quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

A Questão

 


Já alguns me disseram não entenderem o que escrevo. É natural, acabamos com um pensamento paralelo porque temos também uma vida paralela. Mas tudo parte sempre do mesmo: a tentativa de explicação das coisas, não apenas teoricamente, mas efectivamente, na vida como acção. Embora não entendam, sei que podem entender se perceberem que se tratam de tentativas de explicação. Não são verdades absolutas, embora possam dar essa impressão. Cada vez me preocupo menos com o público na exacta proporção em que ele cada vez menos procura explicações para as coisas. Aliás, o público não me diz nada porque a sua função é estar calado e, na maioria das vezes não está, o que dificulta, e muito, a minha aproximação ou proximidade para com o público. Não está calado por uma de duas razões: no momento da leitura está ocupado a dizer que não entende ou então está ocupado a dizer que discorda sem perceber porque é que discorda. Os primeiros instalam-se confortáveis na humildade de não saberem, o que os impede de serem ousados, os segundos, instalam-se na ousadia de saber mais do que o texto, o que os impede de serem humildes. É assim que os textos não são feitos nem para gregos nem para troianos. São feitos para Egípcios. Evidentemente que poucos entendem o que quero dizer com isto, mas posso explicar: a Grécia mergulhou na Era da Filosofia e da Política, os Egípcios deixaram-se submergir, primeiro com o dilúvio, depois com a decadência natural que esse mesmo dilúvio trouxe: a inauguração desta Era do Fim. Com eles, a Sabedoria que ainda existia foi-se tornado ténue até que se dissolveu em águas turvas, característica do afastamento da Tradição. Tal como os seus antecessores pré-diluvianos, deixaram-se encantar pela magia e acabaram por alimentar monstros invisíveis que não se coibiram de crescerem e de aumentarem em número à medida que provocavam o desgaste do povo egípcio, cada vez mais decaído e confuso e mergulhado nas vicissitudes da política. Escrevo única e exclusivamente para os resquícios da memória e para os já avisados de que há monstros invisíveis que não devem ser alimentados, sob pena do desaparecimento daqueles que os alimentam. Nada, ou quase nada me agarra ao mundo ou à escrita (que para mim é quase a mesma coisa, infelizmente), excepto está sensação de dever. O prazer é quase nulo. Prazer sinto em enfeitar o mundo. As palavras só me provocam desconforto e tornam os outros desconfortáveis, exactamente o oposto do que acontece quando enfeito o mundo. As palavras são duras porque o mundo se tornou num lugar duro. Há quem pense que se escrever sobre borboletas ou flores e teimar em descrever a paisagem intacta dentro de uma moldura fotográfica que faça a separação entre o belo e o horror da construção humana actual, o mundo se torna subitamente belo. Más notícias: não são as palavras que tornam o mundo belo, é o facto de o enfeitarmos que o torna belo. As palavras só servem para despertar e ninguém acorda neste mundo como se acordasse no paraíso com um sorriso nos lábios. Acorda-se mal. Para um mundo que está mal e que é urgente enfeitar, tornar belo. E a beleza está no antigamente e está lá porque era total. O equilíbrio, a harmonia, a sabedoria conjugavam-se como hoje não se conjugam: se está presente um destes elementos, falta um outro e vice-versa. É essa totalidade que nos faz sentir a Saudade. Uma completude que hoje não temos. Se me armar em santinha e dizer que a paisagem é linda vista apenas de um pequeno ângulo, e apenas desse ângulo, não faço outra coisa senão enganar as pessoas. E pior, enganar-me a mim. Os outros já vimos que não querem explicações para as coisas ou porque segundo eles "não têm capacidade para tentar tê-las" ou porque "são super-capacitados" e já as têm". Escrever nunca me fez bem, nem o que escrevo é um acto de cura para quem quer que seja. Os que estão doentes devem dirigir-se ao médico, os que estão cegos e surdos (e nunca mudos) devem destapar os olhos e os ouvidos, acto que não é a cura de coisa nenhuma excepto da inacção de não os destaparem. A inacção nunca foi uma doença, é apenas uma opção. Esta é a questão. A da caveira é outra coisa, Shakespeariana, até porque a caveira já nem vê, nem fala, nem come, não faz nada a não ser esperar ressurgir vivificada em carne ou em luz, conforme os casos. Aqui a questão é muito mais simples, muito menos complexa (normalmente preferem Shakespeare porque é mais difícil ainda...), aqui a questão é a de ver e ouvir com ossos envolvidos em carne, em sangue e vida, algo que constitui o público. E, no momento em que começam a ver e a ouvir começam também a lembra-se e, aí, entendemo-nos porque escrevo apenas para os antigos egípcios, ou antes, para os resquícios de memórias, estejam elas onde estiverem. Até podem estar aqui, em Portugal, mas se não forem memórias, não são nada. Só quando nos lembramos é que podemos avançar e começar a ler então a questão Shakespeariana. Que nem sequer é dele. É de todos. 



terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Larvas de insectos



No fundo, o que lhes interessa é a tecnologia. Não é a ciência em si porque essa, do modo como anda, conduz inevitavelmente ao erro: a especialização esbarra sempre com outras especializações e ficam a orbitar umas em volta de outras, num ciclo sem fim, à procura da saída de si próprias, tarefa impossível num mundo quantitativo. É a tecnologia que fascina por ser precisa (dentro de determinados parâmetros) e por gerar lucro e ainda pelo facto de se confundir tecnologia com evolução sendo esta última considerada algo muito positivo embora não se perceba qual é o seu fim último, nem,  na verdade,  isso interessar a quem tem como objectivo último o lucro. Em suma, vivemos num mundo estúpido e arrogante. A mim, deixou de me interessar. Sempre que ouço alguém encantado por este canto da sereia, faço orelhas moucas. Os tiques e truques são sempre iguais, é a história da salvação contada aos pequenos robôts. Atrevo-me a sonhar com Deus durante a noite e acordo desconfiada relativamente à reprodução por réplica. Foram as fábricas que conduziram a isto. A replicação insensível e desalmada dos objectos conduziu à replicação dos seres humanos. Tudo o que fazemos e o modo como o fazemos conta. Se nos pensamos e vimos como máquinas, ou como parte de uma máquina, assim seremos e assim será a nossa vida porque nos comportamos com a imagem que construímos de nós mesmos. Descartes deve estar a rir-se. Bastante. Embora tenha sido o seu Deus mecânico que o impediu de ver muitas coisas, ele agora ri-se. O seu impulso para estar bem com Deus e com o diabo tornou-se letra viva. Bem, viva, mas dentro das possibilidades mais pequenas da vida, ao nível dos insectos. É aliás a visão das próprias sociedades actuais vistas de cima: carreiros de insectos, incansáveis e velozes. Um ser contemplativo estraga o panorama. Como é que se avisa um bando de loucos? Não se avisa. Os loucos estão loucos, é essa a sua condição. Ninguém de "deslouca", embora todos se desloquem na loucura geral. Há trabalhos que não valem mesmo a pena. Há outros que valem a pena. O trabalho interno vale a pena. Feito em nós. Uma escuta inscutável pelas escutas tão em voga. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

