segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Encontro com "Um Poeta" de Dalila Pereira da Costa


Início

Este trabalho visa a crítica de um texto de Dalila Pereira da Costa integrando o livro A Nova Atlântida (Ed. Lello & Irmão, Porto, 1977, pág. 334),  datado de 15 de Março de 1972, com o título Um Poeta.
A obra de Dalila Pereira da Costa é pautada pela tentativa de um estudo aprofundado das raízes e emanações míticas, religiosas, históricas, filosóficas, arqueológicas, psicológicas, literárias, místicas e poéticas da cultura portuguesa.
Possuindo uma estilo muito característico, (a autora é identificável facilmente pela primeira leitura de algumas linhas de um texto seu ) utiliza vocábulos recorrentes, tais como “vero”, “alma pátria”, “segredo”, “rebentar”, “interior”, “assunção”, “redenção”, “esotérico”, “místico”, isto para só referir alguns; o seu modelo de análise (se assim pode ser chamado, uma vez que é muito difícil encontrar uma estrutura linear nas suas palavras), consiste num constante serpentear temático, saltando facilmente de uma perspectiva histórica para uma perspectiva mítica, tocando no mesmo texto diversos aspectos num percurso feito por associações de pensamento, sensibilidades, palavras que sugerem outras.
Mas, acima de tudo, a sua originalidade consiste em utilizar a sua experiência pessoal, mística e visionária, como luz que ilumina as suas análises. Frequentemente, essa experiência procura revelar o “interior” dos movimentos da História, o lado invisível dos dados arqueológicos apenas sugestivos, as “intenções” internas dos poetas, e ainda os sinais que as várias perspectivas (histórica, filosófica, mítica, etc.) deixam no seu percurso daquilo que é próprio do misticismo: a procura de um outro mundo, de um mundo paralelo a este, divino,  ao qual apenas se pode aceder directamente por via do êxtase místico  e, indirectamente, pela via poética.
Poder-se-á dizer, então, que para elaborar o tipo de análise que Dalila Pereira da Costa faz é necessário, primeiro, possuir uma vivência mística interior e interna e, só em seguida, com uma experiência desse outro mundo, tentar captar, nos indícios materiais  deste mundo, particularidades, partículas, centelhas, de um mundo espiritual.
Será essa a razão pela qual a autora, segundo as suas próprias palavras, nos confessou ter começado a escrever apenas aos cinquenta e seis anos de idade. Até aí, toda uma fase de experimentação mística, toda uma leitura de obras-chave na sua formação, toda uma maturação do pensamento, da reflexão e da experiência visionária terá sido necessária para que os textos começassem a surgir, um após outro, textos esses que, segundo as palavras da autora, são elaborados com  um alto sentido de missão.

