Provavelmente era quase inevitável o que nos aconteceu, aqui em Portugal, até porque, provavelmente, era inevitável, Portugal. Há, nalguma filosofia perene, uma certa marca nostálgica da contemplação, tendendo até a atribuir um valor maior a este domínio humano do que à acção. Assim fala a voz "perenista" de René Guénon. Já Evola, de sangue e memória latinos, uma espécie de “leopardo” com outras nostalgias, tende a não dissociar o lado “solar” de uma certa acção e daí que haja nele uma opção claramente política... (o que é a política senão acção?). Ambos viviam, porém, num mundo muito próprio: o primeiro, sobretudo racional, parece ter colocado de parte a experiência corporal (até por via da sua fragilidade física), o segundo minado, em grande parte, por um sonho imperial, talvez apressado, e que o conduziu, curiosamente, a uma cadeira de rodas. Os dois esqueceram-se de Portugal, embora haja quem diga que foi um esquecimento propositado, como se não conviesse falar do nosso caso, penso o contrário. Penso que desconheciam por completo o nosso país, a nossa História, os nossos poetas. A época em que viveram estava impregnada com a ideia de “civilização” e os países que giravam em torno desta ideia tendiam a olhar apenas para eles próprios e para os “outros” descivilizados sempre associados à ideia de colónia numa eterna aproximação e distanciamento, entre o fascínio e o resgate da própria cultura europeia, sobretudo, países como a Inglaterra, a Alemanha, a Itália, a França e, em parte, a Espanha. Portugal, nem era civilizado, nem era colónia. Portugal não existia. O fenómeno português é talvez a capacidade quase involuntária da sua descrição. A amnésia dos outros face a nós é espelhada por nós, criando-se assim uma auto-amnésia.
Na transição do século XIX para o século XX, em plena época mundial particularmente conturbada, nasce um poeta, aqui, neste extremo europeu onde, por caminhos tortos (serpentinos), pela situação geográfica (claustrofóbica – mas com saída pelo mar), pela situação económica (desequilibrada desde há séculos), pela situação de “atraso” tecnológico relativamente a outros países europeus e não só, enfim, por um conjunto de circunstâncias várias, desde há séculos, se havia passado de uma condição de “acção”, para uma condição de “contemplação” ou nostalgia. Não creio que o sebastianismo tenha sido o pior que aconteceu a este país, é ele, pelo contrário, que mantém viva a ideia de distância, tão presente já nas cantigas de amigo, e essa ideia de distância é a base de uma vivência contemplativa.
A particularidade deste poeta (embora já se observasse essa tendência em Camões) era o modo e a facilidade com a qual ele parecia encarnar uma língua. Não tendo necessariamente o culto das palavras “arcaicas” como é o caso, por exemplo, de Natália Correia, não se socorrendo da história da língua com vista à criação de um estilo, herdava o poeta, uma certa simplicidade da qual a língua inglesa é capaz (ao ponto de ser considerada uma língua pobre, pela estrutura gramatical quando comparada à francesa ou à portuguesa). Lembro-me de um livro em papel Bíblia existente em casa desde a mais tenra infância que guardava a obra completa de Fernando Pessoa (resgatada até aí), chamava-lhe, a Bíblia de Pessoa por ser em papel Bíblia e o índice começava, quando os poemas não tinham título, pela primeira palavra deles. As palavras eram tão simples que, alguns poemas, começando pela mesma palavra, se aglutinavam no índice, sendo só distinguíveis por algumas palavras restantes que constituíam uma frase.
Sempre me espantou o modo como Fernando Pessoa tratava a língua. Com muito pouco, e parecendo entendê-la até ao âmago, dava-me a nítida sensação, por vezes, que a própria língua parecia fazer sentido por si. Como se existisse uma espécie de essência que “agarrasse” todas as palavras de uma só vez, e que, uma vez manifestada, escrita, falada, dita e, sobretudo, fragmentada na existência, não deixassem as palavras de ter uma espécie de “memória” da essência de onde tinham brotado, acabando inevitavelmente, nos seus desdobramentos, segundos sentidos, sons, articulações possíveis, re-invenções possíveis, etc... por falar umas para as outras. As palavras em acção, podemos dizer assim, manifestadas em vida e não no silêncio, remetiam, pelo modo como o poeta as tratava, para um silêncio pré-existente, só possível de acontecer em contemplação. A própria língua parecia querer reunir os opostos. Muito se tem especulado de onde viria tal dom do poeta, para uns, os heterónimos seriam consequências directas de autênticas entidades sobrenaturais que encarnariam o poeta, dando como prova a alteração da letra consoante a personalidade encarnada, para outros, seria uma capacidade dada por Deus, para outros havia como que um super-desenvolvimento interior, talvez excessivo a tal ponto, que teria sido o poeta obrigado a fragmentar-se numa multidão de olhares sobre o mundo e sobre as coisas, para outros seria qualquer coisa de híbrido, entre entidades sobrenaturais e a própria liberdade do poeta, certamente haveria um compromisso capaz de um “equilíbrio” criativo. É, no entanto, a língua portuguesa que, no meio de tantas teorias, fica por entender e o modo como, de facto, este poeta conseguia facilmente conjugar de tal forma as palavras que elas nos remetiam inevitavelmente para um sentido, para um sentido racional (diria que quase lógico), sentido esse que, talvez por uma espécie de reacção levaria algumas pessoas a preferirem os poetas mais “românticos” como Teixeira de Pascoaes, menos incisivos e mais suficientemente vagos para que a interpretação fosse feita directamente pelo coração sem qualquer obrigação de atravessar o raciocínio demonstrativo, concreto, a que a poesia pessoana obrigava. É impossível ler Fernando Pessoa sem pensar... ficando o sonho aberto em opção (“sentir sinta quem lê...), ao contrário de Teixeira, cujo embate primeiro é exactamente o do sonho e embora continue a pensar que não se comparam artistas pois não são produtos de fábrica, é possível, no entanto, analisar a nossa própria reacção emocional e intelectual face aos artistas sem que isso constitua uma espécie de competição entre poetas (se tiver de existir competição entre sensibilidades essa encontra-se exclusivamente dentro de nós e não entre os criadores...).