Lua Nova


 Diminuí a lua de propósito. Não vale a pena espelhar o sol para cegos. Diminuí o mundo porque não vale a pena um mundo sem graça. Observo da minha janela os transeuntes e são tão iguais ao que eram há dez, cem, mil anos. Normalmente o que escondem não é bom. Quase ninguém tem bons segredos, segredos grandiosos, vindos das planícies do céu. Encerram o tenebroso, o embaraçoso, o vergonhoso ou, simplesmente, o nada que carregam às costas e que se vê nos olhos. Hoje disseram na TV que o Rendeiro quando foi apanhado estava com um olhar vazio. Ele sempre teve um olhar vazio, como a maioria dos homens actuais. Somente algumas crianças ainda conservam um olhar acesso e vivo. A vida vê-se pelos olhos. Há também muitas crianças que já trazem o mesmo olhar vazio como uma marca do vazio futuro. Sinceramente já não me preocupo com o olhar vazio. Ainda pensei poder despertar este ou aquele com algumas palavras, mas a decadência do mundo é demasiado forte e visível para lutarmos contra ela. É até um acto de justiça fazer a negação da luta. Seria injusto não o deixar decair e não deixar que o fim de ciclo se cumpra. As sementes, que se podem deixar, são, por definição muito pequenas e invisíveis, escondidas na terra. São as únicas que germinam, as que estão escondidas a qualquer olhar. Prolongo o gesto de olhar o olhar dos animais e de ver neles a alma que falta aos homens. Seria bom poder dizer que um novo mundo está prestes a surgir, uma nova Era, e andar vestida com túnicas a sorrir, descalça num tapete de flores. Seria mais agradável ler isso do que estas letras de nevoeiro entristecido. Mas, a mentira é a grande inimiga da verdade. E a verdade é coisa inexistente num caminho mais além. Mais além, o que há, é uma ligação ao céu. Se quiserem chamar-lhe verdade, pode ser esse o nome. Mas nunca a mentira. A verdade é um nome, a mentira é um facto. Olhar para uma casa e ver de imediato todas as divisões é tão entediante como a desventura de uma verdade todos os dias dita. Daquelas verdades estúpidas como quando dizemos as horas a alguém. Permitam-me que vos diga que acho pouco ou nenhum interesse naquilo que escrevem. Escrevem como se dissessem as horas a alguém. Ou então mentem e dizem que é ficção. Tanto faz. A matéria é sempre desinteressante. O assunto, um dejá vu, os factos inoperantes. Restam os assuntos tomados sob a perspectiva pessoal e intransmissível, os únicos que valem a pena. Aqueles que são as tais sementes escondidas na terra, o gesto simples e humilde de querer saber mais um pouco. O resto é puro espectáculo, sem a grandeza do espectáculo. Um imenso espelho onde se banham os egóicos que nunca se cansam de si mesmos e julgam salvar o mundo ou que o mundo não se salva sem eles, o que para eles é a mesmíssima coisa. A lua, quando está mesmo diminuta, é lua nova. Invisível como as sementes e, o mundo, quando perde a graça, abandona-se a si mesmo num invisível que não compreende. É por isso que vale a pena não espelhar o sol e deixar que a inconsciência seja dona e senhora do momento, porque mesmo sem o saber, ela vagueia no invisível céu que desconhece e não alcança, enquanto ele, o céu, é dono e senhor de si e trata o mundo como um súbdito a quem dá algumas migalhas do banquete quando se lembra ou quando quer. 

domingo, 12 de dezembro de 2021

Portugal


 No meu caso, foram os genes e a memória ancestral, que não se sabe bem donde vem, que me trouxeram à consciência Portugal. Isso e o avião que, aos oito meses me fez regressar a este país. Livrei-me de educações tendenciosas exactamente na idade em que era suposto tê-las tido e, por isso, não sou católica, nem andei vestida de anjinho nas procissões. Portugal chegou até mim a partir de dentro, que é aliás donde deve vir sempre para não fazermos figuras ridículas. Assim, não caímos na piroseira do menino Jesus vestido com rendinhas, nem na armadilha do bicho-papão do "pecado", nem na pata do Portugal cinzento e salazarista, amorfo e atrasado, triste, imensamente triste, se posto lado a lado com a sua grandeza histórica. E, pior do que isso, criador de gerações que não se livraram não só do cristianismo sentimentalista como de pedir penitências a toda a hora e de lavar sistematicamente os "pecados" com água benta só porque a água lava tudo... o meu primeiro Portugal foi marinho, como aliás deve ser qualquer Portugal decente. Nascido no mar, imbuído de maresia e com memórias mais antigas do que qualquer lembrança palpável. O meu segundo Portugal, foi da terra. E lembro-me de instantaneamente, com cinco anos, ter decorado a letra de um cante alentejano, "Ao romper da bela aurora", a primeira vez que o ouvi, tal a impressão que me causaram aqueles sons graves e lentos. Depois foi o Norte que reconheci imediatamente como berço. Tudo era um reconhecimento e, daí, vir de dentro este Amor. E certo e verdadeiro e muito longe de estereótipos. A quem são dadas as injecções culturais e conceptuais em vigor no momento é-lhe vedada a porta ancestral. Confunde-se Portugal com a Miséria propagada pelos lares, com a ausência de Espírito Crítico, propagada, muito mais do que se pensa, pelo Tribunal do Santo Ofício, com capelinhas-refúgio e templos de má-língua, com procissões incensadas a cânticos de igreja profundamente enjoativos e mal cantados e herda-se esse desespero cego infligido durante séculos a tal ponto que a vida se torna uma tentativa frustrada de santidade disfarçada com laivos de Descobertas e medievalismos importados da Europa sem se colocar os olhos nas escarpas, nos abismos, nas enseadas, e no pulsar da terra e dos tambores. Até Cristo se enjoa do tanto de errado que se fez em nome Dele. Quando apareceu em Ourique, preocupou-se com as gerações vindouras e com o território português em si: um país a meio caminho de se tornar completo e com um perfil único e não com o facto de sermos ou não santos. A missão de Portugal é a de ter gente igual a si própria e única e é nisso que, no meio de tantas tormentas, ainda conseguimos ter, embora cada vez mais, aqui e ali, sendo que o "aqui e ali" tenha vindo a sofrer um espaçamento cada vez maior. O reconhecimento de Portugal obriga a um certo silêncio, a uma certa pré-disposição interna porque consiste num chamamento. Sem esse silêncio aquilo que existe são pre-conceitos, primeiro infligidos e, com o passar dos anos, auto-infligidos e repetitivos. São as manhãs que são sempre frescas, quando a terra desperta e o mar aquece. E nelas há uma limpidez primeva que não se alcança se pensarmos que somos cavaleiros disto ou daquilo e que temos como missão "puxar" outros para serem como nós. Deus só nos pede que sejamos iguais a nós próprios e essa é das missões mais difíceis do mundo, porque o sonho do que somos como pessoas e como país é Absolutamente Abstracto. Mal começa a ser definido cai no dogma, na facção, no Partido. Essa unidade de alma entre nós e o país é o segredo mais bem guardado, na caverna mais secreta, entre o mar e a terra. É um diálogo íntimo no qual nenhum, nem o país, nem a pessoa se perde, e os dois se perdem um no outro, em fusão. Como se vê, isto nada tem de estereótipos enquadrados em qualquer tempo ou evento meramente cultural porque se trata de um diálogo entre almas genuínas ao longo do tempo e em movimento. É a seiva do país. E nos sabemos qual o papel da seiva, mar terrestre, na árvore da Vida... 

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

O Barroco do Barroco

 


