quarta-feira, 28 de dezembro de 2022
O mundo é uma bola de algodão
quinta-feira, 22 de dezembro de 2022
A estrada larga
Amuei com a realidade
Quero outra que não seja
Este vago sentimento de esperança turva
E outros nomes que criasse
Fariam parte dela, como folhas caindo
Da árvore que é este firme propósito de existir
Mostram-nos os deuses a estrada larga
Atravessada de margem a margem
Chamamos-lhe vida ...
A restante dela são pontas soltas do infinito
Onde Deus varia conforme a luz
quarta-feira, 7 de dezembro de 2022
O Frankenstein e o Golem
Diz Yuval Noah Harari, nas suas "21 lições para o século XXI" (Ed. Elsinore, 7a edição, 2021), várias coisas (por vezes bastantes precipitadas e próprias de um jovem que segue um linha de pensamento sem ter atenção ao hábito tão presente nas suas origens judaicas de debater em conjunto assuntos complicados, como é o caso da macro-História). De entre essas coisas, diz: "os computadores não têm subconsciente" (p.86), "a ficção científica costuma confundir inteligência com consciência " (p.95), "o perigo é que, se investirmos muito no desenvolvimento da inteligência artificial e pouco no desenvolvimento da consciência humana, a sofisticada inteligência artificial dos computadores só servirá para dar mais poder à estupidez natural dos seres humanos." (p. 97).
A páginas tantas, no seu deslumbramento pela demanda humana da criação da própria vida, lembra também o caso de Frankenstein e aí parei e lembrei-me do caso do Golem.
A diferença entre o Frankenstein e o Golem, é que o primeiro é feito de remendos, uma experiência científica mal sucedida, resultando num monstro, já o Golem é criação de um alquimista, feito de barro, a quem foi insuflado o espírito da vida, o sopro, mas com a incapacidade de falar (a linguagem humana não é outra coisa senão a consciência humana corporificada). O que têm os dois em comum: acabam mal.
A marcha da humanidade promovida neste e noutros livros do autor parece ser consequência da própria queda, imparável, da Humanidade. Existem factores, no entanto, que nos escapam ao invés do que parece sobressair nestas obras. Algo nos escapa sempre. O homem deificado não é Deus porque qualquer deus é uma faceta Dele.
Conhecendo este autor o hinduísmo, espanta-me a forma linear com que reescreve a História dos Homens. Praticando este autor a meditação, espanta-me que não atente aos ciclos que na História dos Homens toma a forma de uma espiral, e não de uma lança dirigida ao futuro acertando em parte incerta...
Evidentemente que nos alerta, evidentemente que propõe soluções, no entanto, nada nos diz que são as melhores e nada nos diz que o próprio autor se conhece verdadeiramente a si próprio: "a maioria das pessoas não se conhece muito bem a si mesma" (p.75), e segue na mesma página com o exemplo da sua homossexualidade descoberta tardiamente aos 21 anos. Tememos que o conhecimento da orientação sexual, gostos pessoais, etc, nada tenha a ver com o conhecimento da nossa própria essência... , todo esse tipo de auto-conhecimento é altamente volátil e até Freud teve de escavar, por vezes, um pouco mais profundamente, indo além do "abaixo do umbigo". O auto-conhecimento é a "parte mais baixa" do conhecimento do homem em geral... porque é extremamente volátil e um verdadeiro entretenimento para psicólogos que gostam que os seus clientes fiquem "resolvidos" e aptos a encaixarem numa sociedade estragada e desequilibrada. Dizer "sou gay" tem tanto de auto-conhecimento como dizer "gosto mais de bolos do que de doces", não revela nada, nem diz nada, nem adianta, nem atrasa... é apenas um facto no meio de milhares, um facto que, como tantos outros podem ou não ser motivos de descriminação. Uma coisa é o autoconhecimento de inúmeros factos, outra coisa é a descriminação e outra coisa é o conhecimento efectivo do ser humano para lá dos factos e da política ou dos preconceitos. Se se confunde inteligência artificial com consciência, como diz o autor, também se confundem conjuntos de factos que juntos podem funcionar ou não (veja-se a tecnologia), com o conhecimento de todas as dimensões humanas: a maioria delas permanecem desconhecidas.
O mesmo autor diz que as armas nucleares tradicionais (seja lá o que fôr essa "tradição") podem vir a ser consideradas obsoletas (p.152) o que revela que escreve apressadamente: uma arma foi feita para matar, se mata, funciona, se funciona não está obsoleta. O mesmo pode ser dito de uma faca...
O mesmo autor diz que "a maioria das pessoas vota sem pensar" (p.34) - não poderia estar mais de acordo, há quem vote no mais bonito, estou até convencida que foi assim que Sócrates subiu ao poder...- mas no seu galope de historiador imparável e analista esclarecido, chega à conclusão que o mundo precisa, não de um governo global, mas sim de decisores globais, ou seja , o grupo de eleitos por cada país (os actuais governantes), em reunião, para decidir o futuro da humanidade em questões como, a ecologia, a economia e a marcha da ciência. (p.154). Tenho uma boa e uma má notícia para Yuval: a boa é que isso já se passa (e os governantes andam a mando das empresas), a má é que a maioria dos governantes foi eleito por não pensadores.
As questões que o livro levanta são pertinentes, as soluções é que são estranhas talvez porque haja perguntas que não sejam colocadas tais como: necessitamos mesmo de inteligência artificial? A nossa não basta?
Só que questões como esta remetem-nos para a grande questão da essência do ser humano e isso é difícil, penoso e ambicioso, ou seja, a verdadeira demanda. Perguntar o que é uma essência é o primeiro passo. Ou o que é o ser humano, ou o que é uma pergunta... Enfim, começar... Já pintava Almada Negreiros.
domingo, 4 de dezembro de 2022
Super Hipotético
Lá comprei eu mais uma revista Super Interessante, e desta vez, todos os artigos me interessavam, um em particular, o da entrevista a José Luís dos Santos com a chamada de atenção na capa, a letras gordas, "quando a ciência interroga os seus próprios limites". Para além de nos informar da ideia (que já é um lugar comum), de que a ciência e a religião não são incompatíveis por se encontrarem em patamares diferentes, outra informação me fez sorrir e prende-se com a imagem que mostro acima. Refere a revista dois livros de autoria do entrevistado, um dos anos 90 onde é evidenciado o conhecimento da macro-estrutura do Universo, ou seja, o conhecimento total da sua constituição e outro, recente onde afirma, pelo contrário, que aquilo que se pensava ser a constituição total do Universo corresponde, afinal, a 6%, ficando 94% do Universo no patamar do desconhecido devendo-se isso ao facto desta última percentagem (que se debruça apenas sobre a matéria e a energia) ter uma origem desconhecida. Ou seja, num espaço de décadas, passou-se da percepção de um super-conhecimento para um ínfimo conhecimento. Bem vistas as coisas, quase tudo nos é desconhecido e como os cientistas gostam muito de esquemas, desenharam este da imagem que, traduzido, é assim: à medida que a esfera do conhecimento aumenta (a chamada realidade no esquema, ou seja o círculo rudimentar interior), aumenta também a esfera da teoria, ou seja a das hipóteses, bem como o diâmetro da linha que nos separa do desconhecido. É bom saber destas coisas porque assim também sabemos que Deus é sempre maior do que parece. Mas o mesmo se passa, digo eu, ao nível do micro: quanto mais penetramos no interior e na intimidade da matéria mais essa fronteira do desconhecido aumenta. Temos aqui um problema grande porque até parece que é o próprio conhecimento que produz o desconhecido, o que seria, no mínimo hilariante. E é. Evidentemente que as religiões, tal como estão, não são incompatíveis com a ciência porque se encontram em patamares diferentes, mas algumas religiões, tal como eram, também procuraram o conhecimento. Se me disserem que a metodologia tem efeitos sobre aquilo que conhecemos, então talvez perceba a suposta incompatibilidade, a lei é antiga "encontramos aquilo que procuramos" mas, se a ciência conta com o imprevisto para se renovar, não menos faz o Espírito Santo, e aí, encontram-se compatíveis como gémeas... De maneira que, aquilo que temos é isto: uma espécie de "quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha", eu voto nos dois ao mesmo tempo porque não sou uma pessoa democrática... Sou total e não totalitária. Mas esse voto, ao contrário do voto democrático, é um acto inteligente.
