ERA O ESPÍRITO QUE HABITAVA NELES
Apareceste com um sorriso e disseste que tinha de me
despachar. O mundo lá fora falava numa urgência qualquer. Fiquei em frente às
flores roxas e enviesadas que chegavam mesmo a ser assimétricas, dispostas,
algumas, em linha recta. O segredo estava em transformar as rectas em curvas. O
teste seria ver se tinha mesmo abandonado a cidade, o seu betão, os prédios
altos, frios, erguidos a direito numa arquitectura desumanizada. Acima de tudo
desnaturada, longe da natureza. As linhas de flores roxas, quase azuis, olhavam
para mim enquanto pensava como é que as transformaria em curvas perfeitas. Numa
esfera. Os dedos procuravam a posição certa para as flores, algumas
indomesticáveis, que se viravam de repente, recusando o caminho de aventura que
lhes propunha. As rectas nunca são uma aventura… são estradas desertas,
predispostas para a morte. E a esfera surgiu ao mesmo tempo que tu que, depois
de me corrigires, saíste da escuridão e disseste que não gostavas das trevas.
Nem de frio. Quando a flores se transformaram numa esfera perfeita, largaram o
roxo da paixão e passaram a ser apenas azuis. Que se ressuscite perfeitamente e
com o azul do céu. E a bola de flores foi para o mundo, renascida de si
própria. O espírito ali, não era nada do que tinha lido sobre o espírito. Nem a
sabedoria tinha sequer alguma parecença com o que tinha lido sobre ela. O
espírito, ali, era a certeza inequívoca e a absoluta falta de opacidade. No
Jardim dos símbolos, à medida que vamos por ele caminhando, em degraus
concêntricos, passando pelas pétalas até ao centro, a transparência torna-se a
única dimensão, todas as outras dimensões esmorecem face à revelação. Tendemos
a ser nós mesmos, uma revelação, num tempo sem tempo. A resposta a um lamento
veio: “Juraste vida eterna”. O choque de estar frente a frente com o espírito.
Os corpos que pensamos serem a realidade, quebram-se, fragmentam-se com as
palavras de fogo. Desaparecem no nada onde sempre estiveram. E a palavra fica a
arder, no ar, à nossa frente, como uma fogueira vertical e longa que nos impele
para cima. Os corpos são os veículos do espírito. Tinha quebrado um objecto de
vidro. Lamentei. E o teu corpo quebrou-se em fragmentos e falaste-me da vida
eterna. O teu corpo era o vidro que quebrei. A casca do ovo da pomba.
Quebrei-te e tu falaste do meu segredo em voz alta. Sorriste. Imensamente.
Sorriste. Como se um sino tivesse tocado no silêncio. Um sino antigo, de uma
aldeia antiga e longínqua na minha memória. Parada, envolvida no nevoeiro,
silenciosa, densa, e transparente no seu mistério eterno. Não há nada mais
transparente do que um mistério. Ele é, do princípio ao fim. Absorto em si.
Virado para dentro de si, e aberto ao nosso olhar, totalmente aberto ao nosso
próprio mistério. Não, o espírito não era como tinha lido nos livros. Era como
uma nota musical ecoando no silêncio do universo. Animando-o. Fazendo-o vibrar
na sua estupefacção perante o som.
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