sábado, 1 de fevereiro de 2014

Breve ensaio sobre "O Marinheiro", peça de teatro escrita por Fernando Pessoa

 
“Bastaram apenas dois dias, 12 e 13 de Setembro de 1913, para escrever O Marinheiro, «drama estático» em prosa, que ilustra perfeitamente a sua teoria de «teatro das almas» e se distingue de toda a prosa contemporânea. Propô-lo a Álvaro Pinto para A Águia. Não é de espantar que o director da revista «saudosista» não tenha entendido nada. A sua recusa de publicar a peça servirá de pretexto a Pessoa para romper com A Águia e com o movimento da «Renascença Portuguesa». O jovem autor dramático atribui tal importância a esta obra que é ela, mais do que qualquer outra em verso ou em prosa, que vai escolher para aparecer com o seu nome, dois anos depois, no primeiro número de Orpheu.”[1]

O Marinheiro de Fernando Pessoa é uma peça de teatro, mas, é dito pelo autor, no início, ser um drama estático. A palavra drama remete para a acção, uma acção estática é um paradoxo, um paradoxo vivo que se situa no interior, na parte interna de nós, tanto do leitor/espectador como no interior do poeta, como ainda no interior do texto e da linguagem que aparece aqui como personagem-fantasma na medida em que é ela que vai criando, ao sabor das palavras-sonhos, realidades outras situadas num espaço imaginário, como ser híbrido entre o verdadeiro e o falso. Da mesma forma que as personagens se deixam encantar pelos sonhos de um passado ir(real), também nós, leitores, acreditamos nessas palavras ditas e não acreditamos por serem falsas. A leitura de O Marinheiro é a vivência interior de um paradoxo. Mas este será afinal o paradoxo produzido pela própria obra de arte, literária, musical: a produção de novos universos tem o seu não-sei-quê de irreal, vivendo na materialidade concreta.

Prefiguram-se, como imagens difusas, ainda sem nome, os heterónimos, o primeiro dos quais criado nesse mesmo ano de 1913, de seu nome Ricardo Reis. As personagens  femininas são distintas umas das outras apenas por numerais: Primeira, Segunda, Terceira, e uma quarta, não nomeada sequer, que está no caixão, não sabemos se morta, se adormecida, se sonhando, apenas como uma imagem, e um marinheiro que sonhado, sonha, sem nome também, e ainda a intuição de uma quinta presença, essa como um fumo ainda informe e atemorizante.

A importância dada por Fernando Pessoa a esta sua peça de teatro não deverá ser motivo de indiferença: com a idade de apenas 25 anos o autor profetiza nela o seu próprio futuro. E mais, essa consciência de um percurso toca a heresia e gera o terror.

Como veremos, é neste cenário de morte, de presença na morte, de consciência dela que nascem os fragmentos de um sujeito que, por vontade ou não, se desintegra. O poeta, à imagem de um deus pagão, tem uma morte interior por desmembramento, fragmentação e, também em semelhança, é dessa morte que é gerada a vida. Ou as diversas vidas, com os seus diversos passados, construídas letra a letra, som a som, por palavras.

 Mas entremos na peça-sonho e vejamos como através de uma prosa poética um futuro ainda não acontecido é já exorcizado e isto só é possível porque, aqui, estamos fora do tempo, num não tempo que é todos eles:

 Cenário simples, um quarto de um castelo, três donzelas, uma outra num caixão vestida de branco, quatro tochas, uma por cada uma delas, indicando provavelmente uma chama de vida interior, uma janela emoldurando dois montes onde entre eles brilha um mar cor de prata, banhado pelo luar vago. Prata, ouro e ainda a música, da qual se fala mas não se ouve, serão os tons com os quais é pontuada a peça. E ainda a ausência de tempo num tempo que é noite:

“-- Ainda não deu hora nenhuma.

 -- Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto”

 E mais à frente:

 “… Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria… Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a que hora é?”

