A batalha da escrita é como pescar em alto mar que pode estar de todas as maneiras. Elas, as
palavras, estão mudas, até ao acto demiúrgico e misterioso em que aparecem na
página em branco. A batalha da escrita é e existe, no des(rigor) das ideias, no
balanço do equilíbrio, na urgência inflamada delas, as ideias. A batalha da
escrita é uma lâmina de gumes vários, atingindo os amovíveis e inflexíveis
corações em redor, atingindo as ideias e os ideais e atingindo, sobretudo,
aqueles que não escreveram, apenas agiram com palavras breves escritas na areia
e, assim, alteraram o mundo. A batalha da escrita obriga à certeza do que se
escreve, enquanto se escreve, sabendo que não se tem certeza nenhuma e que
todas elas, as certezas, são contextos dentro dos contextos, e que, ainda
assim, se comportam como sobreviventes de um naufrágio procurando uma barca
universal onde repousem em paz. A batalha da escrita é a tentação do efémero
mascarado de eterno, em textos gravados em pedras, na ilusão grandiosa de não
haver ilusão nenhuma quando, elas, as palavras se diluem na luz e nela fazem
sentido, tanto sentido, como um gesto ou uma flor de alegria histriónica que
nasce. A batalha da escrita, é a batalha do silêncio procurado nessa mesma
escrita e que obriga ao não silêncio que é escutar, elas, as palavras, que se
erguem, uma a uma como jogos de dominó que, ao invés de caírem, se levantam, em
sequência de vertigem. A batalha da escrita é uma batalha de silêncio aos
ricochetes provocados numa permanência de ser para além da interpretação, delas,
dessas palavras. A batalha da escrita é a consciência e a intolerância de
sabermos que somos Verbo na essência, em armas erguidas entre o proibido, o
proibitivo, o permitido dele, do Verbo que nos acompanha os gestos em liberdade. A batalha da escrita está entre o terror, temor, dor, amor, de mudar
e o terror, temor, dor, amor de nada mudar, na indiferença indiferente e
profunda do texto que se ergue para além da nossa vontade, da nossa própria
opinião e que depende da nossa opinião ou da aceitação de uma opinião considerada
maior do que nós, ou na evidência cega e clarividente que os factos são sempre despidos de nós próprios e que, ainda assim, os fazemos, a eles os factos e que eles são nós. A batalha
da escrita está em não saber resistir às palavras e perdermo-nos nelas como
amantes loucos que se deixam levar numa valsa pelo salão, pela varanda, pelo
céu, sabendo que nelas, essas palavras, uma vez escritas, nada permanece sobre
nada, ou uma qualquer palavra se sobrepõe a qualquer outra e que, uma vez
escrito o salão, a varanda e o céu, ambos se situam na existência e na
distância equitativa do ser que as escreve. A batalha da escrita é saber que nada surge em
estado morno e sereno ou pouco grandioso, e que, as palavras aparecem como
pedras atiradas ao lago, ou como gotas caindo no charco, e que elas, as
palavras, são sempre quedas do que se quer verdadeiramente dizer, e que são
quedadas por isso mesmo que se quer dizer, podendo ser mornas, serenas e pequenas, em jeito de ser que não é ser.
A batalha delas, das palavras, surge pela manhã mas não desaparece de noite,
porque podendo ser barulho, elas são música de qualquer das formas, porque
todas elas, até as subtraídas do mais confuso ser pertencem a uma qualquer
ordem semântica ainda não descoberta. A batalha das palavras está no facto de
não servirem para nada, nem servirem a nada, nem servirem ao próprio ser ou a
elas próprias e muito menos ao silêncio onde coabitam todas elas e nenhuma
delas. A batalha das palavras consiste
no virtuosismo da evocação que não evoca coisa nenhuma por nada haver para
evocar que possa ser traduzido por palavras. Elas, as palavras, que nos rodeiam e permitem
a expressão são a invenção de todos os segredos e a invenção delas mesmas,
dessas palavras. A batalha das palavras está na razão desanimada de se saberem
sombras plenas de luz, irreveladas e consubstanciadas em todos os gestos
ocultos ou nunca realizados, ou de serem luz plenas de sombras consubstanciadas
em todos os gestos visíveis e concretizados. A batalha delas é tão inglória e
tão vã à partida que é, logo, na primeira letra uma rendição, num dever que,
nelas, nas palavras há, sem dever algum. Todas elas, as palavras, são actos de
paz capazes de todo o sangue e todo o sangue capaz de paz, e que elas vão no
vento, e que tornam e retornam em vendavais insubmissos procurando a submissão
a todas as verdades inclusas no ventre donde brotam e para onde regressam em
morte que não é aparente mas tão verdadeira como as verdades aparentes donde
brotam.
Entre o silêncio e a aurora há apenas a diferença de uma
palavra.
Cynthia Guimarães Taveira
Eugénio de Andrade escreveu «as palavras estão gastas». Será mesmo assim? Ou nós é que perdemos o vínculo verdadeiro com elas e, na impossibilidade de criarmos outras melhores (com mais eficácia para o que queremos), sentimos o vazio? Seja como for, parece-me que algo se pode perder entre o verbo e o que ele pode despertar. Mas, a não ser assim, pela palavra virá um futuro promissor de significante e significado.
ResponderEliminarParabéns pelo texto.
Eduardo Aroso