LUGAR
Mesmo quando o jardim muda de forma e os canteiros mudam de lugar, no jardim tudo está sempre onde deve estar. Não se sabe bem onde começa a vontade de mudar, de trocar, mas não tem início no caos. Só fora do jardim existe o caos. Lá dentro, a desarrumação e a arrumação constantes, tanto feita pelos homens como feita pela natureza, equivale sempre às fases de um ciclo e, por isso, a folhagem seca rebolando ao vento pelos caminhos está no seu lugar, a semente que cai à terra, cai no exacto lugar onde deve cair, e os homens, mais velhos e mais novos que lá habitam, são o próprio ciclo que é sempre eterno e sempre jovem na sua transparência. O renascimento é sempre verdadeiro, a decadência apenas um pré-renascimento, uma Idade Média, madura, generosa, que se dedica ao húmus das ideias, às iluminuras douradas como as folhas de Outono ao sol, um Inverno denso onde arde o fogo interior nas casas e nos homens, um recolhimento saturnino, entre o chumbo e o ouro, as vestes crepusculares que cobrem a manhã, os homens rudes, caminhando pelas encostas dos montes, carregando a saudade, saídos das grutas, no mesmo lugar em que as flores despontam por entre as pedras, eles mesmos despontando por entre elas, erguendo-se das concavidades, caminhando numa Primavera súbita depois do medo, procurando os cursos de água fresca derramada pela montanha enquanto jacintos e narcisos nascem nas margens dos rios e dos homens. Foi nessa Primavera que repararam nas flores e nas abelhas, no pólen e no mel. O zumbido das abelhas pareceu-lhes passar por eles a falar e imitaram o seu som. A sua primeira palavra foi o zumbido da abelha e, desde aí, as palavras podiam saber a fel ou a mel, guardando consigo a luz dourada do fogo. Antes disso, dançavam em volta das fogueiras e lembravam-se apenas de uma língua muito antiga, perdida para sempre no tempo e no fundo do mar. Quando a palavra não tinha ainda a densidade necessária para que pudesse transmitir o fogo dos deuses, assemelhava-se a um vento soprado, ora embelezando a terra, ora desfigurando-a num ligeiro caos, superficial e pouco consequente por quem as dizia mas, quando aqueles que guardavam ainda a memória em forma de sonho da antiga língua, perdida no tempo e no mar, recomeçaram a falar, depressa ela ganhou a densidade do fogo. Os deuses tinham vindo dos ovos elípticos, com dois centros, um, antigo e longínquo, outro, recente, à beira-mar, ainda tremendo de frio, longe do fogo. Desde o princípio, o jardim foi habitado por pássaros e sementes e eram os pássaros que transportavam as sementes no bico e as deixavam cair e delas brotavam novas plantas, novas flores, novos frutos, novas sementes. Nunca a criação esteve longe da asa e a distância aparente do céu é só uma ilusão para quem não vê aquilo que os pássaros transportam nos bicos: pérolas, jóias, gemas, tesouros de um futuro. Quando as primeiras flores do jardim se abriram, já o fizeram em direcção ao céu de onde tinham vindo. Para que o céu as visse e se lembrasse delas também. As flores foram a primeira oração criada pelo vento, pelos pássaros e pelos homens e é por isso que o desamor do vento é compensado pelo amor dos pássaros e os homens oscilam entre o vento e o céu, entre a pressão da terra e a libertação pelo alto, entre a escravidão e a soberania dos deuses, entre o mundo e o centro de todos os mundos a partir de onde se dará a derradeira viagem. O lugar do jardim são vários neste extremo ocidental da Europa: de granito, de gelo, de praias, de montanhas, de planícies, de vales, de desertos, de searas a perder de vista, douradas, e de cantos prolongados que lamentam a dispersão quando se afastam do centro do mundo, ou de si.
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