Já muito se sabe da aproximação que existe entre o Barroco ocidental e o Zen, mais propriamente o Zazen Oriental e da forma como esta última corrente (no sentido tradicional de transmissão), provinda inicialmente da Índia e das práticas meditativas, absorve a influência do taoísmo, ou seja, do esoterismo chinês. Os opostos, as contradições, os aspectos complementares tendem a ficar unidos. No Zazen, por exemplo, o mestre, quando o discípulo em prática meditativa tende a adormecer, desperta-o com uma pancada dada com um pau. A calmaria contemplativa a par com alguma violência. No Zazen, certas partes do corpo devem estar contraídas e outras descontraídas. É uma prática baseada na aparente contradição. No Barroco ocidental, o "chiaroscuro", produz exactamente o mesmo efeito. A Alquimia, procura também a união dos opostos ou melhor, dos complementos. O espírito Barroco é complexo porque é algo que não se adquire, nasce-se assim, o que o torna incompreensível aos filhos exclusivos da racionalidade e aos seus netos, os racionalistas. Nesta época minimalista e facciosa, o Barroco é mal visto ou então é mal compreendido. No seu íntimo, ele abrange as contradições sem se contradizer. No minimalismo não há contradição, há uma repetição sem fim igual a si própria. Deste modo, uma das características de Kali Yuga, é a não variação e a instalação das ditaduras que nos dão a falsa percepção de que tudo está em movimento, quando, na verdade, há uma tendência para a estagnação, para a paragem, para a inércia. No minimalismo, a vertigem mantém-se igual a si própria por tempo indefinido. No Barroco, a "vertigem do Barroco" conduz efectivamente ao desmaio, à perda de sentidos e, por isso, à entrada numa outra dimensão. Os limiares são muito importantes, mas só são importantes se existirem de facto. Se forem uma mera abstracção ou ilusão, como é o caso do ciclo vicioso do espírito minimalista, conduzem apenas à angústia. Não direi que um filho do racionalista ou que um seu neto, imbuído de racionalismo sintam angústia perante um espírito Barroco, até porque não necessitam do Barroco para se sentirem angustiados uma vez que é essa a sua condição, mas que se parecem com boi a olhar para um palácio fazendo os comentários mais despropositados, disso não restam dúvidas. Não é correcto dizer que "parecem", são, sem sombra de dúvida, bois a olhar para um autêntico palácio porque outra coisa o Barroco não é, e, quem os vê de fora, a esses dois espíritos, frente a frente, mirando-se, não pode deixar de notar que um racionalista frente ao Barroco é um retrato vivo do "chiaroscuro", a maior prova de que o Espírito Barroco absorve qualquer racionalista, sempre que quer e se estiver para aí virado. Todas as verdades altamente congruentes de um Espírito congruente, são há muito um aspecto, e apenas um, de um Espírito Incongruente. A própria língua o admite, antes de existirem incongruentes tiveram de existir primeiro os congruentes, só mais tarde, e devido a um requinte da volta da cornocópia (que dá tantas voltas quantas as que quer) é que o prefixo "im" é acrescentado à palavra "congruente", tornando-a definitivamente completa em si mesma. É por isso que se desmaia. Se sai de si. Se entra em êxtase. Algo que qualquer racionalista ignora e, em casos extremos, chega a fugir a sete pés. Como os pés são sete, nem assim se escapa totalmente ao abraço do Barroco. O Sete, e o "T" andam lado a lado, tal como o "Y". E causa pânico nas encruzilhadas. Ou talvez não, depende do Espírito que viaja. Por vezes, há a calma do desmaio, os sentidos cessam e dá-se início ao início. 

terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Os três pescadores


 E, eis que três pescadores entraram pela galeria adentro tendo um deles exclamado para os outros: "Isto sim, é arte". Já me habituei a esta dicotomia entre intelectuais e gente aparentemente simples. Os intelectuais não apreciam, nem percebem o que pinto e os "simplórios", mais genuínos, e com as memórias ancestrais ainda activas, possuem o gosto específico, espontâneo e sem filtros de qualquer espécie e soltam uma exclamação positiva, absolutamente verdadeira. Daquela vez foram três pescadores, mas, já antes deles, e sem contar com as crianças, tinham sido canalizadores, empregadas domésticas, transeuntes que passavam na rua, numa das muitas mudanças que fiz. Paravam e gostavam, simplesmente. No fundo, só as almas antigas, camufladas em profissões ditas menores e muito longe da nossa intelectualidade cosmopolita reconhecem aqueles símbolos que os fazem despertar subitamente para a realidade verdadeira que consigo trazem. A minha desconfiança para com os intelectuais provém muito de ter observado neles a capacidade de dizerem gostar tantos dos "horrores" modernos, como das obras modernas sem qualquer Graça e, em simultâneo, afirmarem a genialidade dos antigos mestres de pintura. À minha pintura, quanto muito, chamam-na de "bizarra", quando não coisas piores e isto quando se resolvem destacar do total silêncio para o qual, a maioria dos intelectuais se remete, como se fosse proíbido pronunciarem-se sobre o que faço.  Esses mesmos intelectuais têm súbitos ataques de paixão pelos simplórios sempre que estes lêem um livro. E espantam-se, e maravilham-se, no seu jeito paternalista: "Ai, que bom! Tão simples e lê!" Quase como se os simplórios fossem candidatos a um lugar na intelectualidade, ainda que muito nos começos... A mim, o que me espanta são esses intelectuais dúbios na questão do gosto que, por serem tão flexíveis, acabam por gostar mais do prestígio do que de qualquer outra coisa. Na verdade, o que me espanta é que os intelectuais leiam e não aprendam nada, nem de integridade, bem de beleza, algo que os simplórios trazem com eles naturalmente. Mas, como o mundo anda às avessas, o melhor é encolher os ombros e deixar os intelectuais no seu posto, felizes consigo próprios, mesmo que não entendam nada do que é, verdadeiramente, a ancestralidade, e lendo-a às toneladas. Os três pescadores andavam à pesca da força, da beleza e da sabedoria. E quando a encontraram, como bons e experientes pescadores que eram, reconheceram-nas imediatamente. E isto, muito provavelmente, sem ler. Mais difícil do que o armazenamento de palavras e de livros por parte dos intelectuais, é esvaziarem-se eles de tudo o que pensam saber. Talvez só assim se deixem de um paternalismo quase ofensivo e produto da inversão a que se assiste. Evidentemente que o paternalismo é conveniente para se manter um terminado estatuto. Sabendo, (mesmo que a negando por causa dos dividendos políticos da Revolução Francesa) da existência de hierarquia, utilizam-na a seu belo prazer sem saber que qualquer pescador se encontra hierarquicamente acima de qualquer intelectual actual que se limita a ser um seguidor de estímulos externos e não internos. É uma boa jogada, esse aproveitamento da hierarquia que negam e recusam, só que não engana quem lhes está hierarquicamente acima, por mais livros que mostrem ao público e por mais escritos que revelem a sua suposta cultura. Temo bem que a minha pintura acabe por ser um teste que apenas os mais simplórios conseguem passar. E não há nada de simples no que pinto. O luxo simbólico que vive da memória do futuro é algo só desvendado aos ricos em Espírito. Mesmo que sejam pobres em letras, o seu Espírito está activo. E não há jogadas. É algo instantâneo. Tão natural que toca o sobrenatural ou tão sobrenatural que toca o natural. Depende do ângulo de visão. É uma questão de linguagem. Uma linguagem inacessível ao entulho intelectual português que se afastou da ancestralidade, embora a destaque como coisa muito nobre e importante. Não se decidem, na verdade: querem uma igualdade com toda a força e resistente a toda a prova e da qual eles próprios são a referência que contradiz essa mesma igualdade. "Ele, até lê... é quase como eu...". 
Pela minha parte posso dizer, logo eu que não acredito minimamente na igualdade: "Ele vê! Ele é como eu!". 

sábado, 4 de dezembro de 2021

A diva






De maneira a não nos desfazermos em lágrimas convém a não feitura da representação de uma diva. Caminhar, antes, por entre as anémonas deste aquário de maneira a que elas nos julguem peixes. O problema das divas é o esgotamento e o rosto triste e fragmentado quando, à noite, naqueles minutos antes de adormecer, se olham ao espelho. É uma guerra inglória que, embora não faça perder a alma, a conduz ao atraso na grande viagem que é a vida. Enquanto a diva serve de alimento pontual, porque é sempre pontual, aos homens, atravessar as águas como se fôssemos um peixe, permite-nos a escuta interna e também o passatempo, sempre voluntarioso (e nunca obrigatório) de uma certa lembrança aos homens do céu que ora esquecem, ora perseguem. A questão do facto de ser pontual ou não, neste caso, já não é da responsabilidade das divas, mas sim dos homens e, assim, a liberdade é muito maior e, essa escuta interna, é muito menos interrompida pelas necessidades de defesa que uma diva sempre acarreta. Essa aproximação à liberdade, sempre presente, foi-nos ensinada por quem já era livre há muito. E foi talvez o ensinamento mais precioso que nos foi dado em vida, porque, para além de ser um ensinamento, é sobretudo um segredo. Essa aproximação e o modo como é feito é indissociável dessa escuta interior. Às divas é dada a eternidade pela memória que deixam e que abandonam, aos seres livres é dada a memória da eternidade que alcançam e fruem.


quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

A professora

 


Olá Fernando, mais uma vez.


