quarta-feira, 29 de março de 2023
Antes e depois
segunda-feira, 27 de março de 2023
A POLÍTICA, A POLÍTICA DA INDIFERENÇA E AS ALMAS EMPEDERNIDAS QUE DEAMBULAM PELA CASA FERNANDO PESSOA
Cá em casa, entre algumas aventuras que nos foram dadas viver, contam-se as célebres “Aventuras na Casa Fernando Pessoa” e, que, pelos vistos, continuam. A primeira delas começou com uma edição especial feita pelas Edições Caixotim com a colaboração de António Carlos Carvalho e serigrafias de minha autoria. Apresentação da obra foi na Casa Fernando Pessoa, com convidados e exposição de alguns quadros meus. A direcção, qualquer membro que fosse, não apareceu. Depois seguiu-se a apresentação da” Mensagem” de Fernando Pessoa, desta vez em Mirandês, pelas Edições Zéfiro. Nesse dia, ninguém da direcção esteve presente, nem se interessou. E agora, não há duas sem três, depois da Direção ter vindo dizer que, embora “acolhesse” a apresentação de uma nova obra na Casa Fernando Pessoa, o nome da famosa Casa não podia aparecer nos convites (essa obra, a propósito, debruça-se sobre os antepassados judeus de Pessoa e a Inquisição) e o resultado foi o autor desistir de fazer lá a apresentação por não se sentir acolhido coisa nenhuma. A apresentação da obra iria ser feita por António Carlos Carvalho. Mas, como não há três sem quatro, lembro um episódio caricato passado nessa Casa Amaldiçoada: num dos aniversários da morte de Fernando Pessoa foi feita uma iniciativa para lembrar o poeta. Lá fomos alegres e curiosos dar conta do evento. Chegámos logo no início e, do início ao fim, uma série de autores daqueles da moda, foram sucessivamente falando das suas respectivas obras e lendo excertos delas. Sobre Fernando Pessoa, nem uma palavra. Pareciam estarem todos alheios à origem temática do encontro. Estava lá a Adília Lopes, muito atenta a tudo o que se passava. Soubemos que vai haver, para breve, uma actividade com esta poetisa, onde lerá, por certo, os seus delirantes poemas. É justo. Afinal, estava muito atenta ao que se passava.
E agora, a conclusão dita pelo António quando soube que não iria haver apresentação nenhuma, citando Alexandre Herculano: “Este país dá vontade de morrer!”. Depois de tantas aventuras na Casa Fernando Pessoa é natural que cite o o historiador já esquecido.
Isto acontece porque este país não é para vivos, mas sim para os fantasmas do mundo académico e editorial que deambulam pela Cultura e cuja alma empedernida é pouco sensível, tanto a Pessoa, como a todos aqueles que não são fantasmas como eles... Sempre pensei que deveria dizer “I see alive people”, em vez de pessoas mortas, porque, Fernando Pessoa está muito mais vivo que toda essa gente aparatosa e seletiva que tem povoado a Casa Fernando Pessoa. Admitem apenas alguns nomes. Admitem aqueles que consideram que já têm algum nome, quando o nome de todas essas pessoas não interessa para nada. O que interessa é Fernando Pessoa e se há bastardos a interessarem-se por outras formas de abordagem à sua vida e obra, gente “sem nome”, mas que ama a obra do poeta, a Direção só tinha que os acolher como deve de ser e aceitar seguir o exemplo de Pessoa que foi um sol com vários raios, plural e multifacetado. Quando não são isso, não são dignos sequer de o citar, são meros peões do jogo académico, cultural e político que percorre o nosso cada vez mais miserável país.
domingo, 26 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXII
A DIGNIDADE E A BELEZA
Não te olho e não te esqueço, não te entrego nem te
vendo: longe de mim, das minhas horas escorreitas, deslizando pacientemente
pelo dia, persistes, sem que te olhe, por não ser necessário. Somos magníficos,
herdeiros das estepes sem fim, onde os nossos braços se estendiam e desenhavam
uma circunferência à nossa volta, para além das quatro direcções do espaço.
Somos herdeiros da quinta essência e por isso não somos obrigados a ver-nos.
Amplificamo-nos em possibilidades, giramos e paramos o tempo e qualquer manto
nos serve em dias de frio, qualquer cor nos transporta para outro espaço,
qualquer poema cantado nos isola do mundo demasiado imperfeito para nós. As
palavras são simples como os cristais que formam a cidade luminosa ainda mais
vivificada pelas flores e os nossos cavalos de pêlo brilhante são a rebeldia
que tornamos dócil, o nosso espaço diverso, o nosso movimento perpétuo. É com
essas flores que seguras e que parecem dispostas de maneira a levantarem voo a
qualquer momento que permaneces e escreves com elas como se criasses um mundo
novo, vivo, veloz, quente, grande como tu. Ensinas, sem ensinar, o gesto que se
solta sempre que se dispõe uma flor um pouco mais acima, no lugar onde não se
esperava que estivesse. Sabes que o movimento é a vida e que o silêncio é para
os nascidos das sementes, ainda a tremer de medo, ainda soltando os primeiros
sons, ainda longe das palavras de fogo. Não reparas nos gestos firmes, mas
reparas nos gestos livres, na respiração que acompanha a do universo, escutas
os cantos de lamento, mas cantas, pela tua noite iluminada, a alegria dos
pássaros. Em dias de chuva, quando o mundo chora, vês gotas de luz trazendo a
vida aos solos secos e esquecidos de si, nos gritos de revolta ouves o amor, em
barcas livres sentes a prisão dos ventos e nas prisões das vidas intuis a
liberdade dos seres pairando acima da dor, como anjos à espera de um raio de
sol por onde possam deslizar. A arte, para ti, não tem conceitos, não tem limites,
tem apenas a hora precisa em que é, e em que o teu coração se agita de alegria,
ou em que o pássaro, que trazes dentro do coração, canta. A arte para ti é o
momento em que dizes “sim”, sem mais ninguém, só tu e ela, frente a frente como
duas águias reais, como dois deuses engendrados dentro do âmago da própria
vida. E é essa a pureza que me deixas como memória num cartão velho e
esquecido, numa aldeia quase abandonada pelo tempo, numa divisão escura, quando
de costas, na penumbra, apontas para ele para que o veja: uma rosa de pé,
única, alta esguia, como uma maresia súbita no alto da montanha, na vertente
mais interior do continente, uma palavra de fogo feita com imagens, a rosa
erguida no centro das pedras, pequenas, baixas, derrotadas, incapazes de a derrubarem.
A coluna vertebral indomesticável, a primeira rosa a nascer no primeiro jardim,
por entre as pedras cinzentas e frias, o primeiro passo no mundo da verdade que
viveria, lado a lado, com as flores selvagens desse jardim. Como a pomba
que sempre acompanhou os passos e as naus dos habitantes do extremo ocidente.
Rosa sem cruz, vitoriosa num mundo frio. O primeiro e doce toque do fogo e do
calor, a primeira ideia para a primeira palavra de fogo. A riqueza ininterrupta
das pétalas concentradas, fechadas e abertas em simultâneo. A resistência. A
resistência a todas as guerras feita de horas sangrentas e inúteis. A dignidade
e a beleza presente para além de todas as presenças.
sábado, 25 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXI
SOB O SIGNO DO SOL
Não há discípulos nem alunos no jardim. Não há nada
mais a ensinar ou a aprender. Esse tempo esgotou-se, acabou quando se descobre
a entrada secreta por entre sinais e sintonias, uns certos, outros errados, uns
consequentes, outros insignificantes como um bocejo de um deus. O mundo lá fora
fervilha em hierarquias que transbordam os limites do imaginável. Perde-se em
sonhos de quotidiano, adormece nos leitos das modas, investe e acredita em
professores, em sábios, em eremitas no alto das montanhas onde todos os podem
ver… no jardim, nada disso se vê, até porque o jardim é invisível, impossível de
captar na totalidade das suas relações, das suas profundidades, das suas
alturas. É o gesto dos deuses que o desvenda, é a curiosidade dos nascidos das
sementes que o torna numa intuição por ver. Sob o signo do sol, o jardim só
existe com olhos solares, as palavras de fogo só são possíveis de ouvir com o
fogo interno aceso no centro das casas ancestrais, as primeiras, circulares,
que todos os habitantes, oleiros do espaço, guardam consigo desde tempos
antigos. No extremo ocidente, as casas foram construídas com um segredo
reservado aos que conhecem os pilares, os que sabem de onde vieram, os que
simplesmente sabem sem terem aprendido, sem terem tido mestres, sem terem
esperado pelas vozes, sem as questionar, sem terem colocado sinais em altares,
sem se terem comovido com milagres, sem esperarem sequer que um anjo olhasse
pare eles para começarem a caminhar. São os senhores da vontade, do eixo, da
corrente intransmissível que percorre aqueles que, nascidos na mesma gruta de
luz, conhecem o que significam os alicerces, os pilares, os eixos que sustentam
o extremo ocidente que parece ser o fim do mundo. O extremo oriente é o princípio e o fim,
visto de fora, e o fim e o principio visto pelos olhos solares dos habitantes
do jardim secreto, escondido, oculto, cerrado, proibido, inacessível,
camuflado, intransponível, irremediavelmente perdido para quem não nasça dentro
dele a partir de um segundo fôlego vindo do lago escuro e lodoso, no fim do
caminho de pedras, escorregadias, deslizantes, em dias de temporal. Justiça e
injustiça possuem duas faces, como Janus, dois tempos, e a terceira,
independente, que nos olha de frente, como uma águia. Não há mestres nem
discípulos, apenas águias, soberanas, intraduzíveis, mortas para o mundo porque
é o próprio mundo que está morto e cerca a vida do jardim. Cada passo dado para
fora dele, em direcção ao mundo, é o inverso de um mundo visitado por
fantasmas, porque é o próprio mundo que é um fantasma aflito e perdido do
caminho de si e que se assombra a si mesmo, e que se ensombra à luz de mestres
e discípulos, luz crepuscular, de fim do dia, a única que é revelada aos
ensombrados e assombrados, a eles e aos cisnes que os tapam da visão com as
suas asas bancas e suaves, circulando por entre nenúfares ou evitando-os no
caminho, cuidadosamente, silenciosamente, sem lhes falar. Ave de longo e
elegante pescoço, serena, submissa, branca de noite e de dia, indiferente ao
frio e ao calor, ignorando as palavras de fogo e de canto prolongado que
lamenta o próprio silêncio e nunca refere as palavras dos fantasmas do mundo.