Bjs a todos os cientistas totalitários, porque sei que precisam deles... Já intuía Sísifo.
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022
Olá, meu querido Fernando
Ontem não te escrevi porque estava um dia triste. Não há nada pior do que um aniversário da morte (como se a morte fizesse anos ...) como um dia chuvoso, pesado e cinzento, aliás, devíamos apenas, neste caso, falar ou escrever só no dia a seguir à morte. No caso de Cristo, fala-se passados três dias porque como aquilo que se passou foi um processo alquímico, levou um pouco de mais tempo mas, no caso dos poetas, um dia basta para sentirmos essa "curva" e vislumbramos, logo no dia a seguir, uma estrada de sol, como esta de hoje. Não estranhes o facto de não ter colocado uma foto tua (também nunca foste muito de fotos e de públicos juvenis que necessitam de ver para crer), coloquei uma minha que é igual ao estado do país: um perpétuo trabalho idiota de arrumações e limpezas, com momentos de revolta em que se lê um livro. Ler tornou-se um acto de rebeldia. Esses momentos são, no entanto, esparsos porque num país amnésico a lucidez assemelha-se a um raro momento de arco-íris... da mesma forma anda a filosofia portuguesa e a cultura em geral, depois da mecanização dos gestos, passámos (Oh, humanidade gloriosa!), à mecanização do pensamento e o nosso modelo deixou de ser Deus como centro para tender e passou a ser o robot, fios e lata em movimento activados por impulsos elétricos. O Mistério nunca zombou tanto de nós como agora e já nem escondido o achamos por já nem o sabermos nomear... Mudam-se os tempos, mudam-se as insanidades cada vez mais destrutivas. O ambiente em que viveste também não era bom, frio e pesado pela guerra grande e pelo vislumbre de outra a chegar, este tempo, por seu lado, retira a esperança com pás de coveiro e já nem o tédio dos dias nos permite ter alguma (nem que seja que o tédio acabe), porque não há tédio algum, ou seja, tempo estendido em que não se passa nada, o que há é um frenesim vazio de sentido. Afinal, as formigas-homens comandam um mundo, sem querer magoar as formigas, querendo apenas magoar os homens pela sua incapacidade de se reconhecerem como formigas. Creio que tenho como missão (os castigos já os tive todos), observar apenas o que se passa e sorver a aprendizagem do caos, ao mesmo tempo que o transmito ao cosmos para que se espante. Neste tempo de vigilância, a vigília é donzela, a observação é rainha e a contemplação, Imperatriz... O povo vigia tudo como um louco de binóculos numa mão e o martelo de juiz na outra. É a nova fé e a nova espada e a justiça deixou de ser cega e anda por aí, desnuda e louca com o que vê. Também, Fernando, me encontro no cais à espera do navio que me leve, ou da caravela dos sonhos. No fundo, só quero ir ter contigo para ouvirmos o crepitar da poesia enquanto bebemos um copo de vinho. Aqui, pouco ou nada me interessa e este papel de testemunha torna-se demasiado doloroso para almas sensíveis. A luta é para os práticos da vida, os psicopatas da felicidade que não olham a meios para a obter, destruindo tudo à sua passagem. Já lá vai o tempo dos guerreiros... agora, nas brumas deste nevoeiro sem fim, só se vêem mercenários magros e infelizes esperando a felicidade do golpe. Já ninguém galopa e os cavalos vivem em quintas abandonadas, também eles esquecidos de si...
É isto que te posso transmitir agora, Fernando. Isto e a leitura de um bom livro quando surge do tempo antigo ou quando é muito raramente editado hoje, o verdadeiro acto rebelde numa altura em que os livros são queimados barbaramente e diariamente nas redes sociais. Sempre que se acede a uma rede qualquer, queima-se um livro... A Inquisição somos todos nós e nenhum de nós é menos do que um guarda no campo de concentração de Auschwitz. Somo-los nos pequenos gestos resignados, e somos justos, apenas quando lemos. E se te lermos ainda mais. Neste cais, onde espero o Último Navio, leio e penso que gostaria de ter o Império sonhado, com donzelas, rainhas e imperatrizes, mas sem este povo lamacento, sem modos nem sabedoria sequer, apenas virtuosos robots, infinitamente baratos e fáceis, tontos e tristes, em transe com o seu estado de saúde devidamente actualizado. À nossa, Fernando! Somos mais do que isto e um dia destes vamo-nos encontrar junto à lareira para nos aquecermos e falarmos das estrelas já visíveis nessa altura.
Uma beijo enorme de saudades,
Cynthia
sexta-feira, 28 de outubro de 2022
Enquanto isto, em Alexandria...
Tomai estas palavras como a mais pura verdade:
" Graças a um autor satírico da época conhecemos os costumes dos membros do Museu, tranquilos estudiosos aliviados de qualquer preocupação, protegidos dos acontecimentos desfavoráveis dos seus tempos. «Na populosa terra do Egipto - diz o poeta e humorista - engordam muitos eruditos que gatafunham livros e dão bicadas uns nos outros na gaiola das musas.» Outro poema fazia regressar um escritor do mundo dos mortos para aconselhar os habitantes do Museu a não sentirem tanto ressentimento uns pelos outros. Na verdade, as bicadas eram um assunto corrente entre aqueles sábios de vida relaxada, retirados do ruído mundano. as fontes históricas refectem discórdias, ciúme, cólera, rivalidades e má-língua entre eles."
Irene Vallejo, O Infinito num Junco, Bertrand Editora, 2022, pág. 54
Antes de serem estudiosos, são ainda humanos, tal como os padres, antes de serem padres, são ainda humanos, e por aí fora. É assim que a marcha da humanidade permanece para além do espírito das letras, do espírito do conhecimento e do espírito do Espírito. Na nossa incalculável e, por vezes, inenarrável humanidade, prossegue a capacidade daquilo a que nem chamarei paradoxo porque para o ser seria necessário que as paralelas se encontrassem, coisa que não fazem, a não ser num determinado prisma pentagonal... e isto em teoria matemática.
Dei por mim a querer revisitar o sempre irresistível, Somerset Maugham, e a sua assertividade ao descrever a natureza humana como se me fizesse falta, assim meio de repente, voltar a sentir o universo paralelo (ao daquele dito da sabedoria), onde a natureza humana permanece a mesma, igual a si própria, inalterável, por séculos e séculos. E assim ficará por muito mais tempo, caminhando como caminhamos, assemelhamo-nos à "monotonia" dos dias sofrida e vivida por todos os espécimes de homens que precederam o célebre, e mal chamado "homo sapiens", tendo sido melhor chamá-lo de "homem conhecimento" porque a sabedoria não é para esta espécie chamada... só será quando as tais paralelas se tocarem.