O Poeta, a Vida e a Literatura

“Em face dum poeta, o que urgirá é vê-lo para além do campo da mera literatura” . O texto “Um Poeta” abre com esta frase que, logo de imediato, retira o poeta de um qualquer contexto literário, vendo o poeta para além da “mera”, literatura. Colocámos aspas em “mera”, porque aqui a literatura aparece como algo que não é suficiente para a compreensão de um poeta. A intenção da autora é a de descer até as profundezas da origem do poeta: “…as sua raízes, as raízes da sua criação (…)  não penetram nesse solo superficial”. Insuficiente, superficial, a literatura não terá os instrumentos necessários que visam a penetração da própria Vida, essa sim como “fonte escondida” de onde brotam tanto a poesia como o poeta, servirá antes e apenas como “…um anteparo, protector, entre a vida e o homem. Criando uma distância, zona de segurança.”.
A Literatura surge apenas como mediadora, entre a Vida, (palavra escrita no primeiro parágrafo do texto com caixa alta), e o poeta e ainda o falso poeta que é o leitor. A literatura em si, desligada dessa Vida é “fantasmal”, uma ilusão lúdica, artificial, um mero jogo que finge que é a própria vida sem a ser, ela é em si e por si, quando assim desligada, oca, vivendo em corte ontológico com o real, ela não vive, de facto, é “silêncio e vazio”, envolvida num halo de “negro resplendor“, ela é morta e terá como acção apenas o encaminhar o poeta e o leitor para um “adormecimento”. O adormecimento, segundo uma perspectiva mística, é o não estar desperto para a fonte e, essa fonte, tem sempre a sua origem na Vida. A caixa alta, aparece como indicador de que a Vida tem, por sua vez, origem divina. A utilidade da Literatura será então como que um “amortecedor” do encontro entre o poeta e essa fonte, encontro esse, que é sempre “um contacto tremendo, estreme”, perigoso: toda a aproximação ao sagrado é, de alguma forma, um risco porque se entra em contacto com um mundo essencial, pleno de potências e daí as proibições de “roubar o fogo aos deuses” e mais ainda “roubar o fogo dos deuses”, sendo possível apreender (como segundo sentido nas palavras de Dalila Pereira da Costa) a poesia como acto transgressivo, no sentido em que as fronteiras do mundo visível são ultrapassadas até ao limite do não conhecido ainda, do ainda não visível, lugar de onde a poesia espera ser resgatada, nesse acto heróico do poeta que supera o risco trazendo o troféu intacto das esferas celestes. Será um acto heróico porque o perigo é vencido, pois o transcendente move-se num plano que, embora sendo subtil, sem espaço ou tempo, concentra, no entanto, a força dos primórdios, a força integral a partir da qual o mundo visível, concreto e natural se torna imanente, como a força que teria um parto constante.
É possível, portanto, encontrar o poeta para lá da literatura, sendo as suas raízes as de uma árvore invertida: a profundidade à qual conseguimos descer no seu entendimento é equivalente à ascensão a um outro mundo onde reside a verdadeira vida e da qual recolhe o poeta uma “vibração” que é também um “fervor” e no qual se dá uma renovação tanto do poeta como do leitor, porque a criação poética se funde com a própria vida, tendo por isso a capacidade da experiência da ressurreição. Nesse sentido, a poesia aparece como acto sagrado conduzindo a uma dinâmica característica do mundo celeste: a transmutação.
O poema, uma vez tendo recolhido parte de uma sobrenatureza, torna-se uma espécie de “acumulador”, “uma reserva” de Vida. O valor de um poema não está no seu contexto dentro da literatura nem reside no facto de poder ser literatura, nem tão pouco ao nível do pensamento, ele está na vivência que permite acontecer, vivência essa que se estabelece num “Contacto que é acto de viver e conhecer: onde os dois não se diferenciam”. Essa origem do poema num mundo sobrenatural torna-o “intransigente”, inquebrável, de um corpo só e “resplandecente”.
Curioso é o acto de criação do poema, vindo de uma espécie de silêncio, de nada, de vazio, de trevas, de despojamento, ele surge tal e qual o êxtase místico “quando das profundas das trevas ele se ergue em face do poeta: ser vivo e vivificante” e, por isso, transportando dentro de si uma das categorias do plano sagrado: a imortalidade.

O Leitor

O leitor, ou falso poeta, nas palavras de Dalila Pereira da Costa, é mais do que um breve reflexo do poema. Será um ser vivo que se aproxima de um outro ser vivo, o poema, e daí que haja, por sua parte, “uma dificuldade de aproximação”, pois se o poema transporta em si essa centelha primeva de Vida, assim o leitor é também um ser espiritual; são duas naturezas que se encontram, e, nesse encontro, no primeiro embate, há como que uma “voluntária ignorância, ou negação” por parte do leitor que se recusa perante “uma manifestação excessivamente forte da vida”, pois ele traz em si, para além dessa espiritualidade que lhe é inerente, “essa carga que todo o fraco mortal sentirá como demasiado”. A literatura estabelecerá então a ponte que permite a comunicação entre leitor e poema, o leitor passa pela literatura mas nela não se fixa, porque ele é apenas “um simile”, protegendo-o e libertando-o de uma potente “força de criação”.
A leitura de um poema, como vivência que deve ser, não é um acto de “gosto, com prazer ou deleite de evasão”, isso aparecerá como pele superficial, mera noção estética que se encontra ainda num mundo e num plano demasiado humano; essa vivência é afinal uma purificação, “para limpar”, havendo uma espécie de mergulho baptismal “no seio da própria vida”. Dá-se um regresso do leitor ao mundo arquetipal na leitura do poema e nesse sentido, como os místicos, ele participa e vive com todo o corpo num “gesto brusco e violento”,  numa purificação que é também um despertar; o ser total, em entrega, em fuga a “esse perigo constante que jaz sempre nesse nosso corpo, de sono, diluição ou desistência”, obedece de alguma forma ao apelo do poeta: o de uma “vigilância” constante. Lembramos aqui que a palavra vigilância concorda, harmoniza-se com a palavra vigília. A vigília está ligada à noite, quando tudo dorme ela acontece numa tentativa de não se perder a luz, o dia. A vigília é um esforço mas é também uma espécie de suspensão do tempo e da respiração, ela é uma expectação, é esse vazio silencioso que permite a manifestação do divino, como uma tela em branco que espera a pincelada. A vigília é um estado de preparação que permite a recepção do inesperado, um paradoxo, portanto. No caso do poeta, esse inesperado/esperado é o poema que lhe “acontece” em vida. Não é em vão que Fernando Pessoa tenha escrito: “aconteceu-me um poema”; no caso do leitor, poder-se-á dizer, que lhe aconteceu a leitura de um poema.
Numa tentativa de aproximação à obra de Fernando pessoa, Dalila Pereira da Costa, como leitora, confessa alguma recusa na sua análise: “não se quis levar demasiado longe a pesquisa das estruturas simbólicas aparentes na sua poesia”. Estruturas, esquemas, aparecerão na análise como uma “redução”, uma “limitação” à “liberdade espiritual do poeta”. A autora/leitora acerca-se da obra, não numa tentativa de arrancar as estruturas traduzidas numa espécie de semântica matemática simbólica, assim assimiladas à morte por autópsia dos poemas, mas acerca-se da obra numa tentativa de acompanhamento dinâmico, ritmando as suas palavras com as do poeta, tornando a interpretação numa força de vida, unindo, a dois tempos, a pulsão da poesia, como ser vivo, e a sua leitura num tempo sagrado, ou seja num Tempo Forte, e isto porque, no caso da obra pessoana, o encontro se traduz por vias sentimentais ou veias de sangue dinâmico que corre e percorre todo o corpo (do poema, do poeta e do leitor)  e não apenas por via intelectual: “Quantas vezes não nos sentimos culpados em face de uma obra como em face de um ser que está perante nós, sem defesa possível. Passível de todas as agressões…”.
A hermenêutica por parte do leitor pode aproximar-se assim, também ela, de um acto criativo; o leitor, participando nessa fonte de Vida que é o poema, acompanhando-o, vivendo-o por dentro, sentindo-o por todo o corpo, de alguma forma recria-o,  pois se “toda a poesia é uma força de ressurreição”, também o leitor obriga à ressurreição do poema na sua leitura, numa fusão de vontades, em mútua influência e afluência criativa.