sexta-feira, 24 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XX
A ILUSÃO
Estiveram muitos anos envolvidos na terra, com os
dedos entrelaçados na negra textura, remexendo, procurando alimento, tacteando,
como toupeiras cegas de si, demasiado tempo para que não se confundissem com
sementes, ouvindo as palavras dos deuses, sabendo que nunca as entenderiam
completamente, mas procurando esse alimento com a mesma curiosidade com que
qualquer semente é dotada pelo sol. Uns junto ao mar, outros nas montanhas
áridas, puxando as pedras, construindo os novos muros, acendendo fogueiras nas
casas, o fumo, saindo ao centro por onde se vislumbravam as estrelas. Estiveste
lá, nesses dias em que o teu silêncio firme guardava como segredos intransmissíveis
os teus sonhos, as tuas viagens por outras eras e por outras terras.
Encontrar-te agora e reconhecer o teu silêncio no meu, o mesmo delineado das
formas com que dispões os teus objectos, o mesmo ritmo das curvas das folhas,
dos caules, das flores emolduradas de verde e de azul que recai sobre elas como
um mar de estrelas fixas e permanentes na tua arte efémera e que apenas aos
olhos deste mundo que morre devagar em todos os momentos em que não te
contempla e te esquece quando o faz. Ver-te, ver o que criam as tuas mãos é
reviver. “Aqui há vida”, a frase mais simples e verdadeira que só consegues
segredar a quem já sabe e desvendou o que ficou para lá dos portões de ferro
forjado com um dragão e uma coroa, a quem nasceu no jardim por sede de vida,
eterna, jorrando em cascata. A tua música é inaudível para quem não desceu o
caminho de pedras até ao lago e lá se afogou no seu fundo lodoso, para quem, no
limite, não emergiu dele num vôo de força e de vontade, e recusou o destino e
se sobrepôs aos ciclos e recriou em si e para si a espiral de um novo ser. Os
que nunca morreram em vida não te escutam, nem nos livros, nem nas tuas
palavras, nem nos teus gestos. Os poetas morreram sempre um dia para o serem e
recusaram os sinais dados por Ariane para que saíssem do labirinto: olharam as
estrelas no fundo dos caminhos cada vez mais negros, viram-nas como irmãs,
brilharam como elas e elevaram-se voando acima de qualquer caminho delineado
por qualquer deus, mais ou menos conhecido. Os ciclos são jovens eternos, as
espirais são renascimentos sucessivos, sem hora e data marcada, brotando,
acontecendo, abrindo-se, elevando sol a sol, segurando a saudade como facho,
abrindo com ela o caminho novo, as novas formas, a cidade de cristal e de
flores que constróis em segredo, tornando-a alta e leve, erguida ao céu de onde
sabe ter vindo. Os teus dedos já não se confundem com a textura negra da terra,
são feitos de luz, iluminando os rostos que tocam, sem palavras, são a vontade
acima do destino, os deuses constroem destinos como labirintos só pelo gosto
das formas, objectos estéticos, puro amor à forma, à curva ou à recta
surpreendente por entre as curvas… mas estão para além deles, e voam sempre em
direcção a um outro labirinto, marcando o espaço com os seus passos, moldando-o.
Ai de que algum deus negue a liberdade, ai daqueles que o fizerem porque não se
trata de um qualquer deus num dia de vendaval, mas sim de narcisos que nascem
nas suas margens e nas margens de si próprios. O mundo gira porque quer, os
nossos olhos giram com ele porque querem, enquanto as folhas secas rebolam pelo
caminho porque se entregam nos braços do vento. A maior ilusão é a de que não
há liberdade.
quinta-feira, 23 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XIX
LUGAR
Mesmo quando o jardim muda de forma e os canteiros mudam de lugar, no jardim tudo está sempre onde deve estar. Não se sabe bem onde começa a vontade de mudar, de trocar, mas não tem início no caos. Só fora do jardim existe o caos. Lá dentro, a desarrumação e a arrumação constantes, tanto feita pelos homens como feita pela natureza, equivale sempre às fases de um ciclo e, por isso, a folhagem seca rebolando ao vento pelos caminhos está no seu lugar, a semente que cai à terra, cai no exacto lugar onde deve cair, e os homens, mais velhos e mais novos que lá habitam, são o próprio ciclo que é sempre eterno e sempre jovem na sua transparência. O renascimento é sempre verdadeiro, a decadência apenas um pré-renascimento, uma Idade Média, madura, generosa, que se dedica ao húmus das ideias, às iluminuras douradas como as folhas de Outono ao sol, um Inverno denso onde arde o fogo interior nas casas e nos homens, um recolhimento saturnino, entre o chumbo e o ouro, as vestes crepusculares que cobrem a manhã, os homens rudes, caminhando pelas encostas dos montes, carregando a saudade, saídos das grutas, no mesmo lugar em que as flores despontam por entre as pedras, eles mesmos despontando por entre elas, erguendo-se das concavidades, caminhando numa Primavera súbita depois do medo, procurando os cursos de água fresca derramada pela montanha enquanto jacintos e narcisos nascem nas margens dos rios e dos homens. Foi nessa Primavera que repararam nas flores e nas abelhas, no pólen e no mel. O zumbido das abelhas pareceu-lhes passar por eles a falar e imitaram o seu som. A sua primeira palavra foi o zumbido da abelha e, desde aí, as palavras podiam saber a fel ou a mel, guardando consigo a luz dourada do fogo. Antes disso, dançavam em volta das fogueiras e lembravam-se apenas de uma língua muito antiga, perdida para sempre no tempo e no fundo do mar. Quando a palavra não tinha ainda a densidade necessária para que pudesse transmitir o fogo dos deuses, assemelhava-se a um vento soprado, ora embelezando a terra, ora desfigurando-a num ligeiro caos, superficial e pouco consequente por quem as dizia mas, quando aqueles que guardavam ainda a memória em forma de sonho da antiga língua, perdida no tempo e no mar, recomeçaram a falar, depressa ela ganhou a densidade do fogo. Os deuses tinham vindo dos ovos elípticos, com dois centros, um, antigo e longínquo, outro, recente, à beira-mar, ainda tremendo de frio, longe do fogo. Desde o princípio, o jardim foi habitado por pássaros e sementes e eram os pássaros que transportavam as sementes no bico e as deixavam cair e delas brotavam novas plantas, novas flores, novos frutos, novas sementes. Nunca a criação esteve longe da asa e a distância aparente do céu é só uma ilusão para quem não vê aquilo que os pássaros transportam nos bicos: pérolas, jóias, gemas, tesouros de um futuro. Quando as primeiras flores do jardim se abriram, já o fizeram em direcção ao céu de onde tinham vindo. Para que o céu as visse e se lembrasse delas também. As flores foram a primeira oração criada pelo vento, pelos pássaros e pelos homens e é por isso que o desamor do vento é compensado pelo amor dos pássaros e os homens oscilam entre o vento e o céu, entre a pressão da terra e a libertação pelo alto, entre a escravidão e a soberania dos deuses, entre o mundo e o centro de todos os mundos a partir de onde se dará a derradeira viagem. O lugar do jardim são vários neste extremo ocidental da Europa: de granito, de gelo, de praias, de montanhas, de planícies, de vales, de desertos, de searas a perder de vista, douradas, e de cantos prolongados que lamentam a dispersão quando se afastam do centro do mundo, ou de si.
quarta-feira, 22 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XVIII
NAU
Quem chegasse ao jardim a partir do vale frondoso
coberto de árvores de largos troncos, não via imediatamente um jardim.