Nascer em berço de ouro tecnológico não é garante de sabedoria alguma, da mesma forma que nascer em berço, dito "tradicional", não é garante de ausência de desenvolvimento em direção à sabedoria, mas pode ser... e ainda outro "mas": Mas o que ambos os nascimentos acarretam como carga penosa, é a condição humana, que espreita como Caim acocorado pronto a saltar, tendões flectidos, esperando a hora, para atacar o irmão. A História da Humanidade é uma sucessão de fratricídios... atravessados por algum conhecimento daquilo que nos cerca. Sabedoria é tesouro d'outro universo paralelo, raras vezes visto e ainda mais raramente vivido.
Não é por acaso que dou por mim embrenhada na Antiguidade à procura das respostas, e eis que surge sempre a Humanidade no seu esplendor de loucura e de demanda incessante por um lugar ao sol, nunca à lua (talvez por ser demasiado misteriosa...), por uma assinatura por debaixo de cada descoberta, por tentativas de eternidade em forma de letras, autênticos brasões reais a revelar ao escol de incompetentes. Caims e Abéis sem fim nesta árvore da vida com as raízes demasiado metidas na terra para ser verdadeira.
Não, nada disto é verdadeiro e, por isso, não há que os levar muito a sério, nem por eles ter grande respeito. Que as mãos nunca nos tremam em frente aos homens do conhecimento, será a nossa própria fraca condição humana que treme e se assegura distante da sabedoria. Não há mestre que nos salve se não reconhecemos o mistério do luar... e se como homens, que se esquecem que são os "sapiens" que nunca foram, reiniciarmos a caminhada, despidos de véus obscuros, de camadas amedrontadas pelo tempo, e nos esquecermos definitivamente desta Humanidade que se enganou, mais uma a enganar-se... exactamente no dia em que se auto-intitulou "sábia".
Sou uma romântica inalterável com os anos... ainda penso em justiça como a sobremesa de uma vida inteira. E ainda escrevo, como se fosse essa mesma sobremesa, esse sabor doce que faz repousar o excesso de sal com que povoamos os nossos gestos. Mesmo sabendo do fel a que a justiça pode saber... não deixa de ser doce, na sua essência.
Já nem vejo o conhecimento como veículo para coisa nenhuma. Sempre tive uma memória seletiva, só contando nela o que, de alguma forma, me desse a esperança do encontro de duas paralelas, lugar de luz, harmonia e criação.
Mas é tão raro... tão raro... e, ainda assim, o único sonho, ou desejo que vale a pena... porque nem tudo vale a pena, apenas a alma vale a pena, nem grande, nem pequena, mas do tamanho desse sonho, que não tem tamanho, nem dimensão, nem sequer é daqui.
sexta-feira, 7 de outubro de 2022
O centro
Lembro-me de uma vez, num daqueles passeios-improviso inventados de um dia para o outro pela minha mãe, em Mérida, no início dos anos 80, estarmos num café que ficava numa rua estreita, a ver televisão a cores onde tudo aparecia a cor-de-rosa e, de um momento para o outro, termos sentido a terra a vibrar e um barulho crescente que nos levou a ir para a porta para ver o que se passava. Lembro-me de ter visto passar tanques de guerra que por ali andavam, naquela rua estreita, sem alcatrão e com pedras que mais pareciam ter pertencido a uma qualquer estrada romana. O barulho que os tanques faziam, à medida que atravessava as pedras, ecoava com uma brutalidade que nos toldava os sentidos, aprisionando-nos naquela realidade densa que nos triturava. Foi a primeira vez que senti a tamanha brutalidade da matéria, naquele caso dirigida pelos homens, contra os homens, embora fosse apenas a deslocação dos tanques de um local para outro ou um mero exercício dado àqueles horríveis e horripilantes veículos. A sensação que tenho hoje, destes anos 20 do século XXI, é semelhante. Quando as pessoas não sabem viver, nem sequer estão vivas encontrando-se num estado de semi-dormência ou perto da animalidade, a realidade que criam e que recriam, toma a forma de tanques que atravessam a possível paz de uma ruela com empedrados antigos que não foi feita para a brutalidade e a bestialidade de máquinas de ferro trucidando as vidas e os sentidos. Este tipo de realidade que é só e apenas criada pelos homens, esmaga qualquer percepção do sonho porque, para se sonhar com a beleza e a harmonia, há que estar para além da bestialidade e do próprio sono. Para se sonhar, é necessário estar-se acordado. Para justificar esta tremenda criação humana que é a do hiper-realismo sufocante, a razão apresenta-se lado a lado com a disciplina da Economia. Ambas justificam tudo e ambas comandam todo o ambiente geral em que submissos vagueamos. Porque vagueamos sempre por entre as ruínas das guerras futuras e os escombros das guerras presentes. As do passado são os argumentos com os quais se esgrimam as propagandas que não conhecem mais nada a não ser a guerra, sendo filhas dela. Se os homens sonham com outros patamares que não sejam o da sobrevivência, por um lado, ou o do conforto, por outro, são os tontinhos de serviço, aqueles que estão fora da realidade, os lunáticos que não aterram no planeta Terra, os pouco realistas. Ser realista, hoje, é admitir que esta é a realidade, que não há outra e que outra não pode ser sonhada-criada. O mundo deixa de ser um lugar estranho e perigoso para ser só perigoso. Já não se estranha nada. Quando já não se estranha nada, vivemos na hiper-realidade que é tão verdadeira como outra qualquer que queiramos criar, sendo que nenhuma delas é verdadeira, mas há umas mais perto da verdade (e por isso mais agradáveis), que outras. Os chineses não usam a palavra "verdade" por ser, talvez, demasiado hiper-realista (têm pudor) e, no seu lugar, está a palavra “centro”, mais justa por conceber o sonho como coisa real (a palavra “verdade” tende a excluí-lo). Quando a realidade que criamos é hiper-realista e, por isso, brutal e esmagadora resta-nos, não a compreensão porque, neste caso, o facto de compreendermos isto não serve para nada, mas sim, o desprezo profundo por esta época, talvez devido à insegurança em que nos coloca. Os psicólogos de serviço a esta hiper-realidade tendem a dizer que o desprezo é sinal de insegurança e, neste contexto, até têm razão, mas não pelas razões superficiais que apontam sempre que o desprezo aparece nos seus pacientes ou na sua análise do ser humano. É o hiper-realismo que nos coloca a todos numa situação de insegurança e é ele que nos conduz (pelo menos a alguns) à única saída: o desprezo profundo por esta época. E o desprezo, ao contrário do que os psicólogos inaptos para outras realidades que não sejam aquelas que estudaram, não significa obrigatoriamente ausência de amor. Só quem compartimenta sentimentos e sensações é capaz de criar dogmas sentimentais... o desprezo por esta época é sinal de sanidade mental. A não-adaptação a esta época, é sinal de adaptação a qualquer outra melhor, o triunfo dos infelizes está em serem infelizes e a alegria ou euforia como arma-máscara é a instabilidade nervosa cavalgante que afirma que nunca estivemos num mundo tão bom, nunca fomos tão felizes e nunca estivemos tão aquecidos e confortáveis como agora, embora, claro, com a total incapacidade de sonhar além da esfera do hiper-realismo. Uma das razões pelas quais não devemos escrever é porque ninguém lê e sonha para além de si próprio. Uma das razões pelas quais até podemos/devemos escrever, de vez em quando, é exactamente pelo mesmo motivo. A nossa escrita nunca esteve num lugar tão central e paradoxal como o de agora. Exactamente o mesmo lugar em todos estamos, até mesmo os sonâmbulos, cerca de 99,9999999999...% da população contando da frente para trás e altamente desprezível, e as bestas, em mesmo número, mas contando de trás para a frente e igualmente desprezíveis. No meio de tudo isto, quem se safa? Ninguém, nem os desprezados nem os que desprezam. Todos vivemos neste hiper-realismo que tolhe o sonho e torna totalmente obscuro o amor-além-do-desprezo.
