quarta-feira, 22 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XVIII

 



NAU

 

Quem chegasse ao jardim a partir do vale frondoso coberto de árvores de largos troncos, não via imediatamente um jardim. Envolvido em pedra e madeira, com os seus muros e cercas, erguiam-se mastros a meio dele onde se adivinhavam eixos, colunas vertebrais direitas, árvores esguias e altas, velas soltas na sua folhagem, um modo de ser que parecia ser, como as naus, de uma altivez orgulhosa enfrentando o mar. Essas árvores eram muito antigas e tinham sido plantadas como ofertas de pais para filhos, de mães para filhos e compunham a imagem de uma nave, embora as suas raízes não estivessem mergulhadas no fundo arenoso do mar, mas sim no fundo da terra, atravessando camadas de memórias, de gerações e de histórias, em torno das quais todo o jardim tinha nascido. Essas colunas em parte plantadas com um propósito, em parte naturais, para além de nos obrigarem a levantar os olhos para o céu, obrigavam-nos também, e por isso mesmo, a que elevássemos os olhos para os nossos próprios eixos inapreensíveis ou incompreensíveis por parte dos visitantes com os seus chapéus floridos, os seus sorrisos encantadores e os seus ouvidos surdos para as palavras de fogo.  A tendência, num jardim, é para olhar para o nível dos olhos e para o chão onde florescem as cores e as formas variadas, é sentir as metamorfoses constantes da vegetação, perdermo-nos numa folha seca de Verão que, empurrada pelo vento, percorre o caminho das pedras, mergulhar os dedos na água fresca da fonte, observar um ou outro pássaro que canta as cores que tem. Os eixos permanecem invisíveis, frequentemente ocultos pelas trepadeiras à procura de sol, mas é graças a eles que as sombras e a luz caem de determinada forma sobre o jardim e o moldam, gerando os espaços desta ou daquela espécie, conforme sejam mais diurnas ou nocturnas. E também os ventos e as águas, a forma como caminham, dependem desses eixos invisíveis com as raízes profundas mergulhadas em memórias que ninguém conhece. Uma nau sem mastros é um barco de pesca, recolhe os frutos do mar, divide um dia em dois, o tempo de ir e o tempo de voltar. Os mastros são a viagem, sem tempo, sem horas para partir nem horas para chegar, uma sede de conhecimento para além da fome vulgar, para além da vida vulgar. Parte-se sem se saber quando se volta, mas isso só é possível com os mastros. E os mastros são os deuses do jardim. Aqueles que não se deixam capturar como os peixes, os que não se alimentam nem servem de alimento. E os eixos, essas colunas vertebrais inamovíveis do jardim são as mais incompreendidas para quem fica no mundo a girar ou a lançar barcos de pesca. O jardim é uma nau. Os seus mastros ocultam-se nas nuvens, tocam o céu, são os pontos de honra do jardim.


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