Envolvido em pedra e madeira, com os seus muros e cercas, erguiam-se mastros a
meio dele onde se adivinhavam eixos, colunas vertebrais direitas, árvores
esguias e altas, velas soltas na sua folhagem, um modo de ser que parecia ser,
como as naus, de uma altivez orgulhosa enfrentando o mar. Essas árvores eram muito
antigas e tinham sido plantadas como ofertas de pais para filhos, de mães para
filhos e compunham a imagem de uma nave, embora as suas raízes não estivessem
mergulhadas no fundo arenoso do mar, mas sim no fundo da terra, atravessando
camadas de memórias, de gerações e de histórias, em torno das quais todo o
jardim tinha nascido. Essas colunas em parte plantadas com um propósito, em
parte naturais, para além de nos obrigarem a levantar os olhos para o céu,
obrigavam-nos também, e por isso mesmo, a que elevássemos os olhos para os
nossos próprios eixos inapreensíveis ou incompreensíveis por parte dos
visitantes com os seus chapéus floridos, os seus sorrisos encantadores e os
seus ouvidos surdos para as palavras de fogo.
A tendência, num jardim, é para olhar para o nível dos olhos e para o
chão onde florescem as cores e as formas variadas, é sentir as metamorfoses
constantes da vegetação, perdermo-nos numa folha seca de Verão que, empurrada
pelo vento, percorre o caminho das pedras, mergulhar os dedos na água fresca da
fonte, observar um ou outro pássaro que canta as cores que tem. Os eixos
permanecem invisíveis, frequentemente ocultos pelas trepadeiras à procura de
sol, mas é graças a eles que as sombras e a luz caem de determinada forma sobre
o jardim e o moldam, gerando os espaços desta ou daquela espécie, conforme
sejam mais diurnas ou nocturnas. E também os ventos e as águas, a forma como
caminham, dependem desses eixos invisíveis com as raízes profundas mergulhadas
em memórias que ninguém conhece. Uma nau sem mastros é um barco de pesca,
recolhe os frutos do mar, divide um dia em dois, o tempo de ir e o tempo de
voltar. Os mastros são a viagem, sem tempo, sem horas para partir nem horas
para chegar, uma sede de conhecimento para além da fome vulgar, para além da
vida vulgar. Parte-se sem se saber quando se volta, mas isso só é possível com
os mastros. E os mastros são os deuses do jardim. Aqueles que não se deixam
capturar como os peixes, os que não se alimentam nem servem de alimento. E os
eixos, essas colunas vertebrais inamovíveis do jardim são as mais
incompreendidas para quem fica no mundo a girar ou a lançar barcos de pesca. O
jardim é uma nau. Os seus mastros ocultam-se nas nuvens, tocam o céu, são os
pontos de honra do jardim.
terça-feira, 21 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XVII
PARA ALÉM DOS MUROS
Temíamos sempre que, para além dos muros, nada do
jardim sobrevivesse. Que as flores murchassem mal passassem o portão, que as
fontes secassem, que o lago se tonasse num pântano, que as árvores perdessem
para sempre a sua folhagem e que nós, perdidos, estivéssemos condenados a
deambular pela cidade, como vasos partidos de onde nenhum rebento fosse capaz
de ascender. Os que viviam do lado de lá, tinham perdido o brilho, tinham-se
tornado baços, demasiado fáceis de ler, loucos sem eira nem beira, perdidos de
si e dos símbolos. O mundo, do outro
lado, nem sempre estava virado do avesso ou de pernas para o ar. Podia aparecer-nos
apenas tresloucado e sem sentido. Como becos sem saída sucessivos. Lia-se isso.
As pessoas tornavam-se, aos nossos olhos, impossíveis de curar. Os outros
estavam profundamente doentes e não sabiam. A cegueira interior é uma doença, a
surdez interior um sintoma dessa doença e equivalente aos gestos mecânicos, a uma
obra prima de um engenheiro que nunca tinha alcançado a arquitectura. As
palavras de fogo, dentro do jardim, brotavam logo que nos tornássemos demasiado
submissos ao céu, demasiado obedientes, demasiado cegos e surdos para nós
próprios. Se nos guiávamos por sinais, éramos ignorantes. Dentro dos muros, a
liberdade ou a falta dela era apreendida naturalmente, como quem respira ou
passa os dedos pelas searas a caminho de uma qualquer casa de madeira, com cheiros
antigos que nos levam para memórias de outras vidas. Não questionar indiciava
falta de liberdade. Não dialogar com Deus era um sintoma de demência que só lá
fora fazia sentido, do outro lado, onde o mar nos esperava. Aceitar um sinal
sem procurar o porquê desse sinal, dessa coincidência, era o mesmo que não
saber ler nem escrever. Era um analfabetismo da própria alma. Era assim que o
fanatismo nascia e se desenvolvia. Aceitar, submetermo-nos, não nos rebelarmos,
era a maior fraqueza em que podíamos cair, embora ali, os nascidos do ovo,
nunca caíssem por não lhes estar na natureza não serem pássaros, deuses, ou
pombas porque as pombas e as fénix eram diferentes dos pássaros, as primeiras
tinham-nos arrebatado nas suas asas desde que nos fizemos ao mar à procura de
terra onde os nossos dedos se pudessem fixar e pudéssemos crescer, e inaugurar
um jardim, e a fénix, essa, era a ave que nos esperava sempre depois das
palavras de fogo, com as suas cores ainda em chamas e as suas plumas leves como
nuvens atravessando o espaço e ignorando todos os muros no seu voo.
segunda-feira, 20 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XVI
COM SEMENTES NAS MÃOS
Depois das ondas e das chuvas, dos ventos, da água,
doce, salgada, das gotas, dos granizos, das nuvens, dos vendavais, do negro céu
abatido sobre a terra, da tormenta, do cansaço, do corvo que voltou, foi a
pomba a primeira ave que convosco falou. E foi ela que vos acompanhou desde
esse sono profundo na praia onde desembarcaram. E gatinharam depois de acordar,
pela manhã, atordoados, olhando em volta. E agarraram primeiro na areia,
depois, subiram a falésia e os vossos dedos tocaram na terra e nas sementes que
sentiram o vosso toque e estremeceram. Abriram-se. Vocês têm mãos verdes.
Tocam. Floresce. Cresce. São filhos do dilúvio e do sol que vos acordou nessa
praia. Teceram as vossas vestes azul-crepúsculo nos vossos primeiros teares, na
tarde que se seguiu a essa manhã. E com ela ocultaram a vossa luz. Conhecer-vos
é despir-vos. Retirar-vos essas lágrimas que vos anoitecem, essas sombras das
árvores, esses vales e lagos escuros e vê-los depois de passarmos o portão de
ferro forjado. Fazer com que brotem do vosso aparente crepúsculo onde cisnes
vagos deslizam vagamente em lagos negro-azulados ao luar. Chorar mais forte do
que vocês para que se revelem. Gritar mais alto do que vocês para que vos possa
escutar. Lamentar mais profundamente para que a vossa vida se desvende quando
me cobrem com a vossa capa que retiram ao meu anoitecer. E ver assim a vossa
leveza, a vossa juventude e a vossa transparência leve, tão leve e tão longe do
primeiro olhar com que vos captámos. Deixar que o vosso corpo rodeie o nosso,
só para que possamos sentir a presença da vossa vida. Os anos que passam pelas
vossas mãos, as sementes que lançam das vossas mãos ao longo dos anos que
passam pelas vossas mãos, não vos dão rugas nem vos socalcam… fazem com que
brotem das vossas vestes azuis e fazem com que sejam as manhãs em que
acordaram, ainda atordoados, nessa praia que vos desperta sempre… mesmo nas
montanhas longínquas, entre as pedras, ainda longe do jardim que já se adivinha
nas vossas verdes mãos, ainda que sejam ainda rudes e agrestes como essas
pedras onde se escondem, nessas grutas-ventres onde se protegem do pesadelo do
céu abatido sobre a terra, as vossas mãos guardam o segredo da vida e a memória
do vosso sol interior nascendo perpetuamente e brotando como uma fonte.
quarta-feira, 15 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XV
A FONTE
Uma fonte nunca é uma só. A água concentrada
dispersa-se em rios e, cada rio, tem uma tonalidade própria e um percurso só
seu. É assim que podemos ouvir falar das águas cristalinas que eram rosadas,
azuladas ou verde água, ou ainda transparentes e sem cor, e da forma como as
águas se encontram a caminho dos pontos cardeais. É por isso que o próprio
jardim é toda a fonte, até mesmo os seus terraços áridos onde crescem as Rendas
de Prata. Os olhos são as nossas fontes de onde brotam as lágrimas e a luz.
Passavas altivo, embrenhado nos teus pensamentos ou pelo menos parecia que
estavas a pensar. Fim da tarde. Pediste-me para ir buscar salvas de prata, com
ondas barrocas desenhadas e lembrei-me do minimalismo que te deixava com uma
expressão vazia, igual ao próprio minimalismo e de te ter ouvido um dia dizer:
“É barroco e ainda bem”. O minimalismo, quando entrava no jardim, saía de lá
apupado, ridicularizado e ainda mais desalmado do que tinha entrado.