A brisa
Quando ele criava conseguia a dupla elegância : a dos gestos e a da ausência de tudo o que o rodeava. O mundo estava concentrado na ponta dos seus dedos. Lembro-me de me dizer perante as minhas queixas de indiferença para com o que fazia: "Faça na mesma!" E era assim. O público era um acidente. Jamais o vi fazer algo, com aquele foco, para agradar. O que fazia era só para Deus. Os restantes, com os seus valores, as suas modas, as suas opiniões, fundamentadas ou não, os seus trejeitos, as suas divagações, as suas aprovações, os seus espantos, as suas admirações eram inexistentes como alvo da sua atenção. Isso dava-lhe o duplo aspecto de uma superioridade inata e de uma simplicidade intrínseca. As vezes parece que as saudades me derrotam nos gestos mais quotidianos. Mas algo me diz que permanece no fundo da minha alma tão vivo e sábio como quando o encontrei e revejo-o nos pequenos destinos para onde os meus olhos me levam. Hoje, recordei o mundo, "a bola de algodão que está nas nossas mãos fazer feliz" e desfiz-me em lágrimas. Era a voz da linhagem acompanhando o voo que me tinha conduzido à finisterra onde o sol, redondo e nítido, neste dia de luz difusa, se afunda na bruma indefinida que separa o céu do mar. Viemos de tão longe e continuarmos longe e dias há em que essa distância se acentua pela saudade. O mistério ronda a própria infância só por ser antigo e, nas reviravoltas que este mundo dá, permanece sempre nesta vida, atravessando-a como uma longa espada, sem princípio nem fim, recortando-me deste contexto insípido e devolvendo-me todo o Amor, numa simples canção, que nunca passa na rádio, mas hoje passou. No momento certo, o Mistério espreitando por uma fresta a minha inusitada vida. A brisa/carícia de Elias, ali mesmo.
terça-feira, 4 de outubro de 2022
Os iluministas dos símbolos
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Perigo?
sexta-feira, 23 de setembro de 2022
Actualidade
Lá para Leste ameaçam com armas de destruição massiva “cirúrgicas”,
mais uma das actuais contradições, o massivo e o cirúrgico, equivale a um golpe
do cirurgião em todo o corpo do paciente que, provavelmente, não está assim tão
doente… trememos de medo? Evidentemente que sim. Os loucos que querem ficar
para a História ainda acabam com ela e depois, não há História para ficarem. É o
costume em fins de ciclo. O ambiente geral é tão bom que nem me apetece
escrever. Os ditos tradicionalistas actuais não são mais do que patetas porque
de tradição não percebem nada e confundem-na, à boa maneira freudiana, com tudo
aquilo que se refere ao corpo. É assim que a extrema-direita em Itália avança,
Católica e Provinciana, liderada por uma mulher agora que se exalta com todas
as disfuncionalidades actuais, que são muitas, mas não pelas razões ou valores
que invoca. As disfuncionalidades não se resolvem com outras disfuncionalidades
e a senhora, se fosse conversar com o brasileiro de direita enraivecido que
comanda o país, muito provavelmente, este dir-lhe-ia, para ficar em casa,
recatada, onde se querem as mulheres… ou provavelmente, não. A francesa, eriçada
de direita, cheia de imperialismo francês no penteado, louro e ariano,
provavelmente até a apoia. Assim, mais uma contradição: as mulheres em casa
recatadas sempre, excepto para liderarem partidos políticos que digam que as
mulheres devem ser recatadas… e se não forem, e mostrarem o rosto retirando o
véu, há sempre um país pronto para as matar, como fizeram há pouco tempo, num
desses países do deserto seco e friamente punidor. Se tudo preocupa?
Evidentemente que preocupa… a Europa, tão construída à base de “sonhos” a
seguir à última Grande Guerra, devia rever o que fez e a forma como está a
deixar que os muros de defesa ganhem fendas. Os que seguem estes “tradicionalistas”,
fazem-nos nas redes sociais, sobretudo, e raramente lhes passa pela cabeça ir
viver para os países onde essas criaturas de pseudo-tradição lideram, bem
instalados que estão, atrás do teclado, pelo menos enquanto houver electricidade.
Cirurgicamente, nunca lhes cairá uma bomba em cima porque são “superiores”. Está coxinha, e Europa? Pois está. Tanto que
fez à volta do dinheiro e tanto que quis competir com os EUA que se deixou aprisionar
pelos esquerdismos radicais vindos das Universidades Americanas que sonham com
um mundo perfeito e homogéneo na “diferença”, mais uma contradição evidente. A
Europa está entalada por três contradições: a direita de leste, a esquerda de
oeste, e a sua própria contradição, a sua democracia falsa que sempre alimentou
economicamente impérios dos outros… chineses e tudo. Sempre se achou democrata
porque agradava a gregos e a troianos, sem saber muito bem quem era. O alemão-austríaco
eriçado e de bigode, nos 30 e 40 do século passado, fez questão de deixar um
rasto de destruição de tal modo vasto, que os abutres do poente e do nascente
esfregaram as mãos de contentes: que belo tabuleiro de xadrez para eles jogarem…
e assim é. A Europa da Cultura e da Filosofia, afinal de contas, não era assim tão
culta nem tão filósofa. Por muitos anos sacrificou os países periféricos para
que os países do centro pudessem usufruir dos lucros dos seus diálogos sem fim
com os países da guerra fria, e outros que se lhes juntaram. E sacrificou em
vão, porque agora está entalada e bem entalada. A Inglaterra, a velha raposa,
saltou do barco e navega feliz pelo Atlântico e, tal como apareceu num Jornal
inglês de há muito tempo e em letras bem legíveis, aquando de uma tempestade
que conduziu ao corte das ligações entre o Reino Unido e a Europa, à qual
chamam de “Continente”, alguém não hesitou em escrever nele “O Continente está
isolado”. A mesma notícia poderiam os ingleses escrever agora, enquanto dão vivas
ao novo Rei. Se isto está mau? Está. Nada que não fosse previsível num planeta
que corre para os braços da loucura, aos saltos e com um esgar, por já não
conhecer outra dama senão essa… por cá, o nosso primeiro-ministro, socialista,
compra casas de luxo baratitas em comparação com outras enquanto cala o que aí
vem e o nosso presidente bem lhe pede para que se descosa, coisa que ele se
recusa a fazer. Na verdade, dizer ou não dizer o que aí vem é absolutamente
indiferente porque vem na mesma. E não é bom. Dá-me vontade de dar um conselho
aos líderes actuais cuja qualidade é abaixo de cão (sem querer ofender os
alfas): façam trabalhos manuais e percebam assim que não estamos cá para ter
poder. Houve muitos que o tiveram e todos eles estão mortos e foram
substituídos por outros que morreram também. Não se livram dos ciclos. A
tradição, que tanto apregoam, é a busca do “para lá dos ciclos”, nem é esta ideologia
socialista, tanto de esquerda como de direita, nem é esta democracia de arremesso
de todos os socialistas encapotados de comunistas ou da extrema-direita. Em
suma, não é nada disto. Isto não é nada. É por isso que não me apetece escrever,
escrever para o nada é tão absurdo como parece. Escrever tornou-se num acto
absurdo total, ou não fosse ele um acto contemporâneo e mundano… só aquilo que
não é contemporâneo e mundano escapa a essa condição que rima com maldição. Vivemos
dentro do absurdo. Por mais coerências iniciáticas que procurem, elas não
existem. É tudo verdadeiramente incoerente, do princípio ao fim. A dissolução
efectiva. Se querem coerência, façam trabalhos manuais, até lá, estão todos
loucos. No pior sentido do termo. Não aprendem nada… nem querem aprender. A falta
de curiosidade é a marca da loucura. E a verdadeira curiosidade debruça-se sobre
o Mistério que somos. Tal qual a matéria-prima dos trabalhos manuais. Disso,
quem sabe e quem quer saber?
