COM SEMENTES NAS MÃOS
Depois das ondas e das chuvas, dos ventos, da água,
doce, salgada, das gotas, dos granizos, das nuvens, dos vendavais, do negro céu
abatido sobre a terra, da tormenta, do cansaço, do corvo que voltou, foi a
pomba a primeira ave que convosco falou. E foi ela que vos acompanhou desde
esse sono profundo na praia onde desembarcaram. E gatinharam depois de acordar,
pela manhã, atordoados, olhando em volta. E agarraram primeiro na areia,
depois, subiram a falésia e os vossos dedos tocaram na terra e nas sementes que
sentiram o vosso toque e estremeceram. Abriram-se. Vocês têm mãos verdes.
Tocam. Floresce. Cresce. São filhos do dilúvio e do sol que vos acordou nessa
praia. Teceram as vossas vestes azul-crepúsculo nos vossos primeiros teares, na
tarde que se seguiu a essa manhã. E com ela ocultaram a vossa luz. Conhecer-vos
é despir-vos. Retirar-vos essas lágrimas que vos anoitecem, essas sombras das
árvores, esses vales e lagos escuros e vê-los depois de passarmos o portão de
ferro forjado. Fazer com que brotem do vosso aparente crepúsculo onde cisnes
vagos deslizam vagamente em lagos negro-azulados ao luar. Chorar mais forte do
que vocês para que se revelem. Gritar mais alto do que vocês para que vos possa
escutar. Lamentar mais profundamente para que a vossa vida se desvende quando
me cobrem com a vossa capa que retiram ao meu anoitecer. E ver assim a vossa
leveza, a vossa juventude e a vossa transparência leve, tão leve e tão longe do
primeiro olhar com que vos captámos. Deixar que o vosso corpo rodeie o nosso,
só para que possamos sentir a presença da vossa vida. Os anos que passam pelas
vossas mãos, as sementes que lançam das vossas mãos ao longo dos anos que
passam pelas vossas mãos, não vos dão rugas nem vos socalcam… fazem com que
brotem das vossas vestes azuis e fazem com que sejam as manhãs em que
acordaram, ainda atordoados, nessa praia que vos desperta sempre… mesmo nas
montanhas longínquas, entre as pedras, ainda longe do jardim que já se adivinha
nas vossas verdes mãos, ainda que sejam ainda rudes e agrestes como essas
pedras onde se escondem, nessas grutas-ventres onde se protegem do pesadelo do
céu abatido sobre a terra, as vossas mãos guardam o segredo da vida e a memória
do vosso sol interior nascendo perpetuamente e brotando como uma fonte.
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