AS NUVENS E O CRISTAL
Aparatoso, o portão de ferro forjado, tinha um pássaro
pousado e estava ladeado de vasos de flores da época. As Primaveras
sucediam-se, quatro por ano e, por isso, o ano não estava dividido em quatro
nem havia diferença de um ano para o outro. Não havia tempo, apenas espaço. Não
se conheciam todas as portas, mas suspeitávamos que o muro tivesse entradas,
portinholas, nesgas, arcos, frestas, janelas, ao longo de todo o seu percurso.
As pessoas entravam e apareciam em qualquer lugar do jardim sem sabermos muito
bem de onde tinham vindo, que abertura tinham atravessado. Animadas, felizes,
apontando e comentando. Vestidas de seda e jóias, com chapéus de palha, de
flores, de veludos, jardins que levavam ostensivamente no topo da cabeça.
Sorriam e traziam as novidades do mundo que ali depressa perdiam o brilho
quando uma flor se abria e ofuscava tudo. Entravam, mas só estavam lá. Não
faziam parte do jardim nem tinham entrado verdadeiramente. Porque só havia uma
entrada. A do portão forjado com uma coroa e um dragão. Ali, só entravam
verdadeiramente os reis com palavras de fogo. Tivessem já ou não ganho asas. Os
comentários caíam vazios no chão como folhas mortas. Não interessava o que
pensavam do jardim. A nós, que lá tínhamos nascido e lá vivíamos, só nos
interessava o que não pensavam, o que não diziam e, se esse lado calado dos outros
estava adormecido, era como se não existissem para nós. Eram como serpentes que
passavam e largavam a pele que nos distraíamos a queimar, mais tarde,
juntamente com alguns troncos velhos, esquecidos de si e atrapalhando os nossos
passos. O caminho para lá passava inevitavelmente pelo céu e ninguém sabe qual
é esse caminho. Permanece misterioso, tanto para quem nunca o trilhou como para
quem o trilhou. Imaginava sempre a providência vestida de mulher, passeando num
jardim com flores muito suas e muito próprias, ou então, uma rapariga com um
vestido fresco, às flores, sempre flores, deitada na relva, ao sol, a rir, ou
ainda um vigilante severo salvando quem podia do caos do mundo. As suas formas
são múltiplas. Não nos compete a nós acertar na sua forma verdadeira. Na mais
próxima da sua essência, pelo menos. Sabemos que esse caminho passa pela
providência, ou seria o inverso? A providência majestosa, com os seus brocados
de ouro ao sol, mandando parar a carruagem da vida no meio da estrada, com um
gesto elegante e um olhar assertivo ou o riso da rapariga inundando os humores
dos caminhantes com os seus tecidos de flores iguais ao vestido dela… a
providência requer sintonia e um fundo de alegria. Ou então, esse vigilante
austero que nos cala quando quer, e nos tolda os gestos, e nos leva à amnésia
de nós próprios enquanto nos encaminha pelos atalhos que só ele conhece e onde,
porque é severo e poderoso, pode moldar o tempo e o espaço e colocar-nos onde
quer, quando quer. Não há nada mais fácil de fazer desaparecer do que a
vontade. Basta a presença desse vigilante para sobrepor a sua vontade à nossa.
E deixa-nos sem respostas. Quando lhe perguntamos qualquer coisa, limita-se a
sorrir e a dizer que está à espera. Só mais tarde percebi que somos nós que
rescrevemos a providência. Vezes sem conta. Como a visão de um místico pode
ser, vezes sem conta, colocada em palavras num caleidoscópio de flores de
sabedoria que se revelam ao acaso da nossa própria inspiração. A providência
espera sempre a nossa inspiração ainda que seja ela que nos inspire. Entrei e
vi que, em jarras de flores de cristal, estavam a colocar flores brancas de
toda a espécie. E estavam a erguer assim uma cidade inteira com torres
floridas. Lembro-me que tinha dourados, ou seria a luz? Conversavam e iam
colocando flores como se dançassem. E no fim, tinham criado uma nova terra, um
novo perfume. Os cristais reflectiam a luz, as flores tinham-lhes dado as asas
que nunca pensaram ter. Uma terra nova, grande, criada por entre palavras de
fogo que se cruzavam no ar. Numa outra vez entrei e vi as orquídeas dispostas
como se fossem nuvens horizontais. Estavam elevadas por artes que penso serem
de magia porque não há outra explicação. E caminhei por entre essas orquídeas
nuvens dispostas orientalmente no ponto mais ocidental da Europa. A Providência
limitou-se a sorrir com a minha inspiração ao vê-las e disse-me: “Ainda há
pouco disseste que ninguém sabia qual era o caminho do céu e eis-te nas
nuvens”. Ali, até mesmo a Providência tinha palavras de fogo.
Sem comentários:
Enviar um comentário