sexta-feira, 2 de setembro de 2022
"Morro pelas minhas próprias penas"
domingo, 21 de agosto de 2022
Telmo
Pelo que entendo, António Telmo, passado 12 anos da tua partida para a Luz que tanto amavas, as gentes e o mundo que contém as gentes (porque o oposto, as gentes que contêm o mundo, é algo cada vez mais raro) continuam com as garras de fora e poder-se-ia quase dizer que, não havendo filosofia selvagem alguma, há uma animalidade filosófica permanente e uma demonstração de machos (mesmo que haja fêmeas) de rituais de luta pelo território. Diria que já se assemelham a rituais apenas devido à constância no tempo de taís fenómenos provindos dos restos, altamente remendados e esfomeados, da outrora luminosa filosofia portuguesa. A visão que passam é a de becos acinzentados com homens esfarrapados em busca de um pedaço de filosofia solta atirado pelo público a um qualquer contentor do lixo e, mal o conseguem segurar, erguem-no vitoriosos e exibem-no aos restantes mendigos ao mesmo tempo que grunhem a canção de serem o verdadeiro discipulado. É mais ou menos isto que se passa, caro Amigo e, num outro lado, muito afastado dessa realidade urbana e pejada de malfeitores, numa herdade antiga esquecida pelo tempo e pelas gentes, uma mesa desenrola um grande banquete (daqueles à antiga) servido aos simples, caseiros e afins, longe das filosofias que sofreram o enfarte do Ego e pasmaram loucas ao espelho por só conseguirem rastejar em torno dos contentores. Aí, nessa herdade única, a brisa de Deus passa e, em silêncio, o copo é levantado em memória do teu Espírito. Os sinais permanecem aquém das gentes e do mundo e permanecem igualmente belos. A herdade eleva-se na paisagem inacessível e o jardim, bem cuidado, ofertado a quem nele nasce, tem a tal fonte no seu centro. Sim, aquela que alimenta os rios que vão muito para além do jardim encantado, desaguando no mar do pensamento e do coração. Tal como disseste.
terça-feira, 2 de agosto de 2022
Ao leme
Não era em vão que existiam intocáveis e também aristocratas/sacerdotes e se alguns intocáveis tinham um papel a desenvolver nalguns rituais, durante a maior parte do tempo, os intocáveis não se podiam tocar, nem sequer convinha olhar. O mundo desenvolveu-se e o número de intocáveis aumentou bem como a sua ascensão aos cargos mais importantes e isto deveu-se muito à ideologia socialista quer esta se apresente à esquerda ou à direita. A inversão das coisas é rigorosa. Agora são os intocáveis que não devem e não querem tocar e ver um aristocrata/sacerdote e é a casta inferior que se encontra no comando ou no leme em todas as áreas: económicas, sociais, políticas, artísticas, bélicas, sacerdotais e "espirituais". Não admira que os intocáveis falem apenas uns para os outros por falta de reconhecimento de tudo aquilo que está para além do seu universo. Um aristocrata magoa, fere e ofende quando diz ser anti-democrata, anti-socialista e monárquico. É considerado mal educado, pouco nobre e muito menos alguém "espiritual". No leme, seguem e somam os intocáveis que levam o mundo nas mãos permanecendo fiéis à rota que os levará até às portas do Inferno: portas que atravessarão, naturalmente, para aí se purificarem ou permanecerem por tempo indeterminado. Entretanto, nem sequer deviam utilizar a palavra "aristocrata" por não entenderem nada dela.
sábado, 30 de julho de 2022
A Deusa
Um amigo, depois de me ouvir sobre o facto de ter sido prejudicada em determinados meios autoproclamados "intelectuais-esotéricos" actuais, por ser mulher, com a melhor das intenções disse-me que fora desse "meio ambiente" talvez o meu trabalho fosse aceite, ao que respondi que não era verdade. Atravessando a fronteira desse contexto misógino muito bem disfarçado de Amor à Deusa (e que esquece o essencial) o desinteresse é total. De maneira que a pessoa sente que não vale muito a pena fazer o que seja. Os dias passam sem que nada de jeito se passe. À excepção, claro, de uma vitalidade intrínseca, meio produto da genética familiar, meio produto da transferência da tal Deusa que todos "amam" imenso sem se lembrarem sequer que é ela que os escolhe, quando os escolhe...
domingo, 10 de julho de 2022
Os boçais
quarta-feira, 6 de julho de 2022
domingo, 26 de junho de 2022
Vinho
quinta-feira, 23 de junho de 2022
Flores silvestres
Os sismógrafos não param. Parecem a venda livre dos argumentos desfeitos. Na tabela periódica dos tipologistas está tudo estagnado e separado por divisórias e estes adormecem descansados enquanto contemplam o seu mundo perfeito, exacto como a matemática (que é apenas um dos dedos de Deus). Já não encontro vagar nem disposição para respirar o mesmo ar claustrofóbico dos monges indefinidos entre o cavalo e o paramento (o único lugar na tabela periódica ocupado por dois tipos de ideia). Os sismógrafos não param porque eles estão sempre a tremer e a atacar, tal como os seus adversários constituídos por lama de esquerda. Hoje andei por Sintra. Um primor! Verdejante e livre de vermes, pelo menos naquela encosta... E que bem que estavam as flores! Pareciam ter sido pinceladas nos muros das quintarolas esquecidas. Chega-se a um ponto em que a função já não interessa e resta a resistência pura e simples do que somos, sem grandes pensamentos, apenas essa contemplação sem a mácula da tentativa de compreensão. E lembrar que perante Deus, estamos todos nús, como no Paraíso. Se as sereias passam, que passem, com as sua caudas de mar, se os centauros se erguem, que se elevem sem me incomodar, mesmo não cabendo na tabela em nenhum lugar, ainda assim passam mesmo que os diligentes da sabedoria possível ericem os seus espigões semi-atentos face a uma realidade maior... Diz a voz da Arte, que os sacerdotes estão entre os artistas e que os guerreiros se dispersaram nos campos de batalha para mais não serem vistos, nem nada serem. E, reservadas, as flores silvestres ignoram as batalhas dos campos onde florescem... Nada é para elas e tudo é delas, nas sua circular, perfeita e imparável roda imóvel.
