quarta-feira, 15 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XV

 


A FONTE

 

Uma fonte nunca é uma só. A água concentrada dispersa-se em rios e, cada rio, tem uma tonalidade própria e um percurso só seu. É assim que podemos ouvir falar das águas cristalinas que eram rosadas, azuladas ou verde água, ou ainda transparentes e sem cor, e da forma como as águas se encontram a caminho dos pontos cardeais. É por isso que o próprio jardim é toda a fonte, até mesmo os seus terraços áridos onde crescem as Rendas de Prata. Os olhos são as nossas fontes de onde brotam as lágrimas e a luz. Passavas altivo, embrenhado nos teus pensamentos ou pelo menos parecia que estavas a pensar. Fim da tarde. Pediste-me para ir buscar salvas de prata, com ondas barrocas desenhadas e lembrei-me do minimalismo que te deixava com uma expressão vazia, igual ao próprio minimalismo e de te ter ouvido um dia dizer: “É barroco e ainda bem”. O minimalismo, quando entrava no jardim, saía de lá apupado, ridicularizado e ainda mais desalmado do que tinha entrado. Normalmente, respondíamos ao mundo exactamente aquilo que queria ouvir, de maneira a que o mundo se ouvisse a si próprio e se desse conta do estado em que se encontrava. A nossa relação com o mundo não ia além disto e, em dias piores, regressávamos ao jardim com passos apressados, com uma cara de poucos amigos e assim ficávamos enquanto não respirássemos de novo aquela sucessão de perfumes que nos mantinha, não vivos, porque isso sempre fomos, mas cristalinos como as fontes que o mundo lá fora não conseguia ver e sujava sempre sem querer ou por querer, algo que nos era quase indiferente. O mundo estava mais distante de nós do que um país estrangeiro. Um país tem sempre vizinhos, conterrâneos, famílias cruzadas, histórias partilhadas. O mundo connosco não tinha nada disso. Os loucos pertenciam ao mundo e os seus critérios e as suas escolhas não tinham qualquer valor no jardim. Eram apenas poluição. Um corte ontológico é como cortar o cordão umbilical. É para sempre e é radical. Pediste-me as salvas e fui buscá-las antes de me ir embora. Despedi-me. Entristeceste ligeiramente. Os grandes poetas não escrevem uma única palavra, embora haja poetas que escrevam grandes palavras. Os grandes poetas veem apenas. Com uns olhos imensos até mesmo quando estão absortos naquilo que parecem ser os seus pensamentos. Os grandes poetas não trocam palavras entre si. Trocam o que veem. Atingem o âmago sem qualquer abecedário. Largam as palavras de fogo e tornam-se em chamas. Ardem à nossa frente e tocam-nos com as suas línguas de fogo. Mas não se pense que se trata do fogo que arde no mundo. Esse é uma pantomima, uma doce preguiça que se deixa arrastar pelo vento do desamor. Não, os poetas quando são chamas erguem-se e são a alta montanha que um dia desejámos subir. Não se arrastam, ascendem, morrem como Moisés, com um beijo de Deus. Dilaceram-nos. Dilaceraste-me quando vi o que fizeste nas salvas de prata. Fizeste ouro. Ouro do mais fino, do mais leve, do mais elegante. Fizeste uma cascata grande e outra mais pequena. Duas. Magnificas. Iguais. Com flores pequenas amarelas que davam o brilho ao vermelho escuro que jorrava… na noite. Fizeste duas cascatas. Iguais. Gémeas. Uma maior, outra menor. Uma não vivendo sem a outra. O alto e o baixo em sintonia, o interior e o exterior, iguais. Via-as pela manhã. Mandei parar tudo só para as ver. Tinhas feito a minha alma. Estava ali. Corri para ti. Agradeci-te. Silenciaste e entendeste. Os grandes poetas não escrevem. Amam.

 


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