A ILUSÃO
Estiveram muitos anos envolvidos na terra, com os
dedos entrelaçados na negra textura, remexendo, procurando alimento, tacteando,
como toupeiras cegas de si, demasiado tempo para que não se confundissem com
sementes, ouvindo as palavras dos deuses, sabendo que nunca as entenderiam
completamente, mas procurando esse alimento com a mesma curiosidade com que
qualquer semente é dotada pelo sol. Uns junto ao mar, outros nas montanhas
áridas, puxando as pedras, construindo os novos muros, acendendo fogueiras nas
casas, o fumo, saindo ao centro por onde se vislumbravam as estrelas. Estiveste
lá, nesses dias em que o teu silêncio firme guardava como segredos intransmissíveis
os teus sonhos, as tuas viagens por outras eras e por outras terras.
Encontrar-te agora e reconhecer o teu silêncio no meu, o mesmo delineado das
formas com que dispões os teus objectos, o mesmo ritmo das curvas das folhas,
dos caules, das flores emolduradas de verde e de azul que recai sobre elas como
um mar de estrelas fixas e permanentes na tua arte efémera e que apenas aos
olhos deste mundo que morre devagar em todos os momentos em que não te
contempla e te esquece quando o faz. Ver-te, ver o que criam as tuas mãos é
reviver. “Aqui há vida”, a frase mais simples e verdadeira que só consegues
segredar a quem já sabe e desvendou o que ficou para lá dos portões de ferro
forjado com um dragão e uma coroa, a quem nasceu no jardim por sede de vida,
eterna, jorrando em cascata. A tua música é inaudível para quem não desceu o
caminho de pedras até ao lago e lá se afogou no seu fundo lodoso, para quem, no
limite, não emergiu dele num vôo de força e de vontade, e recusou o destino e
se sobrepôs aos ciclos e recriou em si e para si a espiral de um novo ser. Os
que nunca morreram em vida não te escutam, nem nos livros, nem nas tuas
palavras, nem nos teus gestos. Os poetas morreram sempre um dia para o serem e
recusaram os sinais dados por Ariane para que saíssem do labirinto: olharam as
estrelas no fundo dos caminhos cada vez mais negros, viram-nas como irmãs,
brilharam como elas e elevaram-se voando acima de qualquer caminho delineado
por qualquer deus, mais ou menos conhecido. Os ciclos são jovens eternos, as
espirais são renascimentos sucessivos, sem hora e data marcada, brotando,
acontecendo, abrindo-se, elevando sol a sol, segurando a saudade como facho,
abrindo com ela o caminho novo, as novas formas, a cidade de cristal e de
flores que constróis em segredo, tornando-a alta e leve, erguida ao céu de onde
sabe ter vindo. Os teus dedos já não se confundem com a textura negra da terra,
são feitos de luz, iluminando os rostos que tocam, sem palavras, são a vontade
acima do destino, os deuses constroem destinos como labirintos só pelo gosto
das formas, objectos estéticos, puro amor à forma, à curva ou à recta
surpreendente por entre as curvas… mas estão para além deles, e voam sempre em
direcção a um outro labirinto, marcando o espaço com os seus passos, moldando-o.
Ai de que algum deus negue a liberdade, ai daqueles que o fizerem porque não se
trata de um qualquer deus num dia de vendaval, mas sim de narcisos que nascem
nas suas margens e nas margens de si próprios. O mundo gira porque quer, os
nossos olhos giram com ele porque querem, enquanto as folhas secas rebolam pelo
caminho porque se entregam nos braços do vento. A maior ilusão é a de que não
há liberdade.
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