O Poeta, a História e a Nação

Necessário será, para Dalila Pereira da Costa, ver a obra de Fernando Pessoa “dentro da sua pátria, como uma das criações mais significativas desta”. E, aqui, mais uma fusão, mais umas núpcias, desta vez não entre um outro mundo e o poeta, mas entre o poeta e a sua pátria; a criação da obra poética por parte do poeta é igualmente uma criação da sua própria pátria. A pátria, fundindo-se com o poeta é, também ela, um ser criativo reunindo no poeta as palavras/força  pelas quais se faz ouvir, porque o poeta “não é a própria Força, mas como o centro onde ela se reúne e adensa, cresce e se eleva - em manifestação”.  O poeta é tão somente um veículo para uma manifestação, o centro que reúne as forças vitais que compõem a alma de uma pátria, a voz material das palavras que melhor traduzem a composição invisível desse corpo invisível. Pátria e poeta confundem-se e, para o entendimento de ambos, “será necessário que nos debrucemos, de forma atenta, e profunda, e amante, sobre o aspecto interior e espiritual dos seus poetas, para neles e por eles tentar captar um certo «filum», ou rede condutora e organizadora da alma dessa nação”.
A forma mais imediata pela qual a nação se manifesta é pela sua  História, numa linguagem que, à primeira vista, parecerá “puramente explicita” mas que, e mais uma vez, por ser esta a pele superficial de um corpo, obrigará à questão da existência ou não de uma linguagem nela inscrita “recôndita e cifrada”, só passível de conhecimento por via de uma comunhão entre perspectivas que se completam: “através duma criação visionária (então necessariamente pessoal, pela imaginação, mas não subjectiva), tal como a de Garcia de Resende ou de Oliveira Martins, completando assim a duma repetição documental que se quer estrita e objectivamente realista e impessoal, como a de Damião de Góis ou Alexandre Herculano?”
A História de Portugal, assim recontada, surgir-nos-á à imagem e semelhança da poesia, também ela animada por uma força vital e dinâmica mas cuja seiva será a própria nação, esta como identidade cultural e espiritual manifestando-se ao longo do tempo por via de um diversidade de acontecimentos que, embora diversos, revelam um “estilo”, estilo esse só possível de existir por via de uma certa perenidade cultural que “é como uma teima, serena e desesperada”. Serão eles, provavelmente, alguns “mitemas”, para usar a expressão de Gilbert Durand, como a saudade, o mito do Encoberto, o Culto do Espírito Santo, as Descobertas, o milagre das rosas da Rainha Santa, etc. Mitemas que funcionam como força motriz, anímica,  razões e emoções inconscientes que promovem, fazem mover as acções conscientes de um povo. Os acontecimentos históricos não aparecem, para Dalila Pereira da Costa, como compositores autónomos uns dos outros, indiferenciados, ou, de alguma forma aleatórios, mas sim, mais do que compositores, esses acontecimentos, demonstram uma “unidade, como ser vivo: que através da  sua história, se vai realizando, ou desintegrando -- salvando-se ou perdendo-se, sucessivamente e intermitentemente”.
A nação salva-se ou perde-se e isto porque é um ser vivo, e também vivificante naquilo que possui de universal. Porque se o percurso humano, de corpo, alma e espírito, é um percurso que, em princípio, se dirige ao Real, (mais uma vez a caixa alta indicando que esse Real se situa na esfera do outro mundo), e sendo que esse Real  (revelado pelo poeta) é alcançável por parte de uma nação através de acções que visam a santidade, o desenlace desejado será o da redenção dentro de uma perspectiva ou vivência mística na qual se identifica “o Real e o Santo”.
Disse acima que a nação será viva mas também vivificante, sendo por isso universal. Essa universalidade terá  raiz num dos mitemas nacionais, o das Descobertas. Porque, ao procuramos uma das matrizes que regem a obra de Dalila Pereira da Costa, encontramos as Descobertas como forças motrizes da universalidade. Se o poeta, a poesia, o leitor, a história e a nação são mais do que simples pedaços de matéria intelectualizável, também as Descobertas se podem encontrar para além do plano terrestre, constituindo esse plano apenas a contra-face de um plano espiritual, no qual elas teriam acontecido como consequência de “desígnios superiores”, os mesmos que se ocultam nas verdadeiras razões da escrita de uma obra, quer a Pessoana, quer a de Dalila. A esses desígnios superiores apelida a autora e também Fernando Pessoa, de Missão. Portugal, com o seu corpo, alma e espírito teria, assim, uma missão e essa missão estaria traduzida no movimento das Descobertas como dupla viagem: a descoberta do Real e a descoberta da Realidade. A realidade terrestre seria apenas um espelho da Realidade celeste, a descoberta de uma era a descoberta de outra, pois foi no mar que “Deus espelhou o céu” para usar a expressão de Pessoa.
A obra pessoana, como a interpreta Dalila Pereira da Costa, é afinal uma aventura espiritual decalcada da aventura espiritual e terrestre que foram as Descobertas. Os elementos constituintes dessa aventura são diversos e passam por várias expressões: exigência, missão, sacrifício, a “procura e contacto vivido, feito e testemunhado em toda a veracidade, com o sagrado”, sendo a caravela e o poeta incumbidos por forças espirituais superiores de efectuarem um percurso em cujo horizonte se antevê o Absoluto: “Porque, inclusa a toda a poesia (e na especialmente deste poeta), há uma aventura espiritual, levada a cabo pelo seu criador -- e aventura como procura do absoluto: e que assim, na sua forma e exigência, está para além do seu criador”.