Normalmente, respondíamos ao mundo exactamente aquilo que queria ouvir, de maneira
a que o mundo se ouvisse a si próprio e se desse conta do estado em que se
encontrava. A nossa relação com o mundo não ia além disto e, em dias piores,
regressávamos ao jardim com passos apressados, com uma cara de poucos amigos e
assim ficávamos enquanto não respirássemos de novo aquela sucessão de perfumes
que nos mantinha, não vivos, porque isso sempre fomos, mas cristalinos como as
fontes que o mundo lá fora não conseguia ver e sujava sempre sem querer ou por
querer, algo que nos era quase indiferente. O mundo estava mais distante de nós
do que um país estrangeiro. Um país tem sempre vizinhos, conterrâneos, famílias
cruzadas, histórias partilhadas. O mundo connosco não tinha nada disso. Os
loucos pertenciam ao mundo e os seus critérios e as suas escolhas não tinham
qualquer valor no jardim. Eram apenas poluição. Um corte ontológico é como
cortar o cordão umbilical. É para sempre e é radical. Pediste-me as salvas e
fui buscá-las antes de me ir embora. Despedi-me. Entristeceste ligeiramente. Os
grandes poetas não escrevem uma única palavra, embora haja poetas que escrevam
grandes palavras. Os grandes poetas veem apenas. Com uns olhos imensos até
mesmo quando estão absortos naquilo que parecem ser os seus pensamentos. Os
grandes poetas não trocam palavras entre si. Trocam o que veem. Atingem o âmago
sem qualquer abecedário. Largam as palavras de fogo e tornam-se em chamas.
Ardem à nossa frente e tocam-nos com as suas línguas de fogo. Mas não se pense
que se trata do fogo que arde no mundo. Esse é uma pantomima, uma doce preguiça
que se deixa arrastar pelo vento do desamor. Não, os poetas quando são chamas
erguem-se e são a alta montanha que um dia desejámos subir. Não se arrastam,
ascendem, morrem como Moisés, com um beijo de Deus. Dilaceram-nos. Dilaceraste-me
quando vi o que fizeste nas salvas de prata. Fizeste ouro. Ouro do mais fino,
do mais leve, do mais elegante. Fizeste uma cascata grande e outra mais
pequena. Duas. Magnificas. Iguais. Com flores pequenas amarelas que davam o
brilho ao vermelho escuro que jorrava… na noite. Fizeste duas cascatas. Iguais.
Gémeas. Uma maior, outra menor. Uma não vivendo sem a outra. O alto e o baixo
em sintonia, o interior e o exterior, iguais. Via-as pela manhã. Mandei parar
tudo só para as ver. Tinhas feito a minha alma. Estava ali. Corri para ti.
Agradeci-te. Silenciaste e entendeste. Os grandes poetas não escrevem. Amam.
segunda-feira, 13 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XIV
O AR
“Aqui respira-se” e embora se falasse do ar renovado
em perfumes sucedâneos, a respiração verdadeira era a de saber que se podia
ser. Tinha antes passado pela casa pintada com palavras de fogo. Tinha fixado o
olhar. Um estranho olhar. Há tantos anos. Palavras que só depois viveriam por
dentro. E que foram espalhadas aos quatro ventos. Os dedos caminhavam por matérias-primas
desconhecidas, surpresos. Enlaçados em liberdade. Descobrindo a liberdade.
Moldando, colorindo, reparando, ampliando, capazes, incrivelmente capazes.
Desenvolvidos numa sinfonia. Dizia que era do ar. Era o ar, renovado em
perfumes, em flores, abrindo-se como os dedos, em cores, em formas. Girando,
procurando. O olhar, procurando. Atento. Procurando sem limites. O corpo mais
flexível. As pernas afastadas, fortes. O passo determinado. Reconheci-os a
todos só porque andavam. A forma como andavam. Os passos fortes. Os nascidos
das sementes olhavam para o coração. Os nascidos do ovo olhavam para as pernas
e para os dedos. E reparavam se dançávamos ou não. O nível do coração era ainda
o da alma, mas a forma como todo o corpo se movia indicava a labareda do
espírito. Lembrei-me de Bizâncio, em tempos idos, onde na rua, alguém andando,
porque animado pela labareda, se elevava num salto, dava uma cambalhota no ar,
e prosseguia com o seu passo vivificado. Sempre desconfiei das mãos flácidas
dos intelectuais, passivas, receptivas a todas as palavras lamacentas, fossem
de água, fossem de terra, fossem etéreas como sonhos incaptáveis, mas nunca de
fogo como são os nossos corpos, nascidos duas vezes. E os nossos dedos
esticados e fortes, segurando a chama. A semente era a memória do paraíso, o
ovo era o tempo dos deuses. Lembrei-me de Da Vinci, dos meninos nascidos dos
ovos, pássaros de fogo. Mãos capazes de tudo. Da candura do lago sereno ao
luar… o coração é crepuscular, o corpo é solar. Aberto em raios. Ninguém sabe
onde encontrar o sol no crepúsculo desse lago sereno, iluminado pelo luar que
já se levanta e por cisnes, faróis nessa noite da alma, amados e negados,
renegados quando é tempo disso e se desperta finalmente. Ninguém sabe onde ele
está enquanto não nasce. Confundem-no, por vezes com um homem crucificado e
dorido. Mas não. Nunca na dor. Não se encontra aí. Não se encontra no lago
feito de lágrimas onde deslizam cisnes indiferentes ao sol e à lua. É a raiz
que toca o sol. Toca-o de passagem. Um toque, uma nota musical e o universo
explode. Estremece. E inicia o seu movimento, sem diferença entre ele e nós.
Quando passamos o portão de ferro forjado, um melro de bico amarelo olha-nos.
Ele é o lago negro, e o sol emergindo das águas. Heliópolis prometida no seu
bico. Uma outra cidade. Feita de trepadeiras ascendentes, de jardins suspensos,
de árvores em leque, de fontes, de pedras d’ouro, de nascentes debruadas com
pequenas flores brancas e transparentes. Outra terra, feita com os nossos dedos
fortes, enquanto conversamos sobre quase nada, uma terra nova, com novos
perfumes. O sol que doura, ou será apenas a luz que o faz?
domingo, 12 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XIII
OS NÚMEROS E OS NOMES
Não se poderia dizer que não existissem números. Mas
nada era susceptível de ser contado, apenas sabíamos quando era para saber. Não se poderia dizer que não tentávamos.
Todos nós tentávamos. Mas havia sempre alguma coisa que nos interrompia e
tínhamos de começar de novo. Eram raras as vezes em que acertávamos e, mesmo
assim, como tudo mudava à mais pequena mudança da nossa alma – a alma muda
muitíssimo - nem disso podíamos estar seguros. Alguém disse que a ciência
moderna era, sobretudo, medida. Como ali estávamos num jardim solar e não
lunar, a medida era relativamente útil. Algo que, de vez em quando, tínhamos de
utilizar, embora soubéssemos que não era muito precisa, ao contrário da ciência
moderna que se diz precisa. Diz isso de si própria, mas no íntimo, não
acredita. Pelo nosso lado, quando a luz do sol incide, só há crença, aquilo que
se opõe à dúvida. Quando começávamos a contagem, acreditávamos com toda a
verdade de que iriamos conseguir. E, com a mesma precisão que tínhamos na
certeza de que iriamos conseguir, os números apareciam-nos imprecisos,
voláteis. A nossa exactidão era de outra espécie. Acreditávamos, ou melhor,
tínhamos a plena confiança de que os números estavam sempre a mudar. Com uma
relativa utilidade, íamos contando, pétalas, flores, vasos, canteiros, árvores,
espécies. Quando acabávamos, já tudo tinha mudado e sabíamos isso. Não é que
desistíssemos de o fazer, deixávamos de dar importância a isso. O que não era
importante ali não era em lado nenhum. Preferíamos simplesmente olhar para o
ramo florido que íamos tecendo nas mãos. Os nomes tinham o mesmo valor da
contagem. Trocávamo-los sistematicamente e chamávamos uns pelos outros, com
letras trocadas, com o nome trocado, ou com aquele que surgia em palavras de
fogo que iriam rodear alguém com as suas chamas. No Jardim dos Símbolos
perde-se o nome. Até os símbolos perdem o nome à medida que vão sendo
envolvidos nas interpretações que fazemos deles. Quem diria que a rosa é a
sabedoria e que a sabedoria é a rosa? E que a sabedoria contém as letras da
rosa e que a rosa dispensa tudo o que está a mais… todas as letras que estão a
mais na sabedoria, porque a rosa é uma concentração de forças, de energias, uma
essência. Os números e os nomes, quando muito, eram um pretexto para o facto de
estarmos ali. Os pretextos são acessórios. Enxadas pesadas de ferro sulcando a
terra para que não o façamos com os dedos. Os números e os nomes, são luvas.
