segunda-feira, 13 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XIV

 



 

O AR

 

“Aqui respira-se” e embora se falasse do ar renovado em perfumes sucedâneos, a respiração verdadeira era a de saber que se podia ser. Tinha antes passado pela casa pintada com palavras de fogo. Tinha fixado o olhar. Um estranho olhar. Há tantos anos. Palavras que só depois viveriam por dentro. E que foram espalhadas aos quatro ventos. Os dedos caminhavam por matérias-primas desconhecidas, surpresos. Enlaçados em liberdade. Descobrindo a liberdade. Moldando, colorindo, reparando, ampliando, capazes, incrivelmente capazes. Desenvolvidos numa sinfonia. Dizia que era do ar. Era o ar, renovado em perfumes, em flores, abrindo-se como os dedos, em cores, em formas. Girando, procurando. O olhar, procurando. Atento. Procurando sem limites. O corpo mais flexível. As pernas afastadas, fortes. O passo determinado. Reconheci-os a todos só porque andavam. A forma como andavam. Os passos fortes. Os nascidos das sementes olhavam para o coração. Os nascidos do ovo olhavam para as pernas e para os dedos. E reparavam se dançávamos ou não. O nível do coração era ainda o da alma, mas a forma como todo o corpo se movia indicava a labareda do espírito. Lembrei-me de Bizâncio, em tempos idos, onde na rua, alguém andando, porque animado pela labareda, se elevava num salto, dava uma cambalhota no ar, e prosseguia com o seu passo vivificado. Sempre desconfiei das mãos flácidas dos intelectuais, passivas, receptivas a todas as palavras lamacentas, fossem de água, fossem de terra, fossem etéreas como sonhos incaptáveis, mas nunca de fogo como são os nossos corpos, nascidos duas vezes. E os nossos dedos esticados e fortes, segurando a chama. A semente era a memória do paraíso, o ovo era o tempo dos deuses. Lembrei-me de Da Vinci, dos meninos nascidos dos ovos, pássaros de fogo. Mãos capazes de tudo. Da candura do lago sereno ao luar… o coração é crepuscular, o corpo é solar. Aberto em raios. Ninguém sabe onde encontrar o sol no crepúsculo desse lago sereno, iluminado pelo luar que já se levanta e por cisnes, faróis nessa noite da alma, amados e negados, renegados quando é tempo disso e se desperta finalmente. Ninguém sabe onde ele está enquanto não nasce. Confundem-no, por vezes com um homem crucificado e dorido. Mas não. Nunca na dor. Não se encontra aí. Não se encontra no lago feito de lágrimas onde deslizam cisnes indiferentes ao sol e à lua. É a raiz que toca o sol. Toca-o de passagem. Um toque, uma nota musical e o universo explode. Estremece. E inicia o seu movimento, sem diferença entre ele e nós. Quando passamos o portão de ferro forjado, um melro de bico amarelo olha-nos. Ele é o lago negro, e o sol emergindo das águas. Heliópolis prometida no seu bico. Uma outra cidade. Feita de trepadeiras ascendentes, de jardins suspensos, de árvores em leque, de fontes, de pedras d’ouro, de nascentes debruadas com pequenas flores brancas e transparentes. Outra terra, feita com os nossos dedos fortes, enquanto conversamos sobre quase nada, uma terra nova, com novos perfumes. O sol que doura, ou será apenas a luz que o faz?


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