Escrevo-te para te dizer que hoje ouvi a professora dizer que até não desgostava da tua poesia, mas que eras um anormal, um desequilíbrado.
Nada como um poeta das nove às cinco, provavelmente estendendo o dígito ou passando o cartão para marcar o ponto. Um poeta certinho, sem tempestades. Um poeta da bonança dos bairros periféricos de uma cidade perfeita.
Cansa-me esta gente que tenta conciliar a suposta normalidade com a arte. Parecem carneiros a dar o grito do Ipiranga quando se encontram cercados.
Se não entendem a anormalidade da arte, não entendem a normalidade dela. E muito menos a sua enormidade.
Queriam um poeta menos bêbado, um não-fumador e papéis A3 imaculados e brancos, talvez completamente brancos e lisos sem o incomodo das letras, sem a mancha do texto.
Ainda não perceberam que a tua poesia e os teus escritos não são para gostar. Não são um gelado no Verão. São um banquete que conduz a uma brusca paragem de digestão.
A indegestão das palavras mostra que nem uma vida chega para as digerir.
Queriam o quê? Um formulário breve de "como se deve viver"? Uma observação clara do óbvio enfeitada com borboletas e passarinhos? Queriam o quê? Amar perdidamente sem perdição alguma? Que ensinem, então,  a matemática toda e pensem assim ter encontrado Deus nos números. Mas que Ele, seja analfabeto e não saiba o perfume das letras.
Estes monstrengos que rodopiam três vezes para ficarem no mesmo lugar são o maior susto da civilização. O bicho-papão autêntico, em pessoa, invadindo as salas de aula. O maior castigo em forma de "ensino obrigatório". O grande trauma da competição para ver "quem é mais normal". A brejeirice encarnada nos assépticos do "gosto e não gosto", substituindo o pensamento.

 Só no fim, bem lá no fim, se pode encontrar o verbo "gostar", naquele momento da retoma da paragem digestiva, naquele momento em que a má disposição se acalma um pouco e, ainda de rastos, voltamos a respirar e nos damos conta de que, por momentos, deixámos de existir, quando entendemos que não entendemos nada da nada, que não sabemos nada, que não somos nada, excepto ilhas rodeadas de dúvidas. O "gosto", é para esses anormais.


As viagens e a memória

 


A delícia das viagens reside na sapiência de que nada sabemos e que somos pequenos em comparação com o grande mundo. Essa pequena delícia permite-nos o ofuscamento voluntário e o deslumbramento involuntário. Trago, dentro de mim, viagens das quais já não me recordo porque foram directamente para os ossos e ficaram presentes na estrutura interna, alicerçadas a uma verdade qualquer. Aliás, esta estranha capacidade de nos esquecermos é suspeita. Dizem que com o passar dos anos, a infância vem voltando em revoadas inesperadas, mas essas são memórias do realismo nítido com que as crianças absorvem o mundo. Há outras memórias das quais não se fala, porque não se pode falar. São as aprendizagens Reais com que vivificamos os ossos no Juízo Final. O segredo delas é estarem presentes, incrustadas e são assintomáticas, excepto, talvez, em certos olhares que deitamos ao mundo, certas compreensões inesperadas, em certas certezas incondicionais. E as palavras nunca chegam para nada por serem demasiado ou de menos nesta passagem pela vida que é uma espécie de morte naquilo que tem de vaso receptivo ao orvalho do conhecimento banhado pela luz. Quanto mais silenciosos nos encontramos, mais as energias internas parecem brotar como represas que se abrem deixando deixando fluir as águas na sua grande viagem em direcção ao mar. Como explicar, e com que palavras, que de certas viagens trouxemos os deuses connosco, encontrados agarrados às pedras, e que eles perduram vivificados pelo nosso próprio sangue? 

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Olá, Fernando



Olá Fernando. 

Nunca vejo este dia como o dia da tua morte porque, por andares sempre vivo para a poesia, aconteceu-te a eternidade, como te aconteceram os poemas. Nas patuscas capelas da vida do possível conhecimento, actual, falta a tua chama. Como bem disseste, "nunca levaram porrada" e convivem bem uns com os outros, mordendo-se no pescoço sempre que podem, mas, tirando esse ambiente tétrico e enfadonho, a alegria foi desviada por um vírus e a tristeza do nevoeiro adensou-se e espalhou-se pelas almas que, mesmo que não o digam, levaram a "porrada" do destino que o vírus trouxe. 

Isto provoca uma espécie de ausência antes de tempo, como se já nos víssemos como moribundos, agindo por impulsos elétricos. 

Os mais afoitos, trabalham muito, como se não quisessem desligar-se da memória daquilo que foi a vida. Os mais tranquilos, fumam, como tu fumaste, e acompanham com o olhar, o percurso do fumo, que se ergue em espiral, adivinhando nela um qualquer caminho oculto e indizível.

Os sabichões do mercado possuem o traço em comum da total ausência de talento, coisa que te é absolutamente estranha e desconhecida. Noutros tempos, dos quais ainda te foi ofertada uma dádiva, a sabedoria vinha acompanhada pelos dons artísticos. Neste tempo, ela chega seca e espalmada como um enlatado, sem voos nítidos, nem triplos saltos o que nos leva a duvidar se será mesmo sabedoria ou apenas a encenação dela.

Fernando, o nevoeiro é de um cinzento esbranquiçado, algo que nos faz lembrar a luz, ainda que seja uma memória ténue e saturada de água, mas hoje, já não há nevoeiro sequer, excepto aqui onde vivo e tu também, como meu vizinho neste limiar entre a vida e a morte. Hoje há mesmo trevas. Mal se sai deste canto elas iniciam a sua aparição que coincide com o desaparecimento de tudo o que é ou iluminado ou luminoso. 

Fernando, andaste para aí a dizer que eras Templário e olha, agora todos são tu e todos dizem sê-lo, ainda que não façam a mínima ideia do que quiseste dizer com aquela história da iniciação directa de mestre a discípulo e pensem que basta um sonho para que estejam "prontos" para qualquer coisa que também não sabem muito bem o que é. 

Contemplar o panorama nacional provoca arrepios como um filme de terror (salva-nos alguma paisagem e as flores que teimam em nascer no momentos e lugares mais surpreendentes) às almas mais sensíveis. 

Lembras-te de ter escrito que ninguém sabia que alma tinha? Hoje todos dizem saber que alma têm. Afirmam a "personalidade" sistemática, mesmo que seja inventada por um momento. Lembras-te da tua misoginia? Às vezes, mesmo sendo mulher, chego a sentir o mesmo, com estas mulheres que aparecem com as costas muito direitas e o queixo muito levantado como se estivessem a enfrentar um touro sempre que falam. A atitude é a personalidade, sem margem para dúvidas e a personalidade é a alma, sem a sombra da ausência de certezas. Eles não estão melhores e os que não são eles nem elas têm o panache de uma dona de casa instalada na continuidade geracional. 

Fernando, adivinho-te pasmado com estas novidades que te trago e quase magoado também. Não foi deste Portugal que falaste. Foi d'outro. Um que até punha apóstrofos sempre que queria e estava livre de diplomacias ortográficas. Nós não somos nada livres. Só talvez uns resquícios do povo, ainda capazes de se rir dos padres e dos ricos na sua brejeirice solta e sem vigilantes suficientemente interessados por se tratarem apenas de resquícios dessa classe, considerada "inferior". 

Não tenho dúvidas de que caminhamos todos para o abismo deslumbrados com a alma que julgamos ter, ofuscados pela ciência e pela medida, e terrivelmente deficitários no que toca à verdadeira emoção. Somos como aqueles animais que mudam o comportamento quando se sentem observados. Quando é por Deus, ainda vá que não vá, porque Ele nos dá liberdade, agora quando é por analfabetos de tudo, o caso torna-se parecido com aquilo que aconteceu com as televisões: o nivelamento é feito por baixo. 

A baixa poesia é a constante e o sentimentalismo barato, aquilo que é mais vendido nos hipermercados da exposição pública, sobretudo em época pré-natalicía e não só. 

O patriotismo tornou-se bélico, militar. Os poetas deixaram de fazer sentido. É a velha teima da casta guerreira a querer afastar os sacerdotes, donos da palavra e dos dons dela. Confundem hoje o sacerdócio com um qualquer cargo eclesiástico e tomam-se de ares de monges guerreiros, quando não são nem uma coisa nem outra, excepto na sua imaginação povoada por guerras santas, mas sempre deserta de obras como a tua, com alicerces bem fixos no céu. Chega a ser patético, Fernando. 

