segunda-feira, 20 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XVI

 


COM SEMENTES NAS MÃOS

 

Depois das ondas e das chuvas, dos ventos, da água, doce, salgada, das gotas, dos granizos, das nuvens, dos vendavais, do negro céu abatido sobre a terra, da tormenta, do cansaço, do corvo que voltou, foi a pomba a primeira ave que convosco falou. E foi ela que vos acompanhou desde esse sono profundo na praia onde desembarcaram. E gatinharam depois de acordar, pela manhã, atordoados, olhando em volta. E agarraram primeiro na areia, depois, subiram a falésia e os vossos dedos tocaram na terra e nas sementes que sentiram o vosso toque e estremeceram. Abriram-se. Vocês têm mãos verdes. Tocam. Floresce. Cresce. São filhos do dilúvio e do sol que vos acordou nessa praia. Teceram as vossas vestes azul-crepúsculo nos vossos primeiros teares, na tarde que se seguiu a essa manhã. E com ela ocultaram a vossa luz. Conhecer-vos é despir-vos. Retirar-vos essas lágrimas que vos anoitecem, essas sombras das árvores, esses vales e lagos escuros e vê-los depois de passarmos o portão de ferro forjado. Fazer com que brotem do vosso aparente crepúsculo onde cisnes vagos deslizam vagamente em lagos negro-azulados ao luar. Chorar mais forte do que vocês para que se revelem. Gritar mais alto do que vocês para que vos possa escutar. Lamentar mais profundamente para que a vossa vida se desvende quando me cobrem com a vossa capa que retiram ao meu anoitecer. E ver assim a vossa leveza, a vossa juventude e a vossa transparência leve, tão leve e tão longe do primeiro olhar com que vos captámos. Deixar que o vosso corpo rodeie o nosso, só para que possamos sentir a presença da vossa vida. Os anos que passam pelas vossas mãos, as sementes que lançam das vossas mãos ao longo dos anos que passam pelas vossas mãos, não vos dão rugas nem vos socalcam… fazem com que brotem das vossas vestes azuis e fazem com que sejam as manhãs em que acordaram, ainda atordoados, nessa praia que vos desperta sempre… mesmo nas montanhas longínquas, entre as pedras, ainda longe do jardim que já se adivinha nas vossas verdes mãos, ainda que sejam ainda rudes e agrestes como essas pedras onde se escondem, nessas grutas-ventres onde se protegem do pesadelo do céu abatido sobre a terra, as vossas mãos guardam o segredo da vida e a memória do vosso sol interior nascendo perpetuamente e brotando como uma fonte. 


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