No capítulo Um Poeta, Dalila Pereira da Costa condensa. também ela, uma série de forças e princípios que são, em simultâneo, instrumentos para análise e objectos de análise. O principio fundamental que rege este tipo de discurso é o da existência de um ou mais planos da realidade para além do mundo material e visível ou do intelectualizável. Esses planos estão situados numa outra esfera, invisível, dificilmente traduzível, não por ser uma mera abstracção mas por ser uma realidade concreta que concentra em si as potencialidades iniciais de tudo a que chamamos de manifestação; inclusivamente a própria poesia que se reveste de uma camuflagem literária com vista ao desvendamento desse Real, superior.
A poesia, o poeta, o leitor, a história, a nação são  passíveis de uma análise, mas uma análise que passa pela vivência e experiência, e não pelo desmembramento a que o racionalismo seco obriga. Dá-se privilégio ao acto criativo efectuado por aquele mesmo que analisa. Vivificando a obra, o leitor vivifica-se e, vivificando o leitor, a obra vivifica-se, o mesmo se passando com tudo o resto: a  nação e a história vivificam o homem e o homem, por seu lado, vivifica a nação e a história.
Este texto é elaborado por movimentos dúplices,  ascensão e descida à profundezas, havendo nele uma procura de harmonização de opostos numa fusão crescente entre as várias matérias em análise: o poeta funde-se com o outro mundo, com a poesia, com o leitor, com a história e com a nação, numa tentativa de alcançar o absoluto. No fundo, tudo se funde em tudo, Dificilmente assim se poderá encontrar o observador e o objecto porque ambos participam na Criação Absoluta,  concretizando, deste modo, na Vida como acto criativo constante, e, em última análise, eternos porque nunca interrompidos, nessa dinâmica, pelas categorias fragmentárias do espaço e do tempo. A criação de um poeta rompe os céus e consegue roubar o fogo da imortalidade aos deuses: “O que existe e persiste, intocável e sublime, hoje em sempre no tempo, será essa obra dum poeta.”


(Cynthia Guimarães Taveira)

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