sábado, 11 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XII

 


AS NUVENS E O CRISTAL

 

Aparatoso, o portão de ferro forjado, tinha um pássaro pousado e estava ladeado de vasos de flores da época. As Primaveras sucediam-se, quatro por ano e, por isso, o ano não estava dividido em quatro nem havia diferença de um ano para o outro. Não havia tempo, apenas espaço. Não se conheciam todas as portas, mas suspeitávamos que o muro tivesse entradas, portinholas, nesgas, arcos, frestas, janelas, ao longo de todo o seu percurso. As pessoas entravam e apareciam em qualquer lugar do jardim sem sabermos muito bem de onde tinham vindo, que abertura tinham atravessado. Animadas, felizes, apontando e comentando. Vestidas de seda e jóias, com chapéus de palha, de flores, de veludos, jardins que levavam ostensivamente no topo da cabeça. Sorriam e traziam as novidades do mundo que ali depressa perdiam o brilho quando uma flor se abria e ofuscava tudo. Entravam, mas só estavam lá. Não faziam parte do jardim nem tinham entrado verdadeiramente. Porque só havia uma entrada. A do portão forjado com uma coroa e um dragão. Ali, só entravam verdadeiramente os reis com palavras de fogo. Tivessem já ou não ganho asas. Os comentários caíam vazios no chão como folhas mortas. Não interessava o que pensavam do jardim. A nós, que lá tínhamos nascido e lá vivíamos, só nos interessava o que não pensavam, o que não diziam e, se esse lado calado dos outros estava adormecido, era como se não existissem para nós. Eram como serpentes que passavam e largavam a pele que nos distraíamos a queimar, mais tarde, juntamente com alguns troncos velhos, esquecidos de si e atrapalhando os nossos passos. O caminho para lá passava inevitavelmente pelo céu e ninguém sabe qual é esse caminho. Permanece misterioso, tanto para quem nunca o trilhou como para quem o trilhou. Imaginava sempre a providência vestida de mulher, passeando num jardim com flores muito suas e muito próprias, ou então, uma rapariga com um vestido fresco, às flores, sempre flores, deitada na relva, ao sol, a rir, ou ainda um vigilante severo salvando quem podia do caos do mundo. As suas formas são múltiplas. Não nos compete a nós acertar na sua forma verdadeira. Na mais próxima da sua essência, pelo menos. Sabemos que esse caminho passa pela providência, ou seria o inverso? A providência majestosa, com os seus brocados de ouro ao sol, mandando parar a carruagem da vida no meio da estrada, com um gesto elegante e um olhar assertivo ou o riso da rapariga inundando os humores dos caminhantes com os seus tecidos de flores iguais ao vestido dela… a providência requer sintonia e um fundo de alegria. Ou então, esse vigilante austero que nos cala quando quer, e nos tolda os gestos, e nos leva à amnésia de nós próprios enquanto nos encaminha pelos atalhos que só ele conhece e onde, porque é severo e poderoso, pode moldar o tempo e o espaço e colocar-nos onde quer, quando quer. Não há nada mais fácil de fazer desaparecer do que a vontade. Basta a presença desse vigilante para sobrepor a sua vontade à nossa. E deixa-nos sem respostas. Quando lhe perguntamos qualquer coisa, limita-se a sorrir e a dizer que está à espera. Só mais tarde percebi que somos nós que rescrevemos a providência. Vezes sem conta. Como a visão de um místico pode ser, vezes sem conta, colocada em palavras num caleidoscópio de flores de sabedoria que se revelam ao acaso da nossa própria inspiração. A providência espera sempre a nossa inspiração ainda que seja ela que nos inspire. Entrei e vi que, em jarras de flores de cristal, estavam a colocar flores brancas de toda a espécie. E estavam a erguer assim uma cidade inteira com torres floridas. Lembro-me que tinha dourados, ou seria a luz? Conversavam e iam colocando flores como se dançassem. E no fim, tinham criado uma nova terra, um novo perfume. Os cristais reflectiam a luz, as flores tinham-lhes dado as asas que nunca pensaram ter. Uma terra nova, grande, criada por entre palavras de fogo que se cruzavam no ar. Numa outra vez entrei e vi as orquídeas dispostas como se fossem nuvens horizontais. Estavam elevadas por artes que penso serem de magia porque não há outra explicação. E caminhei por entre essas orquídeas nuvens dispostas orientalmente no ponto mais ocidental da Europa. A Providência limitou-se a sorrir com a minha inspiração ao vê-las e disse-me: “Ainda há pouco disseste que ninguém sabia qual era o caminho do céu e eis-te nas nuvens”. Ali, até mesmo a Providência tinha palavras de fogo.

 


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