefinido. Há coisas que nunca foram escritas. Ainda há coisas que nunca foram escritas porque foram só vividas. Não como uma infância curta, longínqua e com semelhanças com o Paraíso. São só semelhanças com ele o que se encontra na infância, como quem chega à entrada de uma aldeia e ainda não a conhece. Para isso é preciso ter atravessado os tempos e tantas vezes que este é abolido. Para isso é preciso ter atravessado os espaços e tantas vezes que ele se dilui e fica suspenso no tempo da eternidade. A verdade que atingimos e que nos atinge, está no poço que fica no centro da Aldeia. Está na fonte que fica no centro da Aldeia. Está no largo principal. Está na água que sobe e desce. Nos cântaros de Leonor que vai formosa e não segura. Na ânfora que nunca se parte, nem no fundo do mar. Não no meio dia nem na meia noite. Mas na hora que medeia o dia e a noite e que não se sabe qual é. Ou antes, poucos sabem qual é.
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