Da política nem se fala. É inexistente. Tudo é negócio e negociável e quando algo não é, é morto a tiro, ou com bombas, ou com porrada (que ninguém leva) ou com a fome e os maus tratos. 

Fernando, isto está muito mau. Se não fosse o nosso segredo não sei o que seria. 

Adoro-te meu querido.

Volta a vista para o céu porque desta terra a única coisa que nos sobra é a paciência da lenta decadência. Volta os olhos para o céu, lá, onde tudo é belo e cheio de Graça.


Beijos enormes, da sempre tua

Cynthia



 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

Fauna e flora

 


Prefiro esta parcimónia campestre a esta nova fauna da cidade acoplada ao carrocel das lojas que abrem e fecham à velocidade da luz. Insisto em manter uma integridade invisível aos homens, apenas captada pela lente celeste. O mundo, imundo, incorpora o corpos de gentes que só pedem e só se contentam com o mínimo e, pelo menos neste estado campestre, qualquer flor evoca a grande roda cósmica, invisível aos homens, mas visível para os grandes olhos dos deuses. Tudo, na capital, que já não é capital de coisa nenhuma a não ser dos dinheiros (e muito menos cabeça de qualquer Império), evoca o cansaço da ditadura da medida. O mensurável é o grande polvo com tentáculos gelatinosos pejado de ventosas que se agarram a tudo e que desconhecem o perfume das flores. Já nada me diz o brilho da noite das cidades que faz murchar as estrelas e evoca procissões de fantasmas cuja alma partiu há muito. Reservo para mim mesma a beleza como um presente, sinceramente merecido e não a desperdiço nas vielas da moda e nos sinceramente ignorantes de tudo. Permito que a beleza, força suprema da sabedoria, impere em cada tremeluzir do mar e retenho esses fragmentos luminosos nos meus pensamentos. A vanguarda mais ousada e arriscada é a de já não se ser daqui e passar por entre a gentes que nada são como se o nada fosse eu, enganando-as com a imagem de si próprias, não porque as queira enganar, mas porque está na sua natureza viver no engano. Suponho que herdei as histórias mais sublimes, impossíveis de contar a alglomerados de ossos que apenas esperam o Juízo Final com os braços sem carne cruzados sobre o peito onde não mora qualquer coração batendo. A fauna citadina está incrivelmente fraca enquanto se distrai com achados científicos que, de tão incontornáveis serem, se tornam muros onde esbarram e lhes tiram a liberdade. Prefiro construir, eu mesma, os meus muros de cristal, sensíveis ao toque de uma asa e ecoando pelo universo a musicalidade da carícia de um pássaro. Tudo definha excepto os meus sonhos que acompanham os estados do ser. E não há mão, tentáculo ou vontade que os consiga agarrar e aprisionar num qualquer conceito pronto a vestir. É trágico? É. Excepto a minha alma que é sublime e se eleva sempre que as asas se abrem. Já não tenho pena desta tragédia humana, apenas me espanto com a falta de capacidade que há para ver, para escutar e para reconhecer a beleza como a soberana e mais alta virtude que aos humanos é dada conhecer, se soubessem fazer e estar no silêncio, invisível aos homens, mas mansão absoluta e absolutamente dos deuses. 


domingo, 14 de novembro de 2021

A dádiva


 Sempre me deram livros. Desde pequena. Não é que fosse ou seja uma leitora compulsiva e todos soubessem disso. Não. Cheguei à conclusão de que é qualquer coisa de misterioso, como se o universo soubesse que os livros são objectos virtuosos e me concedesse a honra de os ter, vindos assim, sempre pelas mãos de alguém numa espécie de urgência ou de impulso constituído pelo destino. Pego sempre neles como dádivas importantes. Olho-os e digo: dantes não estavam cá, agora estão, porque sim. E há nesse sim, um infinito, um absoluto, uma verdade incontornável e palavras que avisam para nunca esquecer as palavras. As palavras das quais tantas vezes fujo por as pensar inúteis num mundo cheio delas. Presto atenção a esses padrões que surgem na vida. Não são repetições, são mais ricos do que isso. Neste caso, o padrão dos livros dados formando um luxuoso vestido para um luxuoso banquete de ideias, sentimentos, visões. Espanto-me com esta insistência do universo e penso-a seriamente como sendo uma oração, uma forma de resistência. Os livros dados são sempre dados na clandestinidade, são passados por entre os dedos da ignorância e da insensibilidade. Passam por esses dedos como uma carta mágica e como a carta de um mago e não de um ilusionista. Costumam vir em mão, mas também aparecem como uma carta na caixa do correio. Parecem dizer: "Escuta estas palavras". Um dia foi-me enviado um livro através de uma amiga. Alguém que ela conhecia soube que eu existia e insistiu com ela para me entregar o livro. São os próprios livros a insistirem em vir, por caminhos tortuosos e difíceis até ao seu palácio onde, por fim, repousam. Eles caminham porque são seres vivos compostos de palavras sempre-vivas tocados por mensageiros cujo rigor é semelhante ao firmamento girando em torno da terra. Sempre me deram livros. Não é que eu seja uma leitora compulsiva e todos saibam disso. Mas, os leitores compulsivos talvez sejam só isso e os livros saibam. Talvez eles queiram ser lidos e olhados, não como uma rotina, mas como um momento especial, uma festa, um banquete único no ano, com a atenção devida ao detalhe, com o silêncio devido aos seus próprios silêncios. Quando nos dão um livro há um rito implícito. Invisível. Importantíssimo. Esse rito, carrega o mundo às costas e, quando é entregue, o mundo voa como um pássaro livre que pousa no ramo mais alto da árvore de oiro onde a observação da paisagem devolve o sentido da vida e do mundo. É um rito de uma alegria imensa e o mais verdadeiro de todos. Porque é espontâneo. 

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A imagem vívida


 

Há tempos que são de contratempos e, deste modo, os contratempos, estão a favor do tempo e não são contratempos porque fazem parte da natureza do próprio tempo em que se vive.  O verdadeiro contratempo é aquele que contraria o contratempo, aquele que se contraria a si próprio. Assim, um contratempo contém em potência a sua própria negação. No filme “Rapsódia de Agosto”, de Akira kurosawa, um casal de idosos é filmado vivendo as quatro estações, aceitando o fluir do tempo. As estações do ano sucedem-se naturalmente, são aceites universalmente. O contratempo desta época actual facilita o re-posicionamento das coisas porque se auto-anula. As memórias vívidas das quatro estações, são memórias-eixos com as quais se mantém a integridade numa época que é de pré-nascimento de uma nova Era e que se parece mais com o líquido caótico amniótico do que propriamente com a criança dobrada sobre si que dorme. O líquido é a actualidade, no que tem de indefinido, a criança é o futuro, no que tem de fresco e novo. No entanto, ela dorme, ausente, num sono reparador no líquido que a sustém. Talvez esta situação seja muito difícil de aceitar para quem se agita e faz parte do líquido indefinido. Contrariamente ao que se pensa, também do ponto de vista da criança que dorme, o espectáculo não é grande coisa. Ela apercebe-se dos movimentos do caldo que a envolve e semicerra os olhos olhando à sua volta num aparente sono profundo. Mas o seu olhar é tremendamente detalhista. Quase como se fosse composto por fotogramas únicos, pedaços apanhados em fragmentos sempre que os seus olhos se entreabrem. E essa colecção fragmentária é o suficiente para que possa ter um retrato geral do caos que a cerca. E regressa ao sono, esperando que as águas repressoras se libertem, sejam escoadas e se dissolvam na atmosfera. Uma vez questionada dentro do útero essa criança só revelará essas imagens fragmentárias que a impressionam porque não têm nada a ver com a sua natureza. Ou antes, com a sua sobre-natureza. Nesse estado, enrolada sobre si, ela encontra-se, como um ponto, à imagem e semelhança do centro da circunferência, entre a existência e a não existência. Os olhos permitem-lhe absorver a realidade que é, no imediato, confrontada com a unidade que a própria criança é. Trata-se de um confronto porque a indefinição múltipla é algo que a rodeia e que não faz parte dela. Kubric percebeu e foi mais além em “2001: Odisseia no Espaço”. A contemplação de um ser por nascer diz-nos mais do que a contemplação de uma caveira, até porque a contemplação de uma caveira não é, nem a contemplação dos ossos, na sua totalidade como técnica ascética ancestral oriental nem a contemplação de uma cabeça viva e faladora, como era a templária. Trata-se de uma queda num fragmento de osso e daí que ela tenha sido cistalizada por alguém que a esculpiu no passado nesse material. O cristal inerte e frio. O olhar, os olhos, dessa criança por nascer serão sempre um espelho do caos que a rodeia. Sempre que os olhos se abrem tememos a nossa própria situação num cosmos composto e nascido no devir. É desta forma que os sábios projectavam a própria imagem dos discípulos sem que fosse intencional. O discípulo via-se a si mesmo e fugia aterrorizado com a experiência de saída do seu próprio corpo de uma forma tão vívida. 