 Porque é fora do tempo que é possível a criação. O tempo pertence ao dia e o dia é concreto, aproxima as coisas, revela-lhes a formas, transfigura-as numa urgência de serem vividas. Mas aqui paira a morte e o tempo morre também:

 “Velamos as horas que passam”

 Morte, lua, noite, caixão, todo um conjunto interdependente: “O simbolismo lunar aparece, assim, nas suas múltiplas epifanias, como estreitamente ligado à obsessão do tempo e da morte. Mas a lua não é só o primeiro morto como também o primeiro morto que ressuscita”[2] A acção, ou não acção, passa-se num tempo que é de morte. As veladoras, como três parcas paradoxais, não produzem o tempo, suspendem-no, pois é nessa suspensão que é possível a manifestação do verbo, mas de um verbo criador. Porque é na noite, na mais negra cor, no fundo das trevas que a semente da obra é decomposta, morre e germina. Tal acontece na natureza vegetal e animal, com ovos que protegem da luz e úteros fechados para o mundo: toda a criação nasce da escuridão numa espécie de morte aparente e o mesmo acontecerá nesta criação de relatos de sonhos que nada mais são do que universos outros criados. Um universo só não basta. O inconformismo é a fonte da arte. Essa infelicidade permanente com o  tão pouco que se tem. Mais um pouco de rosa nas tuas faces rosadas, diz o pintor ao modelo. Mais luz no fundo do teu olhar e o mundo será perfeito. Uma obra é a citação de um universo inteiro.  Aqui, nesta peça, forma e conteúdo da palavra são um todo, formam a massa do acontecimento que é tão somente o passado sonhado, o passado como sonho, a história como falsa realidade vivida na verdade da consciência. E essa evocação é feita pela música das palavras, como sinos que quebram o silêncio a ser evitado, esse sim, como sinal de morte derradeira:

 “… Ah, falemos, minhas irmãs, falemos alto, falemos todas juntas… o silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa… Sinto-o envolver-me como uma névoa… Ah, falai, falai!…”

 Seriam iguais todas estas veladoras, e ainda a morta, de branco. Seria neste tempo ainda de prata nocturna a vontade da permanência nos sonhos, porque é essa luz de luar, essa morte aparente do mundo que é necessário preservar. Recusar a réstia de luz do dia, recusar acordar, recusar a vida:

 “Não rocemos pela vida nem na orla das nossas vestes… Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho…”

 E recusar a vida para poder sonhar, sendo que o sonho não é mais do que criação, como tão bem o poeta, noutro poema, exprime: “Deus quer/ O homem sonha/ A obra nasce.” Porque só ele permite essas Matrioskas, caixas multiplicadas, sonhos que vivem dentro de sonhos num processo infinito, colocado fora do tempo em busca de eternidade:

 “Contai sempre, minha irmã, contai sempre… Não pareis de contar, nem repareis em que dias raiam… O dia nunca raia para quem encosta a cabeça no seio das horas sonhadas…”

 E eis que a primeira premonição surge num suspiro de palavras:

 “Tenho que cansar a ideia de que vos posso ver para poder chegar a ver-vos.”

 A ideia como evocação, pré-existente à realidade, em jeito platónico. A ideia de uma ideia cansada de ser evocada, a ideia levada à exaustão produz a própria realidade. Frase quase perdida no meio de tantas outras na peça, mas toda ela vibrante como uma chama, anúncio do mistério da criação e anúncio ainda do que mais à frente se irá passar com a chegada do marinheiro aos sonhos, personagem que resume as veladoras num desejo único e final: a junção de todos os sonhos possíveis. Até agora, as donzelas pairam numa indecisão, evocando um passado que nunca existiu ou que terá existido apenas porque foi contado, ou terá mesmo existido numa realidade tão distante que já se parece com um sonho, infâncias várias, tempos felizes de união com a natureza, correndo atrás das ondas à beira-mar, colhendo flores, molhando os dedos em fontes. Até agora elas vacilam na re(criação) de um passado, pairando entre a felicidade que pensaram sentir e a nostalgia dessas falsas memórias, dessas palavras que não são mais do que reflexos da própria alma:

 “As vossas frases lembram-me a minha alma”

 Mas ainda, e complexificando ainda mais estes reflexos, centelhas criadoras, este brotar de palavras é situado numa nascente de uma nascente, sendo intuído como algo que não lhes pertence na totalidade, havendo co-criadores  De alguma maneira são palavras animadas por uma vontade extrínseca, como a chama de uma vela:

 “… Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se…”

 Ou ainda em relação às frases que brotam:

 “ Mal sei que as digo… Repito-as seguindo uma voz que não ouço mas que está segredando”

 E ainda, mais à frente:

 “Deixai-a falar… Não a interrompais… Ela conhece palavras que as sereias lhe ensinaram…”

