PARA ALÉM DOS MUROS
Temíamos sempre que, para além dos muros, nada do
jardim sobrevivesse. Que as flores murchassem mal passassem o portão, que as
fontes secassem, que o lago se tonasse num pântano, que as árvores perdessem
para sempre a sua folhagem e que nós, perdidos, estivéssemos condenados a
deambular pela cidade, como vasos partidos de onde nenhum rebento fosse capaz
de ascender. Os que viviam do lado de lá, tinham perdido o brilho, tinham-se
tornado baços, demasiado fáceis de ler, loucos sem eira nem beira, perdidos de
si e dos símbolos. O mundo, do outro
lado, nem sempre estava virado do avesso ou de pernas para o ar. Podia aparecer-nos
apenas tresloucado e sem sentido. Como becos sem saída sucessivos. Lia-se isso.
As pessoas tornavam-se, aos nossos olhos, impossíveis de curar. Os outros
estavam profundamente doentes e não sabiam. A cegueira interior é uma doença, a
surdez interior um sintoma dessa doença e equivalente aos gestos mecânicos, a uma
obra prima de um engenheiro que nunca tinha alcançado a arquitectura. As
palavras de fogo, dentro do jardim, brotavam logo que nos tornássemos demasiado
submissos ao céu, demasiado obedientes, demasiado cegos e surdos para nós
próprios. Se nos guiávamos por sinais, éramos ignorantes. Dentro dos muros, a
liberdade ou a falta dela era apreendida naturalmente, como quem respira ou
passa os dedos pelas searas a caminho de uma qualquer casa de madeira, com cheiros
antigos que nos levam para memórias de outras vidas. Não questionar indiciava
falta de liberdade. Não dialogar com Deus era um sintoma de demência que só lá
fora fazia sentido, do outro lado, onde o mar nos esperava. Aceitar um sinal
sem procurar o porquê desse sinal, dessa coincidência, era o mesmo que não
saber ler nem escrever. Era um analfabetismo da própria alma. Era assim que o
fanatismo nascia e se desenvolvia. Aceitar, submetermo-nos, não nos rebelarmos,
era a maior fraqueza em que podíamos cair, embora ali, os nascidos do ovo,
nunca caíssem por não lhes estar na natureza não serem pássaros, deuses, ou
pombas porque as pombas e as fénix eram diferentes dos pássaros, as primeiras
tinham-nos arrebatado nas suas asas desde que nos fizemos ao mar à procura de
terra onde os nossos dedos se pudessem fixar e pudéssemos crescer, e inaugurar
um jardim, e a fénix, essa, era a ave que nos esperava sempre depois das
palavras de fogo, com as suas cores ainda em chamas e as suas plumas leves como
nuvens atravessando o espaço e ignorando todos os muros no seu voo.
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