Não nos permitem chegar às coisas, tocá-las e sentir a sua temperatura sem
números, apenas o sentido do frio, do morno, do quente. A adjectivação é muito
mais total do que qualquer número. Falta sempre um número ou algum deles está
sempre a mais, desencontrado com a realidade. O adjectivo envolve-nos
totalmente. Absolutamente, quente, frio, morno. A captação de um momento tem sempre
um adjectivo. Um momento não é apenas um nome. É a sua circunstância… como
dizia Ortega y Gasset. Todos nós ali dávamos a entender que tínhamos um segredo
ou que guardávamos um mistério dentro de uma caixa escondida num esconderijo,
mas, na verdade, apenas os que já tinham nascido do ovo o tinham. As flores,
donzelas e cavalheiros, nascidas das sementes, pareciam pressentir a existência
de um qualquer segredo, de um qualquer mistério que pairava no ar quando os
deuses do jardim passavam por eles. Esse pressentimento fazia com que
levantassem o queixo e olhassem em várias direcções enquanto falavam. Pareciam
procurar os deuses que lhes punham as palavras de fogo na boca. Sem pensar,
ficavam frequentemente em silêncio, a farejar o segredo. Paravam de falar e
olhavam para além da nossa presença, para uma qualquer linha de um horizonte
que só eles viam. Não percebiam que os deuses éramos nós: aqueles que não
tinham nome e se riam quando deviam ter medo e se enfureciam quando se deviam
alegrar. Eles, por sua vez pressentiam a ira dos deuses e tremiam como as
flores tremem ao vento. Cheguei a ver-lhes o pânico nos rostos quando se
levantou o vento: “Nunca vi nada assim!” gritou alguém naquele momento quando
um vaso de pedra, outrora colocado na escadaria de um palácio, se precipitava e
caia aos seus pés. Quando olhou para mim, recriminando-me, soube que também era
um de nós. Porque tinha olhado para o sítio certo sem que o seu olhar vagueasse
para parte incerta. Um dia, coloquei-o em cima de um carro triunfal. Lamentava-se
por ser um deus pouco bonito enquanto das suas mãos saía um campo de flores tão
selvagem como requintado, tão forte como frágil, tão sereno como intenso.
Limitei-me a apontar para o que fazia ao ouvir os lamentos. Nesse momento subiu
para o carro triunfal porque percebeu: de si só saia o que em si havia: a mais
estonteante beleza. E ergueu-se no seu carro, triunfante, feito de silêncio e
de entendimento. O triunfo não era o que tinha lido nos livros. Era o silêncio
e o entendimento.
sábado, 11 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XII
AS NUVENS E O CRISTAL
Aparatoso, o portão de ferro forjado, tinha um pássaro
pousado e estava ladeado de vasos de flores da época. As Primaveras
sucediam-se, quatro por ano e, por isso, o ano não estava dividido em quatro
nem havia diferença de um ano para o outro. Não havia tempo, apenas espaço. Não
se conheciam todas as portas, mas suspeitávamos que o muro tivesse entradas,
portinholas, nesgas, arcos, frestas, janelas, ao longo de todo o seu percurso.
As pessoas entravam e apareciam em qualquer lugar do jardim sem sabermos muito
bem de onde tinham vindo, que abertura tinham atravessado. Animadas, felizes,
apontando e comentando. Vestidas de seda e jóias, com chapéus de palha, de
flores, de veludos, jardins que levavam ostensivamente no topo da cabeça.
Sorriam e traziam as novidades do mundo que ali depressa perdiam o brilho
quando uma flor se abria e ofuscava tudo. Entravam, mas só estavam lá. Não
faziam parte do jardim nem tinham entrado verdadeiramente. Porque só havia uma
entrada. A do portão forjado com uma coroa e um dragão. Ali, só entravam
verdadeiramente os reis com palavras de fogo. Tivessem já ou não ganho asas. Os
comentários caíam vazios no chão como folhas mortas. Não interessava o que
pensavam do jardim. A nós, que lá tínhamos nascido e lá vivíamos, só nos
interessava o que não pensavam, o que não diziam e, se esse lado calado dos outros
estava adormecido, era como se não existissem para nós. Eram como serpentes que
passavam e largavam a pele que nos distraíamos a queimar, mais tarde,
juntamente com alguns troncos velhos, esquecidos de si e atrapalhando os nossos
passos. O caminho para lá passava inevitavelmente pelo céu e ninguém sabe qual
é esse caminho. Permanece misterioso, tanto para quem nunca o trilhou como para
quem o trilhou. Imaginava sempre a providência vestida de mulher, passeando num
jardim com flores muito suas e muito próprias, ou então, uma rapariga com um
vestido fresco, às flores, sempre flores, deitada na relva, ao sol, a rir, ou
ainda um vigilante severo salvando quem podia do caos do mundo. As suas formas
são múltiplas. Não nos compete a nós acertar na sua forma verdadeira. Na mais
próxima da sua essência, pelo menos. Sabemos que esse caminho passa pela
providência, ou seria o inverso? A providência majestosa, com os seus brocados
de ouro ao sol, mandando parar a carruagem da vida no meio da estrada, com um
gesto elegante e um olhar assertivo ou o riso da rapariga inundando os humores
dos caminhantes com os seus tecidos de flores iguais ao vestido dela… a
providência requer sintonia e um fundo de alegria. Ou então, esse vigilante
austero que nos cala quando quer, e nos tolda os gestos, e nos leva à amnésia
de nós próprios enquanto nos encaminha pelos atalhos que só ele conhece e onde,
porque é severo e poderoso, pode moldar o tempo e o espaço e colocar-nos onde
quer, quando quer. Não há nada mais fácil de fazer desaparecer do que a
vontade. Basta a presença desse vigilante para sobrepor a sua vontade à nossa.
E deixa-nos sem respostas. Quando lhe perguntamos qualquer coisa, limita-se a
sorrir e a dizer que está à espera. Só mais tarde percebi que somos nós que
rescrevemos a providência. Vezes sem conta. Como a visão de um místico pode
ser, vezes sem conta, colocada em palavras num caleidoscópio de flores de
sabedoria que se revelam ao acaso da nossa própria inspiração. A providência
espera sempre a nossa inspiração ainda que seja ela que nos inspire. Entrei e
vi que, em jarras de flores de cristal, estavam a colocar flores brancas de
toda a espécie. E estavam a erguer assim uma cidade inteira com torres
floridas. Lembro-me que tinha dourados, ou seria a luz? Conversavam e iam
colocando flores como se dançassem. E no fim, tinham criado uma nova terra, um
novo perfume. Os cristais reflectiam a luz, as flores tinham-lhes dado as asas
que nunca pensaram ter. Uma terra nova, grande, criada por entre palavras de
fogo que se cruzavam no ar. Numa outra vez entrei e vi as orquídeas dispostas
como se fossem nuvens horizontais. Estavam elevadas por artes que penso serem
de magia porque não há outra explicação. E caminhei por entre essas orquídeas
nuvens dispostas orientalmente no ponto mais ocidental da Europa. A Providência
limitou-se a sorrir com a minha inspiração ao vê-las e disse-me: “Ainda há
pouco disseste que ninguém sabia qual era o caminho do céu e eis-te nas
nuvens”. Ali, até mesmo a Providência tinha palavras de fogo.
quarta-feira, 8 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS XI
ERA O ESPÍRITO QUE HABITAVA NELES
Apareceste com um sorriso e disseste que tinha de me
despachar. O mundo lá fora falava numa urgência qualquer. Fiquei em frente às
flores roxas e enviesadas que chegavam mesmo a ser assimétricas, dispostas,
algumas, em linha recta. O segredo estava em transformar as rectas em curvas. O
teste seria ver se tinha mesmo abandonado a cidade, o seu betão, os prédios
altos, frios, erguidos a direito numa arquitectura desumanizada. Acima de tudo
desnaturada, longe da natureza. As linhas de flores roxas, quase azuis, olhavam
para mim enquanto pensava como é que as transformaria em curvas perfeitas. Numa
esfera. Os dedos procuravam a posição certa para as flores, algumas
indomesticáveis, que se viravam de repente, recusando o caminho de aventura que
lhes propunha. As rectas nunca são uma aventura… são estradas desertas,
predispostas para a morte. E a esfera surgiu ao mesmo tempo que tu que, depois
de me corrigires, saíste da escuridão e disseste que não gostavas das trevas.
Nem de frio. Quando a flores se transformaram numa esfera perfeita, largaram o
roxo da paixão e passaram a ser apenas azuis. Que se ressuscite perfeitamente e
com o azul do céu. E a bola de flores foi para o mundo, renascida de si
própria. O espírito ali, não era nada do que tinha lido sobre o espírito. Nem a
sabedoria tinha sequer alguma parecença com o que tinha lido sobre ela. O
espírito, ali, era a certeza inequívoca e a absoluta falta de opacidade. No
Jardim dos símbolos, à medida que vamos por ele caminhando, em degraus
concêntricos, passando pelas pétalas até ao centro, a transparência torna-se a
única dimensão, todas as outras dimensões esmorecem face à revelação. Tendemos
a ser nós mesmos, uma revelação, num tempo sem tempo. A resposta a um lamento
veio: “Juraste vida eterna”. O choque de estar frente a frente com o espírito.