terça-feira, 21 de junho de 2022
A Árvore da Vida
Bill Bryson no seu livro “Uma Breve História de Quase Tudo” chama a atenção para o facto de a indústria automóvel ter aumentado consideravelmente o nível de poluição corporal que os homens possuem nos seus próprios corpos, estimando-se que seja 400 vezes superior ao que continha no início da Era automobilística. Evidentemente, já não somos o que éramos como seres humanos. Por outro lado, no alucinante livro de Jonathan Black “História Secreta do Mundo”, na página 66, conta o autor que “O que professores das escolas dos Mistérios pretenderam indicar com a vitória do deus Sol foi a importante transição de um Cosmos puramente mineral para um Cosmos florescente em vida vegetal” e que, segundo a tradição desses Mistérios, "germes únicos uniram-se em vastas estruturas flutuantes semelhantes a teias que encheram todo o Universo”, sendo essa fase recordada nos Vedas como a “Rede de Indra” constituída por “luminosos fios vivos perpetuamente entrelaçados, unindo-se com ondas de luz e depois voltando a dissolver-se” para mais tarde se entrelaçarem de novo, desta vez de forma mais permanente, em forma de árvore, árvore que seria o próprio Adão e tendo essas formas ficado cada vez mais densas e semelhantes às plantas de hoje. Segundo o mesmo autor, o sistema nervoso simpático, é semelhante a uma árvore. Por sua vez, Rebecca Wragg Sykes, na sua obra (altamente sistemática), “A Nossa Família - vida, amor, morte e arte dos Neandertais”, coloca em evidência o desenvolvimento humano como uma árvore, tendo vários “tipos” pré-humanos e humanos, sobrevivido, ora mais ou menos tempo, tendo-se alguns desenvolvido, outros não (não falo em evolução porque esta é muito subjetiva) e tendo os mais desenvolvidos coexistido com os mais primitivos, exatamente como hoje se passa, com as tribos primitivas a quilómetros da “civilização". E, assim, ficamos com a noção de árvore em várias dimensões. Se é verdade que o próprio Cosmos começou por ser algo de muito subtil e luminoso, também será verdade que guardamos essa memória algures. Se é verdade que a nossa estrutura corporal não é destituída dessa subtileza podemos calcular o que é que o excesso de poluição pode provocar: as toxinas impedem o fluxo daquilo que deve fluir. Se é verdade que o mais primitivo coexiste com o mais desenvolvido, vemos que, tal como os tipos de Neandertais que aparecem e desaparecem e que esses vários “tipos” podem ter coexistido com o Homo Sapiens, também é natural que as civilizações, que se desenvolvem como ramos, em vários níveis e que, na antiguidade chegam a coexistir, também aparecem e desaparecem. Quando olhamos para a nossa civilização e a consideramos estar no topo da evolução, somos, no mínimo, ridículos. Os nossos níveis de toxinas corporais dá-nos, não só para a vaidade como para nos impedir de conhecer o lado invisível das coisas, algo a que, possivelmente um pré-humano teria mais acesso. É curioso que a subtileza desses filamentos entrelaçados iniciais esteja ligada à luz. E que luz seria essa? A relatada pelos místicos cristãos, ou pelos yogis, os que tentam a União, nos seus exercícios, queimando as ilusões como etapas? A nostalgia do Paraíso, quando o mundo era diferente e os seus habitantes também, invade-nos como uma onda e escrevem-se livros e livros na tentativa de compreensão e reconquista desse Estado Adâmico. Não deixa de ser uma forte contradição actual que tal aconteça: então não estamos nós na crista da onda da evolução? Não, e é por isso que esses livros são escritos e tantas vezes a par com ideias magníficas de soluções ideológicas para as sociedades: capitalismos, tecnocracias, comunismos, liberalismos etc e tal, sem se perceber que qualquer sociedade equilibrada é apenas produto do homem equilibrado consigo mesmo, ou talvez por outras palavras, com a Luz que transporta como resíduo do Início, luz que concentra as potências. Até lá, somos toxinas ambulantes, deprimidas, perto do negro chumbo, o mineral dos minerais, pior que o ferro... e como assim somos, a nossa consciência não vai além da do próprio animal (que não tem muita consciência de si próprio) e temos aí um problema: diziam os antigos que o homem é o único capaz de imitar qualquer animal, exactamente por os conter todos dentro de si: a esse nível somos algo que se desenvolveu bastante, algo que foi para além do animal, mas, como as toxinas e a amnésia nos fazem esquecer essa subtileza do “para além” tentamos resolver as questões sociais à semelhança dos animais e com a diferença de termos alguma, não muita, consciência disso: uns preferem organizações sociais tipo colmeias, outros tipo matilhas, outros tipo anarquias e por aí fora e, como uma desgraça nunca vem só, contamos com a esperança de vir a ser o tipo de organização escolhida aquela que irá mudar o Homem. Ora, seres profundamente intoxicados produzem, naturalmente, sociedades tóxicas, imagens rarefeitas, pequenos “flashs” (e não Fiats) apenas ou resíduos limitados da grandeza do ser humano. Aponta-se a Revolução Industrial como a causadora deste círculo vicioso. O que se ganhou em conforto, perdeu-se em Espírito. Não há aqui uma mensagem ideológica, há apenas uma mensagem de toxinas. Parece muito materialista, mas não é, até porque a matéria nem existe, é apenas uma densificação de qualquer coisa. Da luz, provavelmente, que contém, entre outras coisas, diversas formas de consciência. Graus de consciência e que resultam num Hino de Sabedoria e da Alegria.
domingo, 19 de junho de 2022
A Grande Cegada
sexta-feira, 17 de junho de 2022
Lodo
A espantosa ironia dos factos é aquela que apenas se prende ao lodo e fecha os olhos ao céu. Ainda dei voltas à cabeça a tentar entender mas, logo a seguir, fiz silêncio e, nele, a resposta surgiu como um ponto de luz. Dispersão, materialismo e soberba, eis a marca da nova juventude. Ou isso ou a estupidificação que a Igreja oferece a troco de uma suposta salvação. São estes os pólos em conflito. Depois, os restos de intelectualidade envelhecida que circulam por aí, queimam os últimos cartuchos reclamando a elegância perdida, mas sem olhos para a beleza, nem capacidade de ver as almas. Afinal, foram eles os geradores de tudo isto e é natural que assim seja. Pariram dementes e agora queixam-se da obra. Nos meus olhos claros de céu, sou a águia que não popa o voo e a caça a todos eles. Silenciosa a ave passa, rápida, inflamada pelo próprio sol, renascida a todas as horas do dia, sem a noite das estrelas, com o olhar fixo na luz. Maria Madalena abraçando o sol, como pintei há trinta anos, muito antes das Monas Lisas a duas dimensões e dos castanhos danados por Santos Graais. Forte, como um tambor, o meu coração pulsa ao ritmo do inferno que vislumbro quando voo quase em queda livre e os seguro subitamente com as minhas garras e os obrigo a contorcer-se no ar. Por fora estão estáticos e cheios de certezas, mas é o engano que trazem dentro de si aquele que a águia leva para os céus onde os deuses contemplam as entranhas oferecidas, onde as pesam e onde tecem, a partir delas, o futuro. Nunca terão elegância que desejam enquanto só olharem para o lodo e as novas gerações serão as mais enganadas e serão elas próprias o lodo que agora vos repulsa tanto...
segunda-feira, 13 de junho de 2022
Muitos parabéns, meu amor
Olá querido Fernando.
