quarta-feira, 8 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XI

 



ERA O ESPÍRITO QUE HABITAVA NELES

 

Apareceste com um sorriso e disseste que tinha de me despachar. O mundo lá fora falava numa urgência qualquer. Fiquei em frente às flores roxas e enviesadas que chegavam mesmo a ser assimétricas, dispostas, algumas, em linha recta. O segredo estava em transformar as rectas em curvas. O teste seria ver se tinha mesmo abandonado a cidade, o seu betão, os prédios altos, frios, erguidos a direito numa arquitectura desumanizada. Acima de tudo desnaturada, longe da natureza. As linhas de flores roxas, quase azuis, olhavam para mim enquanto pensava como é que as transformaria em curvas perfeitas. Numa esfera. Os dedos procuravam a posição certa para as flores, algumas indomesticáveis, que se viravam de repente, recusando o caminho de aventura que lhes propunha. As rectas nunca são uma aventura… são estradas desertas, predispostas para a morte. E a esfera surgiu ao mesmo tempo que tu que, depois de me corrigires, saíste da escuridão e disseste que não gostavas das trevas. Nem de frio. Quando a flores se transformaram numa esfera perfeita, largaram o roxo da paixão e passaram a ser apenas azuis. Que se ressuscite perfeitamente e com o azul do céu. E a bola de flores foi para o mundo, renascida de si própria. O espírito ali, não era nada do que tinha lido sobre o espírito. Nem a sabedoria tinha sequer alguma parecença com o que tinha lido sobre ela. O espírito, ali, era a certeza inequívoca e a absoluta falta de opacidade. No Jardim dos símbolos, à medida que vamos por ele caminhando, em degraus concêntricos, passando pelas pétalas até ao centro, a transparência torna-se a única dimensão, todas as outras dimensões esmorecem face à revelação. Tendemos a ser nós mesmos, uma revelação, num tempo sem tempo. A resposta a um lamento veio: “Juraste vida eterna”. O choque de estar frente a frente com o espírito. Os corpos que pensamos serem a realidade, quebram-se, fragmentam-se com as palavras de fogo. Desaparecem no nada onde sempre estiveram. E a palavra fica a arder, no ar, à nossa frente, como uma fogueira vertical e longa que nos impele para cima. Os corpos são os veículos do espírito. Tinha quebrado um objecto de vidro. Lamentei. E o teu corpo quebrou-se em fragmentos e falaste-me da vida eterna. O teu corpo era o vidro que quebrei. A casca do ovo da pomba. Quebrei-te e tu falaste do meu segredo em voz alta. Sorriste. Imensamente. Sorriste. Como se um sino tivesse tocado no silêncio. Um sino antigo, de uma aldeia antiga e longínqua na minha memória. Parada, envolvida no nevoeiro, silenciosa, densa, e transparente no seu mistério eterno. Não há nada mais transparente do que um mistério. Ele é, do princípio ao fim. Absorto em si. Virado para dentro de si, e aberto ao nosso olhar, totalmente aberto ao nosso próprio mistério. Não, o espírito não era como tinha lido nos livros. Era como uma nota musical ecoando no silêncio do universo. Animando-o. Fazendo-o vibrar na sua estupefacção perante o som.

 


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