Os corpos que pensamos serem a realidade, quebram-se, fragmentam-se com as
palavras de fogo. Desaparecem no nada onde sempre estiveram. E a palavra fica a
arder, no ar, à nossa frente, como uma fogueira vertical e longa que nos impele
para cima. Os corpos são os veículos do espírito. Tinha quebrado um objecto de
vidro. Lamentei. E o teu corpo quebrou-se em fragmentos e falaste-me da vida
eterna. O teu corpo era o vidro que quebrei. A casca do ovo da pomba.
Quebrei-te e tu falaste do meu segredo em voz alta. Sorriste. Imensamente.
Sorriste. Como se um sino tivesse tocado no silêncio. Um sino antigo, de uma
aldeia antiga e longínqua na minha memória. Parada, envolvida no nevoeiro,
silenciosa, densa, e transparente no seu mistério eterno. Não há nada mais
transparente do que um mistério. Ele é, do princípio ao fim. Absorto em si.
Virado para dentro de si, e aberto ao nosso olhar, totalmente aberto ao nosso
próprio mistério. Não, o espírito não era como tinha lido nos livros. Era como
uma nota musical ecoando no silêncio do universo. Animando-o. Fazendo-o vibrar
na sua estupefacção perante o som.
terça-feira, 7 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS X
O TEATRO VERDADEIRO
Enquanto se desenrolava o segundo acto da vossa
maravilhosa representação, os fantasmas divertiam-se na soberba linha que
separa o visível do invisível. Se não fosse pressentir a outra linguagem que
falavam, ter-me-ia ficado pelas duas primeiras linguagens. Porque havia a
linguagem do mundo, corrente como um rio, uma outra, que falava por gestos e a
sublime que não necessitava de mais nada a não ser da presença. E uma quarta,
a mais secreta de todas, que nem de presença necessitava, tida à distância,
quando cada um de nós, em cantos opostos do mundo, plantava as sementes que
davam a mesma flor. Abriguei-me nas vossas línguas, nos vossos pensamentos, uma
abelha de regresso à colmeia. “Aqui, todos os dias são diferentes”, e
caminhávamos por eles como se estes fossem um caleidoscópio da nossa alma. No
Jardim dos Símbolos, as leis da física já foram todas desvendadas e entraram em
vigor há muito tempo. Era vigoroso o modo como adoptavas um cão, quando eu, do
outro lado, adoptava um outro. Demasiado vigoroso para não ser verdade. O nosso
coração era um só porque era o coração do próprio jardim. Olhávamos para os
corações uns dos outros, eles eram o nosso verdadeiro rosto. As flores,
nascidas das sementes, e não dos ovos ainda, olhavam para longe, enquanto
falavam, como se recebessem instruções de um deus qualquer que só elas viam.
Afinal, as cores das flores eram as mensagens dos deuses entretidos em mudar de
forma, desvelando o universo como uma ilusão saborosa, ao longo do tempo, até
que se percebesse o que queriam, de facto, dizer. Essa linguagem não se tinha
perdido neste pequeno canto do Ocidente. Parecia ter ficado latente, mas tinha
passado ao longo de gerações ligadas ao campo, à pesca, à pedra, ao barro.
Entrar nessa linguagem era entrar numa casa abandonada há muito tempo. Cacos
espalhados no chão, paredes descascadas, tectos com fendas, um poço no quintal
já sem balde ou corda, retratos espalhados, aqui e ali, de famílias que nunca
tínhamos visto antes, antigas, pedras perto de um muro inacabado, velharias
dispostas ao acaso, transbordando da casa para o jardim que se tinha deixado
desenhar pelo vento e pelas sementes que o vento trazia. E entramos, ainda
assim, com uma sensação de estranheza. Tudo nos aparece sem sentido nenhum,
peças atiradas pelo tempo, à sorte, dos elementos e do nosso olhar. Até que
começamos a falar. E, à medida que as palavras e os pensamentos brotam, tudo
fica em chamas porque as palavras são de fogo e ardem. E a roldana do poço
começa a girar. E o jardim desvenda-se pela palavra dita quase sem querer:
“Vocês estão à vista de toda a gente e ninguém os vê!”. E esse momento é quando
se está pronto para aceitar que o espaço abandonado começa a ganhar outras
formas. Os cacos reagrupam-se formando vasos. A cauda do pavão abre-se e ele
fala com as cores e os gritos imensamente loucos que vai dando pelo caminho das
pedras. As fendas dos tectos são afinal rugas, os objectos dispersos estão
dessa maneira porque marcam o tempo parado em que a criança riu e os deixou
assim. As flores amarelas, afinal, formam uma fileira ao longo do muro que não
está inacabado, mas que acaba num arbusto, com a mesma altura, indicando o tipo
de natureza que nos espera daí para afrente. E, daí para a frente tudo está
estranhamente arrumado, porque há uma razão para tudo, um sentido para a razão
de tudo, um percurso sinuoso em tudo. A ilusão é apenas a casca dos frutos
acima das nossas cabeças. Como os kiwis-ovos no tecto do caminho que, a
determinadas alturas do ano, caem maduros no chão se não os provarmos, caem
maduros nas nossas cabeças para nos acordar e nos lembrar de onde viemos. De um
ouro velho por fora, de um verde dourado por dentro, caem e abrem-se revelando
as sementes que provamos ser, em todos os tempos, ao longo da nossa própria
história. Não há razão para fugir das
palavras só porque elas queimam, porque são elas que devolvem ao espaço toda a
correspondência que este tem connosco. O jardim, assim, abre-se, como uma flor.
E nós estamos sempre no centro do jardim, mesmo que estejamos perto de onde ele
acaba e onde nos oferece uma visão para o vale selvagem onde andam as raposas,
as ginetas, e onde as aves de rapina voam e parecem esperar por nós. E esperam,
auspiciosas.
segunda-feira, 6 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS IX
PORQUE ERAMOS ANTIGOS
Porque éramos antigos, tão antigos como a história da
nossa terra de onde tínhamos vindo, falávamos através de gestos da História.
Não havia nada de estranho no facto de moldarmos o barro e, com ele, fazermos
as formas que nos transformavam em viajantes do tempo. Mesmo separados,
visitávamos os mesmos lugares, nas mesmas noites de sacrilégio, quando o tempo
se desfaz em pó e navegamos por entre as estrelas e mergulhamos nas ruínas do
que fomos, como povo, como gente, como gente pós-diluviana, limpando as
lágrimas, deixando a praia, subindo o monte, descendo para o vale, atravessando
os portões do jardim onde nos voltámos a encontrar, esse local impreciso onde a
chama do coração é uma rosa aberta, a pulsar. Mesmo distantes uns do outros,
esculpíamos os mesmos espaços, os mesmos ídolos, os mesmos castros que viviam
nos nossos dedos e na nossa noite e que dávamos à luz, devagar, sem saber
porquê, tu cilindros vindos do forno com homens, mulheres e crianças, eu, esse
espaço onde todos viveram, visto de cima, acompanhada pela águia que me dita os
passos sempre que vou ver as vinhas, retorcidas, nodosas, só para saber se já
doiram ao sol. E reproduzimos, passo a passo, os passos dados pelos nossos
ancestrais só para sabermos (porque tudo o que não construímos, não sabemos),
de onde viemos e o acordo que tínhamos feito com a vida e que era o de não a
deixar morrer. Nunca. Nem que, para isso, tivéssemos de chorar todos os lagos,
ou tivéssemos de reviver todos os dilúvios, embarcar em todas as tempestades,
esgotarmo-nos na praia, em frente ao forno, pela noite fora, pelo dia, em
cristais de suor, em lágrimas consentidas, em dores que esquecíamos pela
vontade, em terrores macabros de perdição. Nem a luz que iluminava todas as noites,
sombras, memórias e desejos, nos deixava apagar a vida ou de a resgatar da sua
prisão temporal. Um dia apareceste-me perturbado porque tinhas tido um sonho do
qual te lembravas. Tu nunca te lembravas dos sonhos, mas aquele tinha-te
acompanhado pelo dia, como uma presença, segura, ao teu lado. Tinhas sonhado
com uma casa com objectos que nunca tinhas visto acordado, mas que, no sonho,
conhecias desde sempre. Como eu te conhecia desde sempre. Tu que moldaste
ídolos de barro, homens mulheres e crianças, e esperaste pacientemente no
forno, e esperaste pacientemente dias para que secassem das águas do dilúvio,
não sabias ainda o quão antigo eras e por quanto tempo tinhas acompanhado esta
terra. Tu, que dizias a brincar que de nada te lembravas, disseste-me que fomos
concebidos no mesmo lugar… a gruta aberta ao mundo, a parte mais visível do
jardim onde tantas e tantas coisas estavam ao contrário pelo lado celeste da
verdade que o jardim contém. Gruta luminosa e aberta aos olhos de quem passava,
infinitos objectos tão próximos de ti como os do teu sonho e lustres em forma
de ovo, subindo e descendo em roldanas para onde me levaste só por saberes que
os veria como só tu os verias… pequeno palácio-gruta aberto aos olhos de quem
passava e que nem imaginavam, nem podiam imaginar o que ali se podia ver com os
olhos que viviam no mais profundo segredo do nosso ser. No jardim dos símbolos
encontra-se muito mais do que flores… muito mais do que o que se encontra num
jardim da cidade. Podemos encontrar uma cidade inteira dentro desse jardim,
cidades inteiras, com colinas e escadas, e deusas indianas dançando pela noite,
e globos suspensos em colunas grandes como mundos em suspenso, à espera de o
serem. O palácio que me deste a conhecer era aquele que tinha construído para mim
sem saber do teu, enquanto dispunha os objectos, um a um… globos suspensos em
colunas, estátuas de deusas indianas, flores incrustadas, copos, talheres,
velas, sombras, flores incrustadas subindo os degraus, vasos, potes, vidros,
flores incrustadas suspensas das colunas, louceiros, jarras, armários, flores
incrustadas em toalhas de mesa, os teus objectos sempre estiveram comigo. Só
quem vive lá ama os objectos. Só eles lhes veem o sentido para além das
memórias e dos sentimentos, só eles abrem uma caixa para sentir o perfume da
madeira, só eles lhes apanham a alma e os tocam como se fossem seres vivos.
