quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Naus várias...



Com Camões, habituámo-nos à ideia, ou mais,  para alguns, verbalizámos interiormente, ou ainda mais, para tantos outros, afastámos a ideia, definitivamente, de um Portugal ausente de nós e ausente de sentido no mundo e de um mundo sem sentido em nós. Fiel d’amor, Camões, espelha-se e deixa que Portugal se espelhe nele, em suas navegações-namoros, em dupla espiral de conhecimento, num movimento a dois tempos simultâneos, o do corpo e o da alma,  em direcção à ilha dos amores, acercada do espírito, dando a resposta mitológica ao desenrolar da História, pois se o mito, é comumente tido como a base, a fundação a partir do qual se dá o movimento da História, ele é, também, e Camões demonstra-o bem, um resultado desse mesmo movimento, num fim e princípio que se tocam, não por seus arquétipos constituintes, mas sim pelo facto de novos arquétipos, no sentido platónico serem assimilados, desvendados, apreendidos e conhecidos, ou seja, a sacralidade da História resulta numa legitimação instantânea, capaz de, não apenas de se resolver a si própria, como também, lançar no futuro, novos alicerces sagrados, novas fundações, novas tábuas para novas caravelas de maneira a que, de algum modo, e por via paradoxal, a eternidade seja mantida.

Cristalizada a História no texto adquire, assim,  centelhas iluminadoras de horizontes em seu redor, em tempos diversos, passado, presente e futuro entendidos, segundo as palavras de Camões, por via do amor, este como meio de conhecimento. É pela voz poética vibrando na palavra como chama viva e transmutadora que a escatologia lusa ganha forma como consequência natural e sobrenatural do duplo movimento do corpo e da alma, não sendo esta, exclusivamente, o resultado do convívio das três religiões dos Livros – e não do Livro – como também, o resultado de uma demanda efectuada no espaço e no tempo em direcção ao centro solar (seja a Ilha dos bem-aventurados, seja o Oriente, nascente do sol), pontuada pela figura feminina que vai esclarecendo a autognose do poeta e indicando, igualmente, uma espécie de salvação prometida como alimento espiritual na fusão do ser e do Amor.

Escatologia lusa e autognose como vias capazes de manter o ciclo, cumprir o destino e tornando-o consciente e afirmativo de uma consciência da dinâmica da eternidade do mundo e adquirindo, esta consciência, uma nova forma de expressão como percepção apurada e retirada do âmago da potência divina que sustenta essa mesma eternidade, não apenas como imagem rarefeita e parcelar, ainda, como meio céu antevisto, na qual a máquina do mundo, em alegria circular,  espelha o ciclo (e não o círculo – esse como centro, ou ilha concava, ou estrela única, ou Mistérios dos Mistérios, muito para lá da Imago ou de toda e qualquer forma), sem espelhar ainda o contexto do próprio ciclo, mas também, inserindo-o  num contexto maior, no qual, não se anulando os ciclos, se diluem estes, porém, no sentido que há em todas as coisas e que, por via mística, se traduz na luminosidade em movimento, contemplação oferecida a Vasco da Gama.

Com Fernando Pessoa, habituámo-nos à ideia, ou mais, para alguns, revimo-nos interiormente, ou ainda mais para tantos outros, afastámos definitivamente a ideia, da não complexidade do ser, e todo o movimento, que em Camões foi de corpo e alma, passa, com Fernando Pessoa, pela interiorização: a alma do homem-mundo ao alcance do Espírito, como se, por via destes dois poetas, se passasse do circulo mais externo, até outro, progressivamente mais interno, num aprofundamento da autognose, tanto do ser, como da pátria, como do mundo e do universo, aqui, já ambos os lados do céu, o cíclico e o escatológico, perfeitamente integrados no plano do ser que se auto-desvenda na sua face mais interna, os deuses-arquétipos de Camões, bem como as suas mulheres musas, faces múltiplas de uma só, em Fernando Pessoa são substituídos por heterónimos-condutas e condutores da alma numa espécie de compensação existentes no movimento pendular da alma.

Essa compensação, no caso português, é escutada e cantada pela voz dos poetas que são sempre o apelo ao Verdadeiro Homem a cumprir-se, o que nos remete, inevitavelmente, para o futuro, ou seja, para o terceiro movimento do pendulo, invisível, mas o verdadeiro motor arcaico de toda a dinâmica escatológica: a intersecção numa primeira fase, e a transmutação numa segunda fase, do corpo em matéria subtil, de acordo com os ciclos, ou Idades do mundo, num cumprir sem se cumprir, como a respiração natural que se auto-anula, quando se torna perfeita sintonia, por mais não ser necessária, regresso ao interior do circulo, translúcido, lugar de paz e transparência, tendente à anulação de qualquer imagem.  Neste sentido Fernando Pessoa lembra: “que o que amámos é o que desconhecemos, que o que sonhámos é o que conhecíamos”, e assim, tenha apontado o terceiro movimento no qual o não tempo se torna manifesto e reconhecível, tomando o sonho o lugar da realidade para que o Real tome o lugar do sonho.


(Cynthia Guimarães Taveira)

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