Este lago sereno e plácido onde me encontro sempre esteve
comigo ou em verdade ou em sonho e espelha os rostos e os olhos de amor,
enquanto os restantes, fundos, num lodo indefinível, se diluem em gotas de pó.
sexta-feira, 30 de outubro de 2020
Rostos e olhos d'amor
A arte da inveja
Ei-la, a Inveja, nascida do casal insegurança e maus
instintos. Presente no mundo desde o princípio dos tempos, ei-la ainda jovem
menina e moça, condição de que não se livrará até ao fim dos seus dias, numa
qualquer pausa da eternidade. Ela vive, respira e é eternamente jovem.
Assemelha-se a um fumo, transparente e volátil que impregna cada canto, cada
esquina do olhar. É fácil dar-mos conta da sua presença, ela paira, aparece e
desaparece, é senhora do espaço e do tempo, a rainha da última palavra nos corações
de alguns portugueses. Ela está sempre acordada, esperta e implacável. No canto
dos olhos das mulheres que se olham de alto a baixo, e avaliam, e julgam e
matam nesse pequeno pestanejar. Nos homens que olham os outros, e os invejam
pela virilidade, pelo carro que não têm, pelo sucesso que não conseguem. Ela
age por lampejos, pequenos raios sem compaixão. Dita pequenos gestos de recusa,
dita os silêncios no lugar dos elogios possíveis. É muda e sinuosa e apressa-se
nas decisões que mudam vidas. Ela vive no coração, mas não é o coração,
instala-se no lugar dele e pulsa como ele, imita-o, na verdade, mas traz uma
outra verdade que dela nada tem por ser apenas uma réplica. No fundo dela o
medo e a maldade são os seus hemisférios sentimentais, na pele dela, a má
língua e as más acções, são os hemisférios materiais.
Ela destrói, corrói, incendeia. Produz opiniões sobre falsas
premissas e governa assim parte do mundo. Conduz sentimentos no devir da
história e no seu rasto mudo, inculpável, indetectável deixa cadáveres de
pessoas encerradas numa infinita tristeza. A mágoa que ela provoca não é igual
às outras. Não é um filho que se perde, não é um pai que