quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

O sofá

Tenho o pensamento cheio de flores, a esperança cheia de borbulhas, a dor pejada de cravos, a sorte com adornos de cristal, a ironia com arquétipos, a ousadia com estames, a compaixão com auroras, e a estrada com salgueiros. Ninguém me leva pela mão para a montanha mas, quando lá chego, a minha presença é anunciada nos jornais.

Disseram-me cá em casa: "a tua pintura não pode competir com uma banana colada na parede". E não. O mundo é dos homens e das mulheres, não da minha pintura.

Envolta numa semana de pinturas na parede, andei ao tombos entre pincéis, explicações (que pouco me interessam) a crianças (com este sistema de ensino nem um cavalo de Tróia consegue alguma vitória), o livro novo sobre Fernando Pessoa, o René Guénon, as porcarias que vou sabendo na televisão às oito da noite religiosamente, como se fosse a missa da conscientização do rumo do mundo em direcção a coisa nenhuma, andei a passear-me pela Ericeira com tinta acetinada pingada no cabelo e a dizer que sim a quem reparava que andava em pinturas, envolta nos cães e nos jantares de todos eles, nas ervilhas com ovos para quatro dias, nos vizinhos que vão zarpar daqui com a malfadada Pit Bill com cara de parva e dentes afiados a ameaçar os meus canídeos, andei, com projectos de desenhos, com mais isto ou aquilo que apanhava para ler, por compulsão, e com as expressões dos outros, bi-polares, ora a desfazerem-se em sorrisos como se vissem Deus quando me viam, ora como bichos à espera de me apanharem desprevenida para me comerem. Uma semana, nesta época, com tudo o que tem para oferecer, vale por uma vida.

Depois, voltaram a dizer-me: "Ninguém percebe nada do que escreves". Pois não, mas escrevo na mesma só para que não percebam. É uma forma de alimentar a ignorância como qualquer outra.

Com sorte chego ao Paraíso. Subo a montanha sem ninguém pela mão. Não levo ninguém comigo porque, ou não vêem ou não ouvem e, lá em cima, são necessárias as duas coisas, como os Pastorinhos...

As épocas das deficiências visionárias coincidem com aquelas nas quais temos tudo debaixo do nariz, mas não vemos. É a época do Carnaval anual, como disse o perenalista. Todos falam a verdade do fundo de si para que Freud, deitado, também no sofá, os oiça e lhes aponte a raiz de todos os males abaixo do umbigo. E até o psicanalista é intoxicado pelo psicanalista que é.

O maldito corta relva aqui do lado quer fazer calar a relva e acorda toda a gente às horas que quer. A relva cresce silenciosa.

De vez em quando vou ver a mascote do esoterismo português que, como o Obelix, e várias gerações inteiras, caiu no caldeirão da teosofia, faço-o só para rebolar a rir. Temos de ir buscar divertimento a qualquer lado. O meu é este. É um pouco melhor do que a telenovela da Rosa Grilo que alimenta o imaginário, também ele, freudiano e diário das donas de casa. Mas os efeitos, provavelmente, são os mesmos, o "thriller", a emoção, a tragédia, o gosto impúdico pelo "amante" legalizado pelo crime.

Fernando Pessoa não jogava xadrez. No programa 'Culto e Oculto" puseram lá uma fotografia que parece ser do poeta a jogar. Ainda estou para saber onde é que foram buscar aquela fotografia, como aparece lá e quem lá está. O mundo está cheio de aldrabices.

Envolta na nuvem que me atinge, como o Cascão do Murilo, vejo-me a braços com o cabelo e com a tinta colada nele.  A esta hora cada um dorme ainda. Cada um enfiado no seu sonho. Somos todos universos únicos sem rosto.

Mas vou ter um sofá às flores. Posso, enfim, deitar-me no meu Paraíso. E que não me chateiem muito. Nem as feministas nem os contra feministas. O meu paraíso é outro. Com tinta colada ao cabelo, armada em empreiteira, sentada num tapete de flores. E bonita.

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