Já aqui está implícita, nesta pequenina análise a complexidade da língua portuguesa no que toca à constante valsa dançada entre a contemplação e a acção. Ao inferir no leitor que este tem de inferir, o poeta, “puxa-o” para a dimensão filosófica, quase como se lhe desse a esperança de que o mito é passível de ser dedutível, a poesia igualmente e, em ultima estância, a língua também... por via do atractivo da lógica que se sobrepõe como camada externa, acessível a todos, pega assim o poeta na mão do leitor e o conduz à hermenêutica da própria vida. Nesse sentido, o modo como o faz é viril e solar e não romântico, vago, sensível, lunar, feminino... e porque é que o faz deste modo? Será por ser produto de uma época herdeira do mais do que racionalismo, o positivismo? Em parte, mas só em parte, pode estar aí a explicação, socorrendo-se dos elementos da modernidade demonstra o poeta o que de mais arcaico há na condição humana – é esta, aliás, a pedra angular do modernismo – mas, no caso de Pessoa parece ser mais do que isso, até porque a obra deste poeta é mais do que um produto da época, aparecendo, em certas ocasiões, como que “recortada” de um todo temporal uma vez que, por via da língua e do facto de esta ser tratada, não como coisa romântica, mas sim como coisa concreta, conduz, mesmo que implicitamente a um sentido, a uma procura de exactidão, e, em ultima análise, o que é um sentido senão um caminho? Haverá, porventura, algo mais certo do que um caminho, mesmo que este seja misterioso, mesmo que este seja serpentino ou não, mesmo que este seja criado passo a passo pela criação, um caminho é sempre um caminho, há qualquer coisa de inevitavelmente correcto, certo e concreto num caminho e mesmo que a sua memória se apague, como é o caso da passagem de um barco pelo oceano deixando um rasto que se dilui a pouco e pouco nas vagas e nos ventos, ainda assim, não deixou de haver caminho... é como se a própria língua e a forma como o poeta a escreve e fala dela fosse um caminho, mais até do que isso, o caminho. Caminhando pela língua caminha-se pelo sentido. Daí a preocupação pela desvirtuação da língua ou pelo horror aos erros gramaticais, estaríamos deste modo a condenar mortalmente a pátria edificada a partir da língua, havendo quase uma hierarquização, uma sobrevalorização da língua face à própria pátria: “A base da pátria é o idioma, porque o idioma é o pensamento em acção, e o homem é um animal pensante, e a acção é essência da vida. O idioma, por isso mesmo que é uma tradição verdadeiramente viva, a única verdadeiramente viva, concentra em si, indistinta e naturalmente, um conjunto de tradições, de maneiras de ser e de pensar, uma história e uma lembrança, um passado morto que só nele pode reviver“, acrescentando mais à frente: “... o conceito de Pátria é um conceito puramente místico...” (1). A curiosa inversão feita aqui pelo poeta deixa antever a frase inevitável: não é a pátria que “produz” a língua, é a língua que “produz” a pátria... e essa língua é, assim, mágica no verdadeiro e sentido arcaico do termo: a contemplação da pátria só é possível pela acção da língua que a gera... o acto demiúrgico está na iniciação ritual de que a própria língua é corpo e presença. Há algo de essencial no tratamento, ou antes, no modo de como o poeta parece conhecer a língua dando-lhe uma profundidade semântica dupla: por um lado humana – criando símbolos e referências próprias, por outro numa outra que parece estar para além da própria vontade do poeta, porque a língua existia já antes do poeta nascer, a desocultação dos sentidos vários que remetem para um caminho (por ela e nela) é um duplo trabalho de arqueologia e criatividade... de ciência exacta e de elevação dessa potência exacta aos limites do “novo” como antítese da própria História, gerando-a, totalmente nova e outra no tempo e no espaço, o equivalente a um caminho...
O estranho mistério reside no facto de esse caminho ser identificável por quem percorre o caminho da língua numa espécie de profecia residente na própria língua: quem por ele vai, mais tarde ou mais cedo reconhece quem por ele foi e, nesse instante, o tempo é abolido como o culminar do ritual que a própria língua é. A identidade é uma consequência que, à partida, tem a mesma causa e é nesse movimento perpétuo que a pátria vai sendo criada numa iniciação de movimento infinito (eterno), ao ponto de afirmar, ainda na mesma página, “Estamos, neste mundo, divididos por natureza em sociedades secretas diversas, em que somos iniciados à nascença...”. Só percorrendo o caminho da língua recolhemos o caminho da pátria. Não há sequer imperialismo nisto. Há iniciação, pura e simples. A ligação, a descoberta, a escrita, a oratória, a leitura, tudo enfim, que se refere à nossa língua constitui, de facto, a matéria prima, mais do que os nossos sonhos, a realidade imediata que nos cerca... o modo como se caminha pelo caminho da língua é igual ao modo como a percepcionamos, como rito ou não, do mito que somos ou não... negá-la é congestionarmo-nos no meio do caminho... a acção e a contemplação, em termos poéticos é uma dicotomia que não faz qualquer sentido no caso português... as duas faces estão intimamente ligadas, criando a terceira, hermética, evidentemente... porque, mais do que um conjunto de conceitos, a língua acaba por ser um caminho na verdade e para ela...
(Cynthia Guimarães Taveira)