sábado, 30 de outubro de 2021

Nitidamente

 



Está-se bem, neste silêncio apurado,
longe como um barco esquecido,
perto como uma nítida e encontrada verdade.

domingo, 24 de outubro de 2021

O entendimento

 



Símbolos? O que é isso? Os nossos políticos desconhecem o que é um símbolo porque ou são laicos, ou são ignorantes ou são condescendentes para quem os conhece. Ainda que o sábio fale, ainda que o político o escute, a última palavra é do político que pratica o surf nas palavras que lhe dão jeito como prancha. É desta forma que um político, mesmo que esteja rodeado de sábios, é um preconceitoso porque ouve ou acata apenas o que quer. A democracia é um conjunto de déspotas nada esclarecidos porque, acima de tudo, são déspotas que se toleram no pior sentido do termo e todos têm por certeza que o povo é estúpido, facilmente manobrado e enganado. A democracia é um jogo de forças com o povo, se este é mais manobrável, ganham eleições, se é menos, perdem-nas. Tanto à esquerda como à direita, puxam a corda, mas nunca empunham a espada porque esta está proibida pelo "progresso". É a ignorância que conduz o país, neste momento. Os podres são visíveis na pseudo-educação, na própria semente e depois é sempre a "subir" até à podridão total. Quando mais se desenvolve este drama mas é necessário enrolamo-nos em nós mesmos e crer, de uma forma completamente irracional, que alguém lá em cima, na esfera celeste, nos ouve e nos responde. O intelecto quando supera o racional, ou o racionalismo, irrompe na esfera do entendimento, uma esfera totalmente desconhecida desta actualidade sem amor, nem alma grandiosa, e nem sequer capaz da simples inteligência. Sabe-se mais de Marte do que dessa esfera onde tudo é sintonia como um hino bem cantado... 
Escapa-nos, este mundo, por entre os dedos, como areia, porque é areia de um deserto sem gota d'água que o torne fértil. Desenganem-se os que pensam que têm peso nas decisões dos políticos, eles só respondem ao espelho de si mesmos e nunca aceitam nada que venha do alto, porque eles pensam que são o "alto". 
A única face verdadeira deste país é a de gente anónima que vai dizendo coisas e ouvindo coisas num diálogo invisível e, até mesmo esta frase pode ser aproveitada e lida como "conversas de gabinete" ou diálogos "sub-rosa" no que têm de mais convencional, ou seja, uma simples conversa em segredo entre um ou mais ignorantes, ficando assim, rapidamente desvirtuada. O segredo nunca foi garante de qualidade alguma só por si, a maioria das vezes apenas serve para aguçar a curiosidade. Do que falamos aqui, é da essência do coração que fala, algo completamente invisível, mas visível do "outro lado", mais próximo do centro ou mais acima, conforme lhe queiram chamar.  Desta feita, é cada vez menos seguro aquilo que se escreve ou que se diz da boca para fora porque o desfasamento entre o interior e o exterior chega a ser radical.  A leitura de um coração não é da incumbência dos humanos, não faz parte da sua missão neste mundo. A leitura de um coração é atributo daquilo que é, nas palavras de Guénon, supra-humano e, ou se chega a isso, ou não se chega. Já se vê que nunca existe um verdadeiro problema de comunicação entre dois ignorantes. Eles entendem-se perfeitamente porque são a pele da pele. A conversa entre dois ignorantes é sempre o eco das vozes dos protagonistas do mundo da moda que viram a cara a quem não está na moda, e viram-na, porque sim. O problema da comunicação reside sim, na incapacidade de nos fazermos escutar pelo "alto" porque só alcançando "o alto" nos podemos fazer escutar. Parece a pescadinha de rabo na boca e é. A esfera do entendimento nada tem a ver com o conhecimento das coisas: planetas, vírus, anomalias ou fenómenos naturais porque ela obriga-nos a sair de nós, o movimento inverso desta civilização vaidosa de si. Sair de nós em direção ao que nos transcende. Um político que procure num sábio as suas próprias certezas que são sempre (e hoje é mesmo sempre) fruto da sua ignorância, não procura comunicar, procura aquilo que pensa que ele próprio é e dizemos pensa, porque, na sua ignorância, nem a si próprio se conhece. É curiosa a forma como esta oligarquia economista disfarçada de democracia tenta, por vezes, transmitir a imagem de que é uma oligarquia de sábios. Para isso, dá a entender que "ouviu os sábios" e que até concordou ou se reviu num ou noutro aspecto. Ora não têm que concordar nem têm que se rever porque não sabem tanto como o sábio. Têm que ser humildes e tentar acompanhá-lo. Os sábios não abrem a boca para que os políticos se revejam nas suas palavras. Se assim fosse não eram sábios e a inversão era total. Os políticos actuais não sabem nada, procuram, como Narciso, rever-se perpetuamente, tão convencidos que estão de que são "abertos ao diálogo", quando a esfera do entendimento lhes é totalmente desconhecida. E tudo isto cansa. Cansa muito porque é sempre mais do mesmo e daí que o mais importante não passe pelo que se diz ou se escreve, mas sim, por essa capacidade que algumas pessoas têm de "tocar" o alto porque o seu coração é transparente sobrenaturalmente. Para governar bem é necessário o silêncio. O profundo silêncio. Só assim ecoa a humildade necessária e então, talvez, e dizemos talvez porque isto não é uma ciência, é uma arte, a esfera do entendimento esteja acessível. 



sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Testemunho


 As pessoas esgatafunham-se por um minuto de fama, a real preocupação com o estado das coisas é outra coisa porque não dá fama alguma, a não ser a de profeta da desgraça. Olhando o panorama geral, chego a desejar que a parte subtil e benéfica do planeta se solte desta avaria materialista e volte em forma de anjo para ir redimindo o planeta. Parece radical, mas para grandes males, grandes remédios. Uma purga é uma purga. Meia purga não chega para um mal maior. Não é difícil de adivinhar onde isto vai parar, ou a um grande cataclismo ou a uma reviravolta impensável, ou as duas coisas. A degradação tem limites, como tudo tem, aliás, neste mundo. O que aflige mais é ter de assistir a isto porque não nos faz sorrir nem nos dá tranquilidade. O que nos faz sorrir ou nos dá tranquilidade é sabermos que tudo tem um limite. O chamado "progresso", filho do evolucionismo, nunca foi tão troca-tintas durante a sua parca existência. Mas talvez exista mesmo "progresso" e este não seja mais do que "ver o filme ao contrário": quanto mais "progredimos" mais estamos perto do "fim do progresso" e isso, sim, é um progresso, atendendo à existência de ciclos, coisa que o "progresso" na sua visão limitada, não entende porque a sua visão é tão limitada que não se enxerga. No outro dia, um amigo, por brincadeira, chamou-me "mulher das cavernas". Ri-me porque não anda nada longe da verdade. Algo de primitivo ou primevo chama por mim, e não é bem aquilo que se encontra nos compêndios da psicologia da História, a pulsão de reprodução, alimento e sobrevivência. Esta caverna, donde sou proviniente, não é escura. De escuridão nada tem porque o elemento que nela mais abunda é o da luz. Assim sendo, eu e o meu amigo, falamos de coisas muito diferentes, aliás é o que nos distingue e o que me torna a mim distinta. Bem vistas as coisas, um minuto de fama é hoje replicado em imagens, reproduzido. É, também, uma forma de sustento e sacia desejos de imortalidade. As cavernas não são todas iguais, isso aponta-nos a história, tal como os corações. É a incapacidade de entender os distintos mundos subterrâneos que vai fomentar, depois, a maior confusão na espécie humana e, meia dúzia de pseudo-iluminados, vão espalhando o testemunho das pulsões arcaicas, quando o homem, já muito caído e com um dilúvio em cima, se deixava reger pela mesma batuta dos seus amigos animais vendo tudo desfocado como se estivesse ainda debaixo de água. É esse testemunho, na corrida desenfreada contra o tempo, que é passado, como o único e verdadeiro e, em sintonia com a época, tem fama e sucesso. 

