domingo, 26 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXII

 


A DIGNIDADE E A BELEZA

 

Não te olho e não te esqueço, não te entrego nem te vendo: longe de mim, das minhas horas escorreitas, deslizando pacientemente pelo dia, persistes, sem que te olhe, por não ser necessário. Somos magníficos, herdeiros das estepes sem fim, onde os nossos braços se estendiam e desenhavam uma circunferência à nossa volta, para além das quatro direcções do espaço. Somos herdeiros da quinta essência e por isso não somos obrigados a ver-nos. Amplificamo-nos em possibilidades, giramos e paramos o tempo e qualquer manto nos serve em dias de frio, qualquer cor nos transporta para outro espaço, qualquer poema cantado nos isola do mundo demasiado imperfeito para nós. As palavras são simples como os cristais que formam a cidade luminosa ainda mais vivificada pelas flores e os nossos cavalos de pêlo brilhante são a rebeldia que tornamos dócil, o nosso espaço diverso, o nosso movimento perpétuo. É com essas flores que seguras e que parecem dispostas de maneira a levantarem voo a qualquer momento que permaneces e escreves com elas como se criasses um mundo novo, vivo, veloz, quente, grande como tu. Ensinas, sem ensinar, o gesto que se solta sempre que se dispõe uma flor um pouco mais acima, no lugar onde não se esperava que estivesse. Sabes que o movimento é a vida e que o silêncio é para os nascidos das sementes, ainda a tremer de medo, ainda soltando os primeiros sons, ainda longe das palavras de fogo. Não reparas nos gestos firmes, mas reparas nos gestos livres, na respiração que acompanha a do universo, escutas os cantos de lamento, mas cantas, pela tua noite iluminada, a alegria dos pássaros. Em dias de chuva, quando o mundo chora, vês gotas de luz trazendo a vida aos solos secos e esquecidos de si, nos gritos de revolta ouves o amor, em barcas livres sentes a prisão dos ventos e nas prisões das vidas intuis a liberdade dos seres pairando acima da dor, como anjos à espera de um raio de sol por onde possam deslizar. A arte, para ti, não tem conceitos, não tem limites, tem apenas a hora precisa em que é, e em que o teu coração se agita de alegria, ou em que o pássaro, que trazes dentro do coração, canta. A arte para ti é o momento em que dizes “sim”, sem mais ninguém, só tu e ela, frente a frente como duas águias reais, como dois deuses engendrados dentro do âmago da própria vida. E é essa a pureza que me deixas como memória num cartão velho e esquecido, numa aldeia quase abandonada pelo tempo, numa divisão escura, quando de costas, na penumbra, apontas para ele para que o veja: uma rosa de pé, única, alta esguia, como uma maresia súbita no alto da montanha, na vertente mais interior do continente, uma palavra de fogo feita com imagens, a rosa erguida no centro das pedras, pequenas, baixas, derrotadas, incapazes de a derrubarem. A coluna vertebral indomesticável, a primeira rosa a nascer no primeiro jardim, por entre as pedras cinzentas e frias, o primeiro passo no mundo da verdade que viveria, lado a lado, com as flores selvagens desse jardim. Como a pomba que sempre acompanhou os passos e as naus dos habitantes do extremo ocidente. Rosa sem cruz, vitoriosa num mundo frio. O primeiro e doce toque do fogo e do calor, a primeira ideia para a primeira palavra de fogo. A riqueza ininterrupta das pétalas concentradas, fechadas e abertas em simultâneo. A resistência. A resistência a todas as guerras feita de horas sangrentas e inúteis. A dignidade e a beleza presente para além de todas as presenças.

 


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