E passou mais um ano. Feliz aniversário e saudades tuas. Pois por aqui, neste mundo côncavo e de abismos, os homens continuam a sua marcha em direção a lado nenhum. Depois do vírus, uma guerra (há sempre guerras no mundo, mas como esta está mais próxima só se fala dela agora), e dizem que ela é o oriente contra o ocidente. Eu penso que é mais do mesmo porque as pessoas nem sabem o que é o ocidente nem sabem o que é o oriente, só conhecem as coordenadas da rosa dos ventos (e é quando conhecem...) e, como uns estão de um lado e os outros doutro dizem que a guerra é isso. Mas não é nada. O único interesse nesta guerra é o dinheiro, porque de História e de Cultura não sabem nada, nem de um lado nem do outro. Assim, como a maioria dos homens (eu sei que as mulheres para ti são inferiores, discordo de ti, naturalmente, mas amo-te muito) têm agressividade a mais no corpo e esta está toda mal direcionada, fazem guerras e são estúpidos que nem casas (até mais estúpidos do que as casas inteligentes). Também penso existir uma pulsão suicida no meio disto tudo: é o caminho inevitável do caos, poucos passam por ele e regressam renascidos e diferentes (estruturalmente diferentes). De maneira que temos as mais baixas pulsões e os mais medíocres instintos a comandar o mundo: o da ganância, o da sobrevivência e o da tirania (tanto de um lado como do outro) e, quando é assim, tudo é igual a tudo, num tédio profundo e arrastado pela miséria fora...
Quanto a ti, houve quem escrevesse a tua biografia. Ainda não a li porque não tive tempo, só li uma entrevista do autor e pareceu-me que o senhor era um produto desta época, um tanto ou quanto superficial e coerente com o absimo manifesto no qual nos encontramos. Quando tiver tempo, leio, mas não sei se aguento as mil páginas, muitas delas, segundo um crítico cá de casa, são palha suficiente para fazer uma cubata. Mas não quero falar sem conhecer.
O resto continua na mesma. Não há sentido de comunidade em Portugal, cada vez mais é cada um por si o que torna impossível de concretizar qualquer projecto para o país (aqui para nós, e para não variar naquilo que conheces bem, algo muito semelhante ao que se passa na nossa vida).
Fazes falta neste deambular em volta da própria cauda porque nos trazias sempre ideias criativas (mesmo que as ideias não fossem novas, nem tinham de ser: algumas velhas servem perfeitamente) capazes de nos fazer sorrir e pensar por sermos todos portugueses e por sermos, por isso, as tuas próprias palavras. Para que serve a língua portuguesa a não ser para ser o nosso próprio espelho? E que bela ela é, tirando o Acordo Ortográfico que é um acto selvagem e idiota, sim, também ele produto da época.
Assim, meu encanto, a única coisa que há a fazer é calar e continuar neste silêncio denso feito de concentrados de pensamentos e de emoções. Quando são provados pelos deuses (os únicos capazes de os provar) parecem extra condimentados como a comida indiana e eles dão estalos com a língua no céu da boca e arrepiam-se ligeiramente, e já é muito bom.
Lembras-te de teres escrito sobre a "ilha próxima e remota"? É como nos encontramos alguns de nós, muito poucos. Somos a nossa própria ilha: tal como uma miragem, está próxima e, com um gesto, se afasta... Para quê mais do que isso? O mundo vai para onde escolhe e nós não vamos com ele. No outro dia disseram-me que estava a ficar velhota. Tive vontade de rir. O mundo é que está velho e eu só demasiado jovem para ele. Mas como o mundo fez o pacto de Dorian Gray, vê tudo ao contrário. Alguns de nós nasceram antes do tempo só porque vieram do lado de fora do tempo.
Um beijo enorme.
Da sempre tua
Cynthia
sexta-feira, 10 de junho de 2022
A coisa
O maravilhoso casamento entre a política e os artistas de Estado é o mundo actual porque a vida imita a arte e a arte imita a vida.
Há "iniciações" que só de olhar, não dá vontade. E cada vez há mais...
Quando os políticos apadrinham "coisas" contemporâneas é inevitável que errem em tudo o resto e quando os artistas, não são artistas, mas seres que se arrastam nas modas e "naquilo que está a dar" produzem uma sociedade à sua medida, imagem e semelhança.
Não é em vão que tudo esteja em queda livre. O caos só é belo quando goza das virtudes da força, da sabedoria e da beleza e isso é muito raro. Quando perde esse mecanismo interno que torna a arte sagrada perde o pé e a nossa sociedade atira-se para o abismo de livre vontade.
É por tudo isto que não voto e é por tudo isso que não gosto de arte contemporânea. É por ser altamente repelente, feia, amarga e profundamente estúpida disfarçando-se de inteligência superior. Tantos séculos de boa arte e não aprenderam nada...
quarta-feira, 1 de junho de 2022
"Mas o melhor do mundo, são as crianças"
Perguntar a falsos mestres é tão perigoso como uma tempestade que se aproxima. O meu mestre, sem que o saiba bem, é Fernando Pessoa. Tornou-me a mim a tempestade dos seus escritos. Possuir a poesia nos dias do coração é tão ingrato... Porque como ela, é invisível aos homens comuns. Quem a nota são as crianças. Alunos próximos do coração dos dias. Tão próximos que sabem. Ensinar é uma transfusão de sentimentos. Viver com a tempestade da poesia pelos dias é saber que há um olho do furacão. A paz profunda no centro de tudo. Estranha metáfora que a natureza escolheu para quem está condenado a sentir na pele a atmosfera da escrita. Não perguntar a falsos mestres é ter a sorte de ser a metáfora de um poema de um poeta-mestre que nunca o quis ser. A poesia torna-se ainda mais sublime porque ouvida apenas pelas crianças que conhecem os dias de chuva quando faz sol e não se enganam nos sentimentos que lhe foram insuflados pela manhã que são os seus dias. Todos os outros se enganam e tropeçam nas vírgulas do caminho. A atmosfera da poesia é a brisa que passa, sem vírgulas, sem inspirações. Toda ela é uma expiração contínua que, contraindo o universo, se expande no nosso interior, balança d'oiro, jóia maior intuída pelos príncipes e princesas de um mundo novo. Os outros são, em si, vírgulas no caminho, incapazes de intuir o sol em dias de chuva e a chuva em dias de sol. Apercebem-se apenas da pele largada pela serpente que são... Já as asas, lhes fogem como canções desconhecidas enquanto apelam ao sucesso e à sabedoria que só o meu mestre tem, sem que saiba que a tem. O vínculo é estranho. O vinco que o poeta deixa no meu ser, ainda mais. O meu mestre fala através do paradoxo que sou. E as crianças sustém a respiração por verem a lágrima invisível da chuva miúda como elas caindo por entre o sorriso. Também delas é o céu e o olho que tudo vê, na mais cinzenta tempestade. São campos verdes por onde todos corrermos por entre palavras que são o nosso pólen. Em Portugal, a rosa vive por entre as pedras e trazida nas grinaldas das crianças com que cobrem as coroas de espinhos e de louro dos poetas. E ser assim, ser a vida da poesia incrustada na vida das palavras é a incrível verdade invisível aos olhos dos falsos mestres.
domingo, 29 de maio de 2022
Ir à Índia e por lá ficar
Quanto mais a ciência persegue a exatidão, mais imprevisível se torna a história do mundo e talvez seja por isso que a inexatidão das coisas antigas me encanta, paradoxalmente tornam tudo mais exato, menos viscoso, menos inseguro. Provavelmente é por se encontrarem longe no tempo, quase inacessíveis no seu exacto contexto, mas são confortáveis. Quadros, livros, ideias no crepúsculo do nosso tempo interior, de sombras e luz. Bem-aventuramo-nos, por isso, a afirmar que as coisas de hoje, guerras, pandemias, e historietas de ideologias fáceis não nos suscitam comentários vigorosos, fogosos e sobretudo duradouros. Em conversas com os outros vamos concordando com tudo, não por não existir paciência para discussões, mas sim e ainda mais interessante do que isso, nada do que seja actual nos leva a gritar em plenos pulmões. Se nos perguntarem se uma rosa está mal colocada num arranjo de flores, aí sim, o nosso coração balança e ou se a inestética for em demasia, franzimos o sobrolho, de resto, o vazio é tanto que o deserto parece cheio.