 Ou quase no final:

 “…Quem estou eu sendo?…Quem é que está falando com a minha voz?…”

 Curiosidade numérica é o facto de, ao longo do texto, a palavra música ou canto, ou variações deste, ser repetida catorze vezes. A música muda, apenas evocada nas palavras, acompanha o drama estático, o único movimento adivinhado no tempo, mas também aquele ligado a Orfeu e ao seu destino final e brutal: “mutilado pelas mulheres trácias cujo amor ele desdenhava”[3], destino comum a outros, existindo outras versões sobre o fim de Orfeu, mas igualmente tenebrosas: “Bastide nota que todos os heróis músicos, Marsias, Orfeu, Dionísio e Osíris, morrem habitualmente despedaçados pelos dentes das feras”[4]; Orpheu que viria a ser, curiosamente, o lugar de publicação de O Marinheiro; Orfeu que domestica a natureza pelos sons, Orfeu que acabando despedaçado, fragmentado, imita o poeta, num tempo de trás para a frente, quando este se fragmenta, morre (como sujeito) pela vida em diversos outros que não ele, chegando estes às dezenas entre heterónimos, pseudónimos, semi-heterónimos, personalidades literárias, etc.* A música paira nas palavras como que adivinhando o arquétipo mítico fundador do próprio poeta, legitimando assim esse despedaçar em estilhaços de múltiplos outros, um caleidoscópio de personagens preenchendo o cenário interior do poeta e elevando-o à condição de um herói, erguendo-o como aquele que vai longe de mais, aonde os deuses não permitem, tal como acontecerá com O Marinheiro: “Orfeu é o homem que violou a proibição e ousou olhar o invisível”[5]. A peça, finaliza aliás, com o canto de um galo e o gemido/chiar de um carro, o som como ponto final do silêncio das veladoras que se quedam, param, e não mais sonham.

 Sonhar, contar um conto, a invenção de uma infância, as portas que se abrem com as palavras que correm, a criação, é um acto atemorizante. As quatro tochas aos cantos brilham porque algum fogo foi roubado aos deuses e, de algum modo, ele é guardado por estas vestais-donzelas, protegido e provocado:

 “…Na vida aquece ser pequeno…”

 Uma luz dourada interior que contrasta com a prata fria do luar lá fora, frio que perpassa a peça sempre que uma realidade exterior, desconhecida e transcendente ameaça esse passar pelas horas sem que elas passem, frio como sentido que se mistura com o estado d’alma, um frio interior que reflecte a morte do sujeito omnipresente e invisível na peça, talvez a quinta presença:

 “…Que frio é isto?”…” ou “Está mais frio, mas porque é que está mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais frio que está…”

 A Segunda veladora inicia o relato de um sonho tido à beira-mar, uma vela que passa, não inteiramente falsa, numa ambiguidade oscilante entre a ficção e a realidade, sinal desse acto demiúrgico e demoníaco que é o acto de criar porque a criação, por princípio, pertence aos deuses ou a Deus. A vela, os navios, a barca “de forma sugestivamente lunar será também o primeiro meio de transporte: Ísis e Osíris viajam numa barca fúnebre, (…) o simbolismo da viagem mortuária leva mesmo Bachelard a perguntar-se se a morte não foi arquetipalmente o primeiro navegador, se o «complexo de Caronte» não está na raiz de toda a aventura marítima, e se a morte, como diz um verso célebre, não é o «velho capitão» arquetipal que apaixona toda a navegação dos vivos”[6].

 O marinheiro náufrago talvez seja o próprio poeta, na visão de Teresa Rita Lopes, “Pessoa subitamente náufrago da sua infância”[7], sem maneira de regressar à sua pátria, sofrendo por isso e iniciando um sonho dentro do sonho que ele próprio era, sonhado pela segunda donzela, que por sua vez é sonhada pelo poeta, numa espécie de distância acentuada, cada vez mais, pelas pontes oníricas, provocando uma imagem intensamente difusa do sujeito poético espelhado no marinheiro, sem nome, sem pátria, sem destino, apenas com o sonho de sonhar cada vez mais longe com:

 “…uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem sobre as janelas…”