  


terça-feira, 19 de outubro de 2021

O jardim


 Andava a fazer um jardim sem que o soubesse. E um dia reparo que todos os objectos juntos, adquiridos ao longo dos anos, na sua grande, grande, enorme maioria, tinham elementos vegetais, folhas, flores, caules. Aprendi agora como o jardim se torna vivo ou ligeiramente amargurado conforme o seu jardineiro se vai sentido ou vai dando um sentido à sua própria vida. À frente, tenho um jardim para guardar e ele vai adquirindo um verde espesso, uma espécie de potência que só o verde escuro consegue ter. Guardar um jardim é um acto bíblico. A ecologia é uma queda de algo muito mais profundo. É a queda da metamorfose da alma no mais rasteiro sentido prático da existência. A ecologia é um simples eco de uma palavra maior: guardiões. Os que guardam. E, os que guardam, acompanham e fazem-se acompanhar. É esse o significado de guardar, mais tarde caído em mãos bélicas, tornou-se defesa de um potencial ataque. É nessa companhia que se transmuta alguma coisa porque não há obra sem criador nem criador sem obra. É todo um mundo diferente dos factos. Num jardim não há factos porque nada está fixo. Tudo cresce, muda. Questionava-me o porquê de não querer guardar muitos factos na memória, alguns apenas, como portais.  Num jardim, não existem muitos, talvez a fonte, mas até essa jorra. E a ideia de evolução parecia-me ridícula quando me perguntavam se tinha "evoluído". O jardim não evolui, limitam-se a ir sendo. Era a primeira flor mais imperfeita do que esta última? Parece estranho, mas todas estas evidência tornam impossível um diálogo com os coleccionadores de factos e com os "vaidosos" do seu caminho. Um jardim assim murcha logo, ao primeiro passo de orgulho na colecção de factos que pensam ostentar. O meu mundo interior é tão estranho como um jardim, tão intrigante como a sua espontaneidade enquadrada na perfeição do gesto do jardineiro. Ao regar sinto a terra a absorver a água, os nutrientes a deslocarem-se e a ficarem mais acessíveis às raízes, as plantas a ficarem mais viçosas. Se não imaginar isto tudo, nada se passa, e a rega é uma chuva anónima sem o fogo da paixão pela vida que faz deslocar os nutrientes para a posição exacta, e não ao acaso, num jogo de sorte ou azar. Se não imaginar isto tudo o jardim não toma a forma do meu coração nem o meu coração se torna num jardim intrigante. Só assim, as nossas raízes tocam o mistério do mundo, o nosso e o da criação inteira. E é um acto íntimo e invisível cuja repercussão não sabemos. Os guardiães são seres intrigantes. Parecem parados. São o motor imóvel. Os que estão próximos do centro. Tão próximos que nem sabemos se são ele mesmo. Guardar o jardim é um acto bíblico. Não é um acto ecológico. Até porque não tem nada de lógico. É intrigante por isso mesmo. Porque nunca se sabem quais as repercussões. A ecologia está plasmada na linguagem académica, erudita, factual. A ecologia está longe do jardim e não conhece o perfume das rosas. Conhece compêndios. Acções e reacções. Causas e consequências. No jardim tudo é causa e consequência em si. Desta maneira, não sou ecologista. Abomino a palavra tal como abomino os eruditos. São seres fragmentados em factos. E não têm nada de intrigante, nem de misterioso porque se limitam a expor factos, como se estes fossem roupa estendida à janela para todos verem. E a ecologia é a sua filha bem comportada. Irritantemente bem comportada. Bem vestida. Debutante. Deputante. O jardim é livre disso tudo. É fresco e muda de humor. Tem bom humor, mesmo quando não tem. É tão parecido com um coração verdadeiro. 

sábado, 16 de outubro de 2021

Civilização

 


Segredo a segredo, imagino, uma a uma as aves longínquas eternizando-se no meu olhar. Cai a noite sobre a civilização e adormeço na tentativa de um lugar mais luminoso. Como me ardem os versos mudos? Como a prova de fogo de um herói. Sabes, contorno as arestas dos acontecimentos, não como uma serpente, mas como um voo curvo de uma ave e se a noite cai, não caio com ela. Pela janela observo os vultos sombrios retirados das vielas de uma outra realidade e afiguram-se como aquelas marionetas indonésias, sombras numa história hipotecada pela maldição, acorrentadas num pequeno cenário, só delas, onde se movem num enredo que trouxeram para si com o esforço dos condenados ao cadafalso da ausência de consciência. Atordoa-me esta ausência de teatro substituída por essas sombras. Talvez me atordoe demais e não me deixe respirar. Não deixo que isso aconteça no último minuto, quando sobra a palavra “quase” como esperança. E, nesse último minuto, abro ainda mais os olhos e afasto a dormência e inauguro a comédia onde só se encontram os vivos. E os vivos aparecem a cores e a sua voz é um eco da minha própria alma lá longe, escondida num vale do tempo, entre montanhas d’hoje. É imperativo, esse eco. Como um chamamento. Os adjectivos cobrem as palavras que devem ser despidas para que surjam nuas e completas em si mesmas.

Sabes, tremo só de pensar no olhar deles, daqueles que são das sombras. Assemelham-se a franjas arrancadas de um manto real e espalhadas pelo chão do meu palácio. Não as quero por lá. A oferta deles chega sempre demasiado tarde e as minhas palavras chegam sempre cedo demais.

Neste momento tudo é um sonho livre mas aprisionado em si mesmo. Civilização que se auto-cerca sem misericórdia. E as sombras estão nela como habitantes naturais, nativos da humidade de um Inverno demasiado prolongado no tempo. E arrastam as palavras fixas que nunca são ecos da minha própria alma. Vivem em si e por si. Estão absortas desde há muito na perspicaz vontade que lhes esculpe os degraus demasiado baixos para serem dolorosos.

Os vivos não. Sofrem em segredo e sussurram, uns para os outros, palavras inaudíveis. Há uma melodia captável apenas pela sensação da memória. Mas uma memória que é toda ela real. É o manto real estendido pelo palácio que habito. A historia que fica para trás debruada a ouro, com flores brancas e uma paz sossegada, religiosa. Há um corte ontológico com a própria civilização porque o devir é demasiado ingrato, corre como um louco e não nos deixa chorar profundamente nesta comédia que somos. O vivos têm de chorar profundamente na comédia que habitam e que cometem como um crime na tragédia humana. Encontram-se espalhados, aqui e ali, no fundo do olhar de um gato, na cauda agitada de um cão, numa criança que se aproxima e adivinha o centro onde somos todos iguais entre nós. Linguagens outras, mudas e que nos indicam a bússola que surge, por breves momentos, no céu.

Sabes, temo o olhar deles pela luz que lhes possa dar com o meu, mesmo sabendo que não a veem. Nas sombras não se vê nada. E nós, os vivos, vimos a sombras que eles não veem. A luz não os cega  porque são cegos e não podem ser mais do que isso. Nem podem cegar novamente sequer...

