O AR
“Aqui respira-se” e embora se falasse do ar renovado
em perfumes sucedâneos, a respiração verdadeira era a de saber que se podia
ser. Tinha antes passado pela casa pintada com palavras de fogo. Tinha fixado o
olhar. Um estranho olhar. Há tantos anos. Palavras que só depois viveriam por
dentro. E que foram espalhadas aos quatro ventos. Os dedos caminhavam por matérias-primas
desconhecidas, surpresos. Enlaçados em liberdade. Descobrindo a liberdade.
Moldando, colorindo, reparando, ampliando, capazes, incrivelmente capazes.
Desenvolvidos numa sinfonia. Dizia que era do ar. Era o ar, renovado em
perfumes, em flores, abrindo-se como os dedos, em cores, em formas. Girando,
procurando. O olhar, procurando. Atento. Procurando sem limites. O corpo mais
flexível. As pernas afastadas, fortes. O passo determinado. Reconheci-os a
todos só porque andavam. A forma como andavam. Os passos fortes. Os nascidos
das sementes olhavam para o coração. Os nascidos do ovo olhavam para as pernas
e para os dedos. E reparavam se dançávamos ou não. O nível do coração era ainda
o da alma, mas a forma como todo o corpo se movia indicava a labareda do
espírito. Lembrei-me de Bizâncio, em tempos idos, onde na rua, alguém andando,
porque animado pela labareda, se elevava num salto, dava uma cambalhota no ar,
e prosseguia com o seu passo vivificado. Sempre desconfiei das mãos flácidas
dos intelectuais, passivas, receptivas a todas as palavras lamacentas, fossem
de água, fossem de terra, fossem etéreas como sonhos incaptáveis, mas nunca de
fogo como são os nossos corpos, nascidos duas vezes. E os nossos dedos
esticados e fortes, segurando a chama. A semente era a memória do paraíso, o
ovo era o tempo dos deuses. Lembrei-me de Da Vinci, dos meninos nascidos dos
ovos, pássaros de fogo. Mãos capazes de tudo. Da candura do lago sereno ao
luar… o coração é crepuscular, o corpo é solar. Aberto em raios. Ninguém sabe
onde encontrar o sol no crepúsculo desse lago sereno, iluminado pelo luar que
já se levanta e por cisnes, faróis nessa noite da alma, amados e negados,
renegados quando é tempo disso e se desperta finalmente. Ninguém sabe onde ele
está enquanto não nasce. Confundem-no, por vezes com um homem crucificado e
dorido. Mas não. Nunca na dor. Não se encontra aí. Não se encontra no lago
feito de lágrimas onde deslizam cisnes indiferentes ao sol e à lua. É a raiz
que toca o sol. Toca-o de passagem. Um toque, uma nota musical e o universo
explode. Estremece. E inicia o seu movimento, sem diferença entre ele e nós.
Quando passamos o portão de ferro forjado, um melro de bico amarelo olha-nos.
Ele é o lago negro, e o sol emergindo das águas. Heliópolis prometida no seu
bico. Uma outra cidade. Feita de trepadeiras ascendentes, de jardins suspensos,
de árvores em leque, de fontes, de pedras d’ouro, de nascentes debruadas com
pequenas flores brancas e transparentes. Outra terra, feita com os nossos dedos
fortes, enquanto conversamos sobre quase nada, uma terra nova, com novos
perfumes. O sol que doura, ou será apenas a luz que o faz?
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