 O sonho, por dias e anos era erguido como uma obra, e nele era colocada, todos os dias, uma nova pedra. Obra e sonho como sinónimos formando um edifício impossível, numa irrealidade que, a pouco e pouco, tomava o lugar da vida realmente vivida na pátria mãe verdadeira, da infância autêntica, numa diferença marcada por um corte entre a ficção primeiramente sonhada pela donzela e o segundo sonho, sonhado pelo marinheiro:

 “Tudo era diferente de como ele o tivera -- nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se pareciam com o que haviam sido…”

 A criação de uma realidade “totalmente outra” tocando os modos de ser do sagrado pois “…é o «totalmente outro», algo que não entra na nossa esfera de realidade mas pertence a uma ordem de realidade absolutamente oposta, que provoca na alma um interesse que não se pode dominar.”[8]

 E um dia houve, em que o horizonte se mostrou instável e, ou espelhando a instabilidade do marinheiro, ou este espelhando a instabilidade do horizonte, o cansaço de sonhar apodera-se dele querendo este regressar às verdadeiras memórias, à sua vera pátria mas:

 “… viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele… Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que criara… Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara. (…) Nem sequer podia sonhar outro passado.”

 O sonho havia tomado o lugar da realidade e mais uma vez o frio de morte se apodera da donzela que relata a história. O pânico toma conta da sua voz, a vivência nas palavras do sonho do marinheiro fazem-na correr o risco de perder a consciência de si:

 “A minha alma esfria-me… Mal sei se tenho estado a falar… falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos…”

 É esta uma parte do terror perante a criação de uma realidade totalmente outra: “Deste «terror», na sua forma bruta que apareceu originariamente como o sentimento de alguma coisa de «sinistro» e que surgiu como uma estranha novidade na alma da humanidade primitiva é que procede todo o desenvolvimento histórico da religião. [9]

 Insistindo a Primeira donzela para que prossiga o relato, a Segunda torna-se vaga, hesitante, dizendo  não saber o que se passou em seguida ou dizendo saber pouco, falando de um barco que um dia passa por essa ilha e deixando no ar que o marinheiro já não estava lá, havia desaparecido do sonho evaporando-se sem razão aparente, mas falando em seguida de um terror que sentia, abrindo espaço para uma outra parte do medo:

 “…Avançam para mim, por uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço… Quem teria eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?… Tenho um medo disforme de que Deus tivesse proibido o meu sonho… Ele é sem dúvida mais real do que Deus permite…”

 Que não deveria ter permitido Deus, e que outra noite era essa? A noite dentro da noite, o sonho dentro do sonho, o marinheiro que desaparece dentro do país que havia criado. O castigo de ter roubado o fogo criador aos deuses é permanecer para sempre encerrado na sua própria obra, é morrer absolutamente como sujeito, é o poeta disperso, fragmentado nas suas próprias palavras sem vida real alguma que relatar, sem vida para viver a não ser aquela que escorre devagar do aparo da caneta. O poeta paga a sua obra com a sua própria vida, os universos criados implicam o eclipse de um outro tomado como real e pertencente à esfera do dia. É o horror da imposição da obra, é o horror de se entrar em território divino porque só a Deus é permitido criar de uma forma tão perfeita, é o medo da perfeição do sonho que, à semelhança da ideia que se repete até à exaustão, se torna real. O terreno entre o céu e o inferno é pantanoso, perigoso, todo o artista tem, de algum modo, de um lado, Mefistófeles e, do outro, Deus, que o tentam nessa espécie de competição demiúrgica e o preço, ou é a alma ou é a vida. Nenhuma obra criada por mão humana é absolutamente inocente:

 “As mãos não são verdadeiras nem reais… São mistérios que habitam na nossa vida… às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus…”

 E o dia vai surgindo, da prata nocturna nasce enfim o ouro solar, aquele que arrebata as donzelas desse estado de dormência criativa porque:

 “Tudo isto, minhas irmãs, passou-se na noite…”

 O dia como salvação desse gesto herético de se sonhar de mais talvez em busca de uma eternidade que não pertence nem é permitida aos humanos:

 “Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?

