NAU
Quem chegasse ao jardim a partir do vale frondoso
coberto de árvores de largos troncos, não via imediatamente um jardim.
Envolvido em pedra e madeira, com os seus muros e cercas, erguiam-se mastros a
meio dele onde se adivinhavam eixos, colunas vertebrais direitas, árvores
esguias e altas, velas soltas na sua folhagem, um modo de ser que parecia ser,
como as naus, de uma altivez orgulhosa enfrentando o mar. Essas árvores eram muito
antigas e tinham sido plantadas como ofertas de pais para filhos, de mães para
filhos e compunham a imagem de uma nave, embora as suas raízes não estivessem
mergulhadas no fundo arenoso do mar, mas sim no fundo da terra, atravessando
camadas de memórias, de gerações e de histórias, em torno das quais todo o
jardim tinha nascido. Essas colunas em parte plantadas com um propósito, em
parte naturais, para além de nos obrigarem a levantar os olhos para o céu,
obrigavam-nos também, e por isso mesmo, a que elevássemos os olhos para os
nossos próprios eixos inapreensíveis ou incompreensíveis por parte dos
visitantes com os seus chapéus floridos, os seus sorrisos encantadores e os
seus ouvidos surdos para as palavras de fogo.
A tendência, num jardim, é para olhar para o nível dos olhos e para o
chão onde florescem as cores e as formas variadas, é sentir as metamorfoses
constantes da vegetação, perdermo-nos numa folha seca de Verão que, empurrada
pelo vento, percorre o caminho das pedras, mergulhar os dedos na água fresca da
fonte, observar um ou outro pássaro que canta as cores que tem. Os eixos
permanecem invisíveis, frequentemente ocultos pelas trepadeiras à procura de
sol, mas é graças a eles que as sombras e a luz caem de determinada forma sobre
o jardim e o moldam, gerando os espaços desta ou daquela espécie, conforme
sejam mais diurnas ou nocturnas. E também os ventos e as águas, a forma como
caminham, dependem desses eixos invisíveis com as raízes profundas mergulhadas
em memórias que ninguém conhece. Uma nau sem mastros é um barco de pesca,
recolhe os frutos do mar, divide um dia em dois, o tempo de ir e o tempo de
voltar. Os mastros são a viagem, sem tempo, sem horas para partir nem horas
para chegar, uma sede de conhecimento para além da fome vulgar, para além da
vida vulgar. Parte-se sem se saber quando se volta, mas isso só é possível com
os mastros. E os mastros são os deuses do jardim. Aqueles que não se deixam
capturar como os peixes, os que não se alimentam nem servem de alimento. E os
eixos, essas colunas vertebrais inamovíveis do jardim são as mais
incompreendidas para quem fica no mundo a girar ou a lançar barcos de pesca. O
jardim é uma nau. Os seus mastros ocultam-se nas nuvens, tocam o céu, são os
pontos de honra do jardim.
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