terça-feira, 21 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XVII

 


PARA ALÉM DOS MUROS

 

Temíamos sempre que, para além dos muros, nada do jardim sobrevivesse. Que as flores murchassem mal passassem o portão, que as fontes secassem, que o lago se tonasse num pântano, que as árvores perdessem para sempre a sua folhagem e que nós, perdidos, estivéssemos condenados a deambular pela cidade, como vasos partidos de onde nenhum rebento fosse capaz de ascender. Os que viviam do lado de lá, tinham perdido o brilho, tinham-se tornado baços, demasiado fáceis de ler, loucos sem eira nem beira, perdidos de si e dos símbolos.  O mundo, do outro lado, nem sempre estava virado do avesso ou de pernas para o ar. Podia aparecer-nos apenas tresloucado e sem sentido. Como becos sem saída sucessivos. Lia-se isso. As pessoas tornavam-se, aos nossos olhos, impossíveis de curar. Os outros estavam profundamente doentes e não sabiam. A cegueira interior é uma doença, a surdez interior um sintoma dessa doença e equivalente aos gestos mecânicos, a uma obra prima de um engenheiro que nunca tinha alcançado a arquitectura. As palavras de fogo, dentro do jardim, brotavam logo que nos tornássemos demasiado submissos ao céu, demasiado obedientes, demasiado cegos e surdos para nós próprios. Se nos guiávamos por sinais, éramos ignorantes. Dentro dos muros, a liberdade ou a falta dela era apreendida naturalmente, como quem respira ou passa os dedos pelas searas a caminho de uma qualquer casa de madeira, com cheiros antigos que nos levam para memórias de outras vidas. Não questionar indiciava falta de liberdade. Não dialogar com Deus era um sintoma de demência que só lá fora fazia sentido, do outro lado, onde o mar nos esperava. Aceitar um sinal sem procurar o porquê desse sinal, dessa coincidência, era o mesmo que não saber ler nem escrever. Era um analfabetismo da própria alma. Era assim que o fanatismo nascia e se desenvolvia. Aceitar, submetermo-nos, não nos rebelarmos, era a maior fraqueza em que podíamos cair, embora ali, os nascidos do ovo, nunca caíssem por não lhes estar na natureza não serem pássaros, deuses, ou pombas porque as pombas e as fénix eram diferentes dos pássaros, as primeiras tinham-nos arrebatado nas suas asas desde que nos fizemos ao mar à procura de terra onde os nossos dedos se pudessem fixar e pudéssemos crescer, e inaugurar um jardim, e a fénix, essa, era a ave que nos esperava sempre depois das palavras de fogo, com as suas cores ainda em chamas e as suas plumas leves como nuvens atravessando o espaço e ignorando todos os muros no seu voo.

 


Sem comentários:

Enviar um comentário