A FONTE
Uma fonte nunca é uma só. A água concentrada
dispersa-se em rios e, cada rio, tem uma tonalidade própria e um percurso só
seu. É assim que podemos ouvir falar das águas cristalinas que eram rosadas,
azuladas ou verde água, ou ainda transparentes e sem cor, e da forma como as
águas se encontram a caminho dos pontos cardeais. É por isso que o próprio
jardim é toda a fonte, até mesmo os seus terraços áridos onde crescem as Rendas
de Prata. Os olhos são as nossas fontes de onde brotam as lágrimas e a luz.
Passavas altivo, embrenhado nos teus pensamentos ou pelo menos parecia que
estavas a pensar. Fim da tarde. Pediste-me para ir buscar salvas de prata, com
ondas barrocas desenhadas e lembrei-me do minimalismo que te deixava com uma
expressão vazia, igual ao próprio minimalismo e de te ter ouvido um dia dizer:
“É barroco e ainda bem”. O minimalismo, quando entrava no jardim, saía de lá
apupado, ridicularizado e ainda mais desalmado do que tinha entrado.
Normalmente, respondíamos ao mundo exactamente aquilo que queria ouvir, de maneira
a que o mundo se ouvisse a si próprio e se desse conta do estado em que se
encontrava. A nossa relação com o mundo não ia além disto e, em dias piores,
regressávamos ao jardim com passos apressados, com uma cara de poucos amigos e
assim ficávamos enquanto não respirássemos de novo aquela sucessão de perfumes
que nos mantinha, não vivos, porque isso sempre fomos, mas cristalinos como as
fontes que o mundo lá fora não conseguia ver e sujava sempre sem querer ou por
querer, algo que nos era quase indiferente. O mundo estava mais distante de nós
do que um país estrangeiro. Um país tem sempre vizinhos, conterrâneos, famílias
cruzadas, histórias partilhadas. O mundo connosco não tinha nada disso. Os
loucos pertenciam ao mundo e os seus critérios e as suas escolhas não tinham
qualquer valor no jardim. Eram apenas poluição. Um corte ontológico é como
cortar o cordão umbilical. É para sempre e é radical. Pediste-me as salvas e
fui buscá-las antes de me ir embora. Despedi-me. Entristeceste ligeiramente. Os
grandes poetas não escrevem uma única palavra, embora haja poetas que escrevam
grandes palavras. Os grandes poetas veem apenas. Com uns olhos imensos até
mesmo quando estão absortos naquilo que parecem ser os seus pensamentos. Os
grandes poetas não trocam palavras entre si. Trocam o que veem. Atingem o âmago
sem qualquer abecedário. Largam as palavras de fogo e tornam-se em chamas.
Ardem à nossa frente e tocam-nos com as suas línguas de fogo. Mas não se pense
que se trata do fogo que arde no mundo. Esse é uma pantomima, uma doce preguiça
que se deixa arrastar pelo vento do desamor. Não, os poetas quando são chamas
erguem-se e são a alta montanha que um dia desejámos subir. Não se arrastam,
ascendem, morrem como Moisés, com um beijo de Deus. Dilaceram-nos. Dilaceraste-me
quando vi o que fizeste nas salvas de prata. Fizeste ouro. Ouro do mais fino,
do mais leve, do mais elegante. Fizeste uma cascata grande e outra mais
pequena. Duas. Magnificas. Iguais. Com flores pequenas amarelas que davam o
brilho ao vermelho escuro que jorrava… na noite. Fizeste duas cascatas. Iguais.
Gémeas. Uma maior, outra menor. Uma não vivendo sem a outra. O alto e o baixo
em sintonia, o interior e o exterior, iguais. Via-as pela manhã. Mandei parar
tudo só para as ver. Tinhas feito a minha alma. Estava ali. Corri para ti.
Agradeci-te. Silenciaste e entendeste. Os grandes poetas não escrevem. Amam.
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