domingo, 9 de fevereiro de 2014

Contemplação da Perfeita Memória



 
Perco-me e de novo me perco
A contemplar os vossos cabelos
Embranquecidos que conheci negros
Perco-me nas curvas das vossas rugas
Que cumpriram e vos roubaram os sonhos
Sem que os roubassem alguma vez
porque se lembram deles
E vejo-me assim abandonada
Nesse jeito vos ver
No próprio jeito de vos ver
E em vos ver
Ao vosso jeito, a atravessar a rua
Com vestidos leves reencontrados
Nos verdes anos
Ai, e como namoram o tempo perdido
E a vertigem que guardam e aguardam
Perco-me no ligeiro e insuficiente consolo
Que têm ao contemplar o mar
E que ainda assim preenche os intervalos
das dúvidas tremendo
E como a vossa voz ainda vibra, do mesmo modo
De quando eram surpreendidos
E agora ainda o são, uma e outra vez
Ainda que a mesma surpresa vos surpreenda
Na amnésia gratuita de que somos feitos
E de como os vossos passos nostálgicos
Ainda saltam na energia louca
E despropositada como um milagre
acontecendo no des-sonhado crepúsculo
e de como vos atravessa a eternidade
no fumo que sabem ser
perco-me como se vos amasse
no despropósito descomposto
da exigência engravatada e formal
com que o espírito se veste
quando quer fingir que não o é
e vos vejo em todas as paisagens
eruditamente elaboradas
esperando-vos na paisagem espontânea do ser
vejo-vos na aparência morta
e vivem já, no meu seio,
sem que o saibam ou pressintam
assim ligeiros
na idade que desejam ser
no vosso jeito único de atravessar a rua
de atravessar a vida
de atravessar o meu ser


(Cynthia Guimarães Taveira)

 


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