 

 

 

sábado, 2 de outubro de 2021

Os múltiplos

 




Aí, Fernando, nem queiras saber o que por aqui vai

A multiplicidade de Fernando Pessoa é criativa. Depois dele, tornou-se moda ser múltiplo e, com esse escudo, alguns aproveitam para justificar as asneiras dizendo: "Não fui eu, foi o outro que há em mim", e safam-se do raspanete ou de algo pior. Normalmente os neo-múltiplos não criam nada, limitam-se a dizer que são múltiplos e, ao contrário de Pessoa, não sabem quem são. Fernando Pessoa escreveu muito em nome dele próprio. A melhor forma de lidarmos com os neo-múltiplos e dizer que também o somos. No diálogo fica criado um vazio suficiente para que nada sobre a não ser o passatempo dos "incriadores" que é fazerem tudo em nome da lei, que é múltipla também. Antigamente isso tinha o nome de vira-casacas, agora, com a leitura de Fernando Pessoa tornou-se tudo mais culto e mais fino. Já conheci dois que me disseram ser eles mesmos Fernando Pessoa ao que respondi: "Então porque é que não escreve?". Evidentemente que sempre poderão inventar que são a quarta personagem vista numa visão por Pessoa e que ninguém sabe qual é e se ele a viu mesmo e que consta não ter deixado nada escrito, uma excelente justificação para as duas pessoas que me disserem ser o poeta e que deixo aqui em forma de sugestão não vá alguém fazer-lhes a mesma pergunta. Em nome da multiplicidade e da ignorância do que se é, faz-se o que se quiser. Assumir a liberdade é coisa que fica mal nos círculos e circuitos intelectuais que são circuitos em círculo porque não a conhecem nem gostam dela. Mas, se nesses circuitos circulares alguém se afirmar "múltiplo" o aplauso é total e em pé. Fica assim escancarada a porta para o caos moderno que é sempre bem vindo e nada criativo. A liberdade é outra coisa e fonte de criatividade, feita de um diálogo constante entre nós e nós, nós e os outros e nós e Deus. Até mesmo quando Deus soletra o que deve ser escrito, fá-lo num clima de liberdade que é desconhecido dos circuitos em pista (normalmente a competição é feroz nesses círculos intelectuais, à imagem das empresas multinacionais que angariam clientes, o princípio é o mesmo) e há uma convergência, um ponto de encontro entre duas ou mais vontades, o contrário da competição. Quando ouço dizer que são múltiplos quero ver o aspecto criativo que contêm e nunca contêm, ou apenas os mínimos como quem sabe identificar as cores quentes e frias. São técnicos. 




quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Com título


 

Mas há coisas eternas
Como suaves recordações sem época
E delas guardo todos os sons e todas as cores
 
Nada permite saber o quão violentos foram
O quão desagradáveis se mostraram
O quanto implacáveis e cruéis se revelaram
 
Nada, não, minto
O coração tem um centro inexplicável
E pulsa como uma dança
E é o vulto que se esconde
O que Viu
 
Mas nas actas desta História
Constam testemunhas cegas
Outras surdas
E outras de coração morto
E nelas que aparecem nos arquivos
Escritos com palavras trocadas
As histórias erradas de uma história desconhecida...
 
 
O meu coração é a demonstração de um salto mortal em chaga
Uma reviravolta no ar quando tudo parecia ir em direcção ao abismo
Um voo súbito, inesperado, atento e fiel
 
 
A noite da alma que me impingiram não cobre as estrelas
Não apaga o caminho
Não torna coxo o caminhante
Não altera uma vírgula na página que foi escrita
 
E somente são vistos agora
Os profundamente desagradáveis e nauseabundos
Como escórias ininterruptas que não mudam a sua condição
Por falta de coragem, lucidez e de amor
 
A História paralela foi-me contada pelos anjos
Que não falaram
Mas que me forçaram aos passos 
Em direcção às palavras que calaram
 
E forçaram-me a voltar a face
E forçaram-me a ir em frente
 
Não queiram saber o que é esta vontade que não é a nossa
Que nos escolhe os passos
Que nos diz o inacreditável
A verdade mais improvável
 
É um susto
É viver constantemente em susto
Pela responsabilidade do sangue que circula nas veias
Pela autenticidade desses anjos que
Chegam a passar pelo meu corpo
A dar-me a mão porque a sinto
 
Há qualquer coisa nas palavras esotéricas actuais que não bate certo
É o facto de serem fórmulas matemáticas sem actualidade
Porque a actualidade verdadeira e não pré-formulada
É inesperada, absolutamente inesperada
Não é esquemática
Não diz coisas como “Não podemos olhar o sol de frente”
E outras barbaridades do género
 
A audácia do céu não se compromete com fórmulas
No diz que disse dos livros
Na vantagem da última palavra que é sempre a última cartada
Não, nada disso
A liberdade que se respira é total
O ar é feito de outro modo
Não há perdição
 
A bandalheira das fórmulas e dos sistemas
Permite a infestação do Corpo e o Espírito não desce
 
Desta História original ninguém sabe
Feita de retorcidos encontros
Feita de passos presos aos anjos
 
Se chorasse seria Ísis, choraria um rio
Se me risse seria a brilho de todas as estrelas juntas que há no universo
Mas não posso
Nem consigo
Nem me deixam
Nem eu quero
 
Nem tenho espaço para o sonho tal o tamanho da realidade que me impõem
O sonho aparece como uma fuga, uma alienação
A realidade imposta tem o peso de um sonho maior do que o meu corpo
 
Tudo é diametralmente oposto ao que se pensa que é
E há quem me acompanhe neste destino
Neste rigoroso destino
Neste fim do mundo
E me situe logo que duvido
E me esclareça logo que não veja
E me lembre o propósito
E inaugure em mim, sempre, uma Nova Era
 


(Cynthia Guimarães Taveira)

NIcho

 

Para além das capelinhas, este país tornou-se também no país dos nichos. “Nicho” é uma palavra engraçada porque nele, pode caber apenas uma pessoa, como cem ou mil, dependendo do número da população ou da temática a que se refere. Há livrarias só dedicadas à poesia e são normalmente apelidadas de nicho embora a poesia em si seja um imenso portão sobre o universo. As capelinhas estão normalmente dedicadas aos favores, os nichos são dedicados à exclusividade. O exclusivo é sempre um artigo de luxo. É algo que contraria o número. Dentro das capelas podem existir nichos, lugares onde os crentes se dirigem especialmente esquecendo, por instantes, a capela inteira. Um nicho é um lugar de fé e de concentração de forças. Um lugar íntimo, reservado, longe dos olhares dos frequentadores do culto apenas ao Domingo. Um nicho é um local onde se está bem, tanto a sós como acompanhado. Já a capela requer imensos jogos de cintura, frequentemente agradar a gregos e a troianos e também requer a separação dos crentes apenas no nicho, dos restantes que acreditam e estão apegados a tudo. Há situações na vida em que descobrimos que somos um nicho em nós mesmos. Estou certa que a maior parte das pessoas já se sentiu “anichado” em si, colocado de parte, auto-colocado de parte. Essas alturas são fundamentais para o nosso reencontro connosco e com os outros que podem ou não estar no mesmo nicho. O nicho tem qualquer coisa de ninho, estar anichado ou aninhado anda ela por ela. Não é bem o sótão que, como observou Gilbert Durant, é o lugar os amuos. No nicho pode-se estar muito bem, porque o nicho é o espaço interior, absolutamente protegido dos malvados, dos agitadores e dos capelistas. No nicho somos como somos sem responder a ninguém se não quisermos. Nem responder por ninguém se não quisermos também. É um espaço cheio de qualidade e com chaves de ouro difíceis de encontrar. Quem tem uma capela tem quase tudo, quem tem um nicho tem tudo e, no entanto, o nicho está dentro da capela como uma pinta do tau, só para indicar que o pequeno é latente e que, mais tarde ou mais cedo, deixará de o ser. As pintas pretas e brancas do Tau são exclusivos. Altos Cargos. Mestres em si próprios e de si próprios. O nicho é fundamental na civilização actual desde que nunca seja confundido com uma capela. Quando o é, deixa de ser nicho e passa a participar na roda louca da existência decadente desta época. E, ao fazê-lo dá por si a separar naturalmente as águas separando os crentes apenas num nicho, dos restantes que acreditam e estão apegados a tudo mas não são tudo como é a poesia-nicho avarandada sobre o universo. Os capelistas chateiam-se frequentemente com os anichados porque não suportam a liberdade e não fazem ideia do que é um centro ou onde ele se situa na circunferência. Possuem uma falha geométrica, uma espécie de cegueira que pode ser hereditária e/ou contagiosa se deixarmos... mas não deixamos.