Como tu, no teu sonho, enquanto os seguravas por entre os teus dedos. Nessa
gruta, o perfume solidifica-se em ângulos e curvas, em metais, madeiras, cerâmicas,
cristais… denso, transparente e leve. Não se ensina, não se fala desses
objectos, não se escrevem nem se declamam. Cantamos para esses objectos que
vivem dentro da cidade-gruta alçada dentro do jardim… cantamos, pela tarde
fora, aquilo que é mais um encontro, fazendo ecoar neles a nossa voz.
domingo, 5 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS VIII
AZUL ESCURO E CORES
Dia frio de granizo. O céu azul escuro. Roxo, por
vezes. O caminho estreito, de pedras. A descer para o vale onde os mortos
vivem, onde os sonhos se passam, onde as curvas se esbatem. Os sentidos
eclipsam-se, fica apenas a visão. O verde a crescer nas margens das pedras.
Abraça-nos. O céu escuro. Roxo. Acima de nós. E olhei. E vi. No fundo do
caminho, o arco íris. Um arco tão estreito que começava e acabava no estreito
caminho. As cores vibravam fazendo adivinhar o ouro do sol. No vale dos sonhos.
Vi. As cores impressionaram-me ali tão concentradas. Ainda trazia um ramo de
flores na mão. Com as mesmas cores. Dois arco íris. Pequenos. Um perto, nas
minhas mãos, o outro parecia não estar longe. Parei com o vestido branco a
esvoaçar. As rendas, bandeiras bravas ao vento. Nos dedos, as cores. Dois
arcos. Estendi o ramo e entrelacei-o no arco íris. Tão perto era. Tão perto
estava. Nunca contei o segredo do arco íris do vale. Nem aquilo que fiz. Uni o
céu e a terra por terem as mesmas cores. Rosas, jacintos, gerberas, alfazemas,
hortenses…. Enlaçadas ao arco íris. E prendi tudo à minha memória que anda
sempre comigo. Foi um segredo entre candelabros de prata e velas apagadas que
nada viram e nada souberam no seu silêncio escuro. Só a luz o soube, como só
ela sabe de tudo o que é luminoso. O estreito caminho que vai dar às estufas e
aos pássaros com vasos de um lado e do outro. Sabia sempre quantas pétalas
tinha cada flor. O malmequer, dezassete pétalas, vezes dois, trinta e quatro…
não chegava a contar, sabia. Lá dentro o cenário era semelhante ao daqueles
canários a quem dão pigmentos a comer para ficarem com as cores ainda mais
vivas, mas o nosso alimento ali, e aquele que alimentava todo o cenário, era a
nossa própria alma. A vida lá fora era uma bruma cinzenta que se dissipava à
medida que entrávamos pelos portões de ferro forjado. Os objectos ganhavam vida
e vontade e disseram-me em surdina que essa vida e essa vontade eram um favor
dos deuses. Mas os deuses eramos nós. A realidade alterava-se à nossa passagem
porque nós eramos a alma do mundo concentrada num ponto minúsculo do planeta,
num jardim secreto cheio de segredos, numa inspiração onde o ar era diferente,
os pássaros nos conheciam e os objectos apareciam e desapareciam conforme os
olhos da nossa alma os viam. Tudo aparecia apenas porque a nossa alma via.
Poder-se-ia pensar que era uma estranha capacidade de ver o futuro, de procurar
aquilo que sempre esteve lá, isto para quem vinha de fora e nos observava a
partir das brumas exteriores, mas, na verdade, o tempo lá dentro era
inexistente e o espaço era moldável como a lama, o barro, a cerâmica, a tinta,
o verniz, o fogo do forno, as palavras, os acontecimentos. Tudo vibrava e nada estava
fixo. A nossa alma era permanentemente salva, por vagas, entre soluços,
mergulhos nas águas negras do lago, renascimentos à medida que voltávamos a
pisar o caminho das pedras de novo, em percurso inverso, subindo o monte,
olhando para trás, para o vale, para o arco íris que reconciliava a terra e o
céu e deixava que nos enlaçássemos nessa união como a vara de Hermes, eixo
erguido na esperança do reajuste estático, aparentemente impossível, num jardim
onde tudo se movia acompanhando a mais ínfima mudança da nossa alma.
sábado, 4 de março de 2023
OS POETAS
A saudade como impressão perene na alma é a fonte de toda a inquietação. Mas algo nos assusta. Talvez seja a ausência de sussurros, tão próximos do silêncio. A urgência de se mostrar que se sabe, mesmo quando, ainda assim, se revela a ignorância. Tenho um aluno, bom aluno, com onze anos e que sabe tudo. Sabe todos os factos. Revela-os com uma voz viva... Surpreende-me o que sabe. Apanha tudo, fixa tudo e tem opinião sobre quase tudo. Fico muda a olhar para ele. Não tenho tanta memória como ele, nem grandes opiniões sobre muitas coisas, muitas mesmo, penso que cada vez menos algo me entusiasma assim para querer dar o contributo, sempre prescindível, sobre o que penso, porque não penso nada. Nem penso nada desse aluno, a não ser que me deixa muda, mais enrolada ainda no meu silêncio imenso que parece estar cheio de todas as coisas. É um frente a frente um pouco sui generis, ele fala e eu calo-me. Ele age como se fosse ele o professor e a única atitude que, como professora me dá para ter, é a de ficar calada, deixá-lo exprimir-se livremente e deixá-lo ficar contente com o que diz e por dizê-lo. É como um livro que se abre, uma lista imensa de factos onde todas as notas de rodapé são as opiniões dele. Quase parecem dois livros independentes, o dos factos e o das opiniões. Mas o meu coração continua cheio de saudade. Ainda não é este tipo de pessoas que me afastam desta sensação de ausência do passado e do futuro. Quedo no silêncio como se este fosse uma pedra no caminho que se tivesse tornado o próprio caminho. Daria a mão ao futuro desejado se este aparecesse, mesmo que não o imagine na totalidade. O futuro é uma sensação que trago envolto nas vestes da senhora saudade, bordadas com corações cheios, pendentes aqui e ali, como lágrimas reflectindo a distancia que vai de nós a nós, o futuro é tão grande e tão pleno que parece transbordar tudo o que se possa imaginar. Não é fixo, nem utópico como a cidade de Platão, não é preciso, nem se consegue descrever, porque tentar fazê-lo é transformá-lo numa ideologia qualquer. E ele não é nada disso. Sinto que não é nada disso. E a saudade dói. Olho para o aluno, neste silêncio que une a saudade ao futuro e as palavras dele só servem para que lhe dê uma boa nota, para que prossiga os estudos, para que tenha um bom emprego, para que seja um bom pai, se for caso disso, e para que continue pela vida fora a ser quem é. O meu silêncio ele não o ouve, nem o sonda. Encara-o como o pano de fundo das suas palavras. Mas o meu silêncio é tão cheio que não há espaço para o somatório de factos, de coisas, de ideias que são sempre feitas (ainda estou para conhecer uma ideia que não seja feita...) com o qual ele o tenta bombardear em vão. Aos onze anos já sabem tudo. São precoces. A única novidade para eles seria a saudade, o sentimento de ausência de algo, de perfeição indescritível e as lágrimas geradas por ela. Porque quem não chorou de saudade nunca a sentiu. E quando não se chora por ela e por causa dela, tem-se o coração inquieto para ela. A impassibilidade Oriental que se aguente. Aqui, apenas a Saudade é impassível, imperturbável, mesmo que se chorem rios de tentativas de apaziguamento ou que se formem montanhas de inquietação. Da mesma maneira que temos uma sociedade na qual o fosso entre ricos e pobres é cada vez maior, também, e não como consequência disso, mas sim como causa desse fosso, temos os que sabem tudo e os ignorantes. Estes dois tipos de pessoas já estão em acção há muito tempo e foram eles os causadores desta desgraça contemporânea. Os poetas, herdeiros dos profetas, como bem observou Dalila P. da Costa, foram expulsos a pontapé, apedrejados e deixados encurralados, a chorar, com o coração inquieto, num canto. Por mais que no parlamento se citem os poetas, ninguém quer saber deles e, muito menos, ser um deles... O poeta nem sabe tudo nem é ignorante, é dispensável na sociedade dos afectos e dos afectados. O poeta foi infectado com o vírus da saudade. O mais pavoroso vírus, capaz de acabar com este permanente gladiar entre sabichões e ignorantes. Ao poeta não interessa o que sabe. Só interessa a saudade. E quando morre um desses portugueses, cada vez mais raros, morre um pouco da saudade, porque embora não o diga abertamente, a saudade ama os seus poetas.