As nossas crónicas parecem fluir numa conversa íntima com Deus e da qual os outros se encontram apartados. Elas acontecem diariamente, no carro, na cozinha, na paisagem. Mas são apenas dúvidas. Não há nada menos pitoresco do que crónicas feitas de dúvidas, sobretudo se não cessarem nunca e se multiplicarem à medida que os anos passam. Deve ser por isso que o silêncio é d’ouro, para não serem reveladas as dúvidas mais profundas, os mais insistentes desconcertos entre nós e a suposta realidade, os mais flagrantes desacertos sempre que avançamos com qualquer opinião sobre qualquer coisa seguida de uma avalanche de argumentos, factos ou delírios que a contradiz. Apraz-nos, sobretudo observar. Aí sim, o nosso silêncio é proveitoso nem que seja pelo simples facto de não fazermos barulho e podermos observar. É proveitoso para nós, não por egoísmo voluntário mas sim, involuntário. Quando nos respondem com silêncio é natural que façamos o mesmo, ainda que não seja um acto absolutamente voluntário, mas sim produto do contexto silencioso. Quanto mais barulho há no mundo, mais silencioso ele se torna, porque qualquer ruído morre morto por outro ruído qualquer. Vivemos num mundo altamente silencioso.
Mas também vivemos num mundo com uma determinada forma de pensar. Podemos chamar a esse modo de pensamento o modo de comer ocidental. Como bem observou Octavio Paz nos seus escritos sobre a Índia, os ocidentais comem linearmente: primeiro a entrada, depois o primeiro prato, depois o segundo prato, depois a sobremesa, depois o digestivo, se for caso disso. Os pratos sucedem-se. A nossa mesa sempre foi indiana. Houve sempre a vontade de colocar tudo de uma vez em cima da mesa e de comer pequenas porções seguindo sempre a ordem do capricho e que é inexata. O pensamento produz-se da mesma forma que comemos. O pensamento sequencial do tipo de Era do Progresso de Comte, impera. A seguir a um acontecimento, vem outro, fruto do primeiro. É a chamada prisão gastronómica do pensamento e, consequentemente, da forma como olhamos e estamos no mundo, paradoxalmente cada vez mais caótico, imprevisível, paradoxal e angustiante. Ao invés, os indianos tem uma mesa em que os vários pratos, ou pequenos mundos gustativos, vivem e são saboreados em simultâneo, numa unidade circular, numa perfeição alimentícia que segue o capricho, o impulso, a impulsividade, o paradoxo voluntário, a refeição-caos onde se mergulha de cabeça, o deleite, em vez da angústia de não possuirmos espaço no estômago para o próximo prato, chato, aborrecido e sequencial.
Nos códigos internos de Fernando Pessoa, “ir à Índia”, segundo me explicou uma pessoana, quer dizer “satisfazer os apetites do corpo”, sem dúvida que o poeta intuía as Índias interiores que percorremos nos Descobrimentos. A satisfação glutona dos desejos imediatos arrisca-se a ser o próprio processo artístico. Colocar aquele determinado azul na pintura, só porque nos apetece quer dizer duas coisas em simultâneo: que nos apetece e que não nos apetece porque é o nosso ser superior, em contacto com algo maior do que nós que nos conduz ao apetecimento e daí que o capricho seja um caos aparente. Numa época tecnocrata isto equivale a falar do fim do mundo. O improviso é o seu filme de terror. Mas é ele que nos concerta o mundo e que nos retira do caos, num “de repente”, absolutamente contrário ao pensamento sequencial.
O problema da tecnocracia tem sido o seguinte: sempre que esta falha (e falha vertiginosamente quase em tudo), responde-se, emenda-se ou tenta resolver-se o problema com mais tecnocracia. A espiral auto-destrutiva do que, em si, já o é, expande-se exponencialmente. Um caçador-recolector pode esperar o mínimo de previsibilidade quando caça e o máximo de improviso quando atinge o alvo. Só assim caça. O mesmo se passando com o que recolhe: vai andando e recolhendo, aproveitando o mínimo de uma lógica sequencial e seguindo o faro invisível do seu ser animal, instintivo, imprevisível, mas suficientemente ordenado para ter permitido a sobrevivência da espécie. Não há como demonstrar (nesta época de cabeças de ananás) tal facto, até porque a demonstração requer uma sequência com a qual o improviso não se coaduna e de maneira que são mundos que embora pudessem estar unidos no início numa fusão imperceptível, hoje, estão apartados e os físicos já deitam as mãos à cabeça à procura de novos instrumentos para perceberem como é que tudo isto funciona porque aqueles que têm à disposição parecem não chegar para uma realidade que é maior do que eles, até porque esta incluí a metafísica, essa chatice que estraga tudo à ciência. Numa mesa indiana, servimo-nos de vários pratos ao mesmo tempo, tal como um florista vai colhendo as fores de improviso e um caçador-recoletor, ensaia os passos da dança da natureza durante o serão, à volta da fogueira. Não tememos afirmar que tal qual o mundo anda, pouco ou nada nos interessa. Nem sequer comunicar com gente doida, ou seja, a maioria da população mundial. Afirmamos isto, não paulatinamente, mas sim abruptamente: a maior parte das pessoas está doida varrida. E o que achamos piada à expressão “doida varrida” pois parece coisa de casa de bruxa nos intervalos dos seus voos. Os doidos varridos são os que foram varridos das casas das bruxas loucas, dessas que improvisam no caldeirão as misturas mais improváveis: as poções, os supra-sumos alimentares que rivalizam com o “elixir”, ou o lado luminoso dos preparados para beber...
Ainda há quem pense que isto só se endireita com lições moralizantes, mais uma demonstração da resposta à tecnocracia com mais tecnocracia. Diremos que não: isto não se endireita porque está muito direito, tão direito como uma barra de ferro inflexível. Isto está completamente nos eixos. A moralização, as fórmulas, a exatidão fazem parte do nosso dia a dia... e é por isso que não muda nem de direção, nem de rumo, nem de propósitos. Quando se responde assim, moralizando, formalizando, formulando é porque o medo é mais do que muito e, aceitar o erro seria a queda do edifício e ninguém quer isso, pois não? Não. É por isso que observamos, apenas e assim continuaremos, por mais que surjam as respostas-remédio exatas, que nada mais são do que justificações esfarrapadas para continuar a amargura dos dias.