 Sonham e não sabem para que servem os sonhos, só aquela que está morta talvez o saiba porque passou o limiar do real, passou para o outro lado do sonho e os veja assim a todos com o propósito final para o qual foram criados. A utilidade da obra só poderá ser intuída para lá da esfera da morte, onde a alma se solta verdadeiramente do corpo e do real:

 “Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que servem os sonhos”

 E uma delas vai ainda mais longe, sugerindo que elas foram sonhadas pelo marinheiro em espirais duplas de sonhos que se sonham a si próprios, em sonhos que se tornam de tal forma vivos que são capazes de sonhar a nossa própria realidade, sendo esta realidade um sonho por isso, Golems criados e criadores de si próprios, Uruboros sem fim girando em eterno rodopio de auto-recriação, universos vários que se criam uns  aos outros e abrem frechas dentro deles para neles caber o sonho de si próprios, vertigem sem fim de criação, sugestão que origina o sentimento da existência de outras presenças naquele quarto do castelo, onde já raia um dia hesitante mas onde novos fantasmas, criados ou vindos porque despertos pelas histórias estão presentes:

 “Há mais presenças  aqui dos que as nossas almas”

 E, quanto mais essa vertigem criativa se manifesta maior a desintegração do ser numa espécie de atomismo louco em que a estranheza da consciência de se estar vivo é cada vez maior pelo excesso de presença dessas partes que se fragmentam até ao limite corporal:

 “Contáveis e eu tanto me distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes diferentes, como três criaturas que falam e andam”

 Ou

 “Já não sei que parte da minha alma é que sente”

 Ou numa consciência aguda dessa divisão:

 “Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis”

 E tudo isto até ao nascimento de uma quinta presença, acto mágico da criação, quinta pessoa que não se sabe se é a própria morte que as impede de sentir e as mantém encerradas dentro delas próprias num estado de semi-vida, criatura pressentida mas cuja presença faz cair um sono com ardor, algo que lhes pega e as vela como se já fossem mortas, como se fossem aquela do caixão que dorme, ou por ideias exaustas que possam ser esta donzelas enfim vivam, ao nascer do dia onde todas as coisas se revelam como de facto são.
A luz, por fim:

“A luz, como que subitamente aumenta”

Este é um drama estático porque num espaço reduzido ao mínimo, circular, como um ovo expectante e, num tempo que se deixa morrer, assistimos à descida vertiginosa ao fundo do  abismo do poeta, num “agora” em que pressente que a obra será a sua vida e a vida a sua obra. E neste abismo de angústia e espanto foi o autor circulando, saltando pelos sonhos através dos quais foi descendo cada vez mais até ao cerne, à essência da própria criação, tocando um horizonte que é já sagrado. E nessa descida, como que numa teia, se foi enredando em sonhos que procurariam explicar o porquê das palavras que escrevia incessantemente, donde vinham elas, para onde iriam elas e o que sobraria dele no fim. A palavra profética ilumina, como um farol, uma possível filosofia aqui encontrada, uma metafísica desvelada. Com num rasgo luminoso, o jovem autor antevê o seu próprio movimento na vida e na obra. No fim da peça, tal como na sua própria vida, o poeta é abatido por um cansaço, por um sono muito semelhante ao das donzelas, mas vivendo para sempre nas palavras. A eternidade socorreu-se das palavras para se manifestar. E assim se manifestou.




[1] Bréchon, Robert, Estranho Estrangeiro - uma biografia de Fernando Pessoa, Quetzal Editores, Lisboa, 1996
[2] Durand, Gilbert, As Estruturas Antropológicas do Imaginário,  Editorial Presença, Lisboa, 1989, Pág. 202
[3] Chevalier, Jean; Gheerbrant, Alain Dicionário de Símbolos, Círculo de Leitores, 1997, Entrada: Orfeu
[4] Gilbert Durand, ob. cit, pág 62
* “Teresa Rita Lopes identificou nada mais nada menos do que 72 criaturas pessoanas; muitas delas deixaram apenas um nome ou uma assinatura, outras deixaram projectos apenas esboçados, que não levava avante.”  Entrevista a José Branco, conduzida por Maria João Avillez, Revista Tabacaria, Primavera 2003, Número 11, Edição da Casa Fernando Pessoa, pág. 102
[5] Chevalier, Jean; Gheerbrant,  Alain , ob. cit. Entrada: Orfeu
[6] Durand, Gilbert, ob. cit, pág 172
[7]Lopes, Teresa Rita, (Coord), Pessoa Inédito, Livros Horizonte, Pág. 30
[8] Otto, Rudolf, O Sagrado, Edições 70, 1992, pág. 41
[9] Otto, Rudolf, ob. cit., pág. 24


Cynthia Guimarães Taveira

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