O JARDIM DOS SÍMBOLOS VII
AS PALAVRAS ESCRITAS
Levei-te a passagem de um livro que passava pelo mesmo jardim. Igual. Tantos anos nos separavam do autor e, no entanto, o jardim era igual. Aquele lago num crepúsculo denso, já sem sol, onde cisnes deslizavam, brilhando na noite e as águas, com laivos de lua, revelavam o mistério sereno do azulado clima. Houve um dia que foi igual ao da passagem daquele livro que falava da vida de Leonardo. Igual até ao âmago. Quando os autores amam as suas personagens tocam a essência do tempo delas e, se calha às personagens nunca terem estado no tempo, então, os autores, tocam a essência do não tempo e podem ir ter a esse lago sereno, azul, e nós, se nos calha o jardim, se no nosso desenrolar dos acasos nos deixarmos guiar pelo coração, se deixarmos que as palavras deslizem sobre nós, então elas são proféticas. E a passagem do livro que passava pelo jardim passa por nós. Levei-te parte do jardim escrito. Leste. Os teus olhos ficaram mais claros. E lançaste as palavras para longe por saberes que o jardim nunca ficaria encerrado num livro, num pedaço dele, num parágrafo, numa frase, num verso. O jardim pulsava para os atentos e era indescritível pelos escritores, pelos poetas que se ocupavam da alma sem nunca a conhecerem verdadeiramente por não lhes ser possível sentir a brisa do fim de tarde tocando as pétalas, ou os vendavais em dias mais sonoros a agitar os ramos, ou o cheiro a terra e a luz, ou o modo como todo o jardim nos acenava à nossa passagem e nunca às palavras mortas, sepultadas em livros escritas por profetas que não sabiam do que falavam. Poderíamos passear por ele com páginas de versos soltos. O jardim nunca os leria. Só leria a nossa alma enquanto passávamos e só ouviria as nossas palavras de fogo que brotavam do vulcão do nosso coração. O jardim vivia no instante e, no instante, não havia memória, nem tempo. As abelhas zumbiam as palavras que éramos naquele preciso momento em que passávamos, de fogo, de fel, de mel. Se coincidiam ou não com o que os profetas tinham dito, isso não existia sequer. O olhar do jardim não se desviava nem sequer um pouco de nós, mesmo que lhe trouxéssemos, numa salva de prata, os mais perfumados versos dos poetas. Nós tínhamos nascido nele e éramos dele, sem desvios, sem dúvidas, sem perguntas, sem respostas, sem outros que não nós, sem o mundo lá fora escrito por profetas que não sabiam o que escreviam mesmo quando nos escreviam a nós, nascidos no jardim dos símbolos, mesmo quando tocavam o não tempo de quem lá morava. As profecias não existiam. Nós éramos o que acontecia. Deuses de pedra, dotados de vida, nascidos das sementes, e mais tarde do ovo, estrelícias dotadas de asas, pássaros outrora flores. Pássaros a caminho do mar, ribeiros a caminho do rio, a caminho do mar. Lançaste as palavras escritas para longe, e vi-as soltas, vi as letras a separarem-se, vi-as a rodopiar e a caírem no solo como sementes. Éramos deuses de pedra viva e os nossos gestos, demiúrgicos, mesmo quando recusávamos. Mas espreitei-te um dia e cantavas um verso em francês: “Quando o poeta morreu…” e sorrias, se sorrias, se amavas os poetas, no dia em que o poeta morreu foi nascer para o jardim, dizia o teu sorriso. Estavam, enfim, libertos das palavras e eram do jardim um dia pressentido, em terras de Viriato, lá, ainda longe do mar.
sexta-feira, 3 de março de 2023
O JARDIM DOS SÍMBOLOS VI
O AMANHECER
Neste extremo ocidental da Europa, amanhece ao
crepúsculo no ponto mais improvável do dia e do espaço, quando a atmosfera fica
ligeiramente roxa ou azul, ou com aquela cor que é entre ambas, e o céu, lá ao
fundo no horizonte, chega a ficar de todas as cores, e o mar, em certos dias,
parado, leitoso, espelhando os tons. No alto da falésia o tempo parou. A
atmosfera morna. O céu não se move, pintado. O mar, parado, dourado. Ao
crepúsculo amanheceu. E que crepúsculo é ele? O das almas. Antigas. Encontradas
depois do encontro marcado. Olhando-se, luminosas. Anjos tão próximos. Amanhece
quando sabemos que não estamos sós. Quando amanhecemos todos ao crepúsculo; a
luz fosca, imprecisa, obriga-nos à concentração do olhar. Olhamo-nos e sabemos
que nos vimos, tal qual somos, no amanhecer do crepúsculo. Perto desse lago
onde nadam os cisnes àquela hora e que nos anunciam o sol nascente que brota
como um sussurro, devagar, dentro de nós. É tão ou mais verdade, esse
amanhecer, como essas tardes mágicas da infância, mar adentro, mar de algas,
morno, o céu ao longe incendiado, o verde caindo sobre nós. É mais verdadeiro
este crepúsculo novo. Que guarda ele? A vida. Respondem a sorrir. “Nós
guardamos a vida onde ninguém a espera, onde alguém já não a espera”.
Subitamente, os portões de ferro forjado antigo abrem-se, a coroa eleva-se, o
dragão abre as asas, entramos, passo a passo, na vida. O mundo lá fora está
morto. Só naquele segredo se encontra a
vida. O mundo lá fora é uma casca quebrada deixada para trás. O mundo lá fora
não sabe ou pouco sabe do extremo ocidental da Europa, das terras de Viriato:
no terreno de montes, por entre as pedras rudes e escorregadias, por entre os
cardos, no frio gélido do Inverno, na dureza das gentes, nas facas moldadas em
ferro, nas fogueiras pôr-do-sol, aqui e ali, por entre cabanas, perto das
ovelhas subindo a colina, das cabras saltando nas pedras, das barbas rijas dos
homens, dos músculos, das mãos calejadas, e delas, com pernas fortes a segurar
o mundo no braços, a rir e a temer, ninguém os sabe. Estão onde ninguém os vê.
Escondidos desde a Atlântida. Memórias turvadas pelas águas turvas do dilúvio.
Ali, onde ninguém os vê, guardam o jardim que há-de vir a ser. Homens e
mulheres, pressentem-no a nascer quando irrompem as flores na Primavera por
entre as pedras rudes e frias. Pressentem o desvio das nuvens para Norte.
Sentem o cheiro do mar trazido no vento. Sentem o jardim, ainda que não o vejam
e que a neve pouco derreta, escoando-se pelos ribeiros que dançam com as
serpentes, procurando o rio, procurando o mar. A Primavera é um pressentimento
por aquelas terras, nunca a chega a ser, o amanhecer é um pressentimento, por
aqueles penhascos e ainda não é o bordado das vestes delas, com cornucópias e
flores, ainda não, mas a Saudade já nasceu há muito. É a Saudade que sempre
esteve com eles, foi ela que com eles esteve, quando o céu caiu sobre a terra e
quando o mar se levantou e virou os barcos, foi sempre ela que os acompanhou a
nado, até à terra firme, e os beijou e os salvou quando os seus corpos,
exaustos, na beira mágoa dos tempos, oscilavam nas ligeiras ondas de espuma,
entre terra e mar, foi ela que pegou neles, foi ela que lhes cobriu as cabeças
com os seus seios, foi ela que gritou, foi ela que os lavou com as suas
lágrimas, foi ela que os beijou, foi ela que os gerou, foi ela que os puxou
pela praia, foi ela que os carregou pelos montes, foram eles que a levaram em
carros talhados a machado, foram eles que a choraram lá no alto e que a
guardaram, e que a veneraram, foram eles que a salvaram, foram eles que lhe
deram asas e que a fizeram subir ao céu, foram eles que lhe pediram o fogo dos
deuses, foi ela que lhes trouxe as palavras de fogo com que hoje cantam a
poesia no jardim dos símbolos perfeitos, pelo crepúsculo fora, vendo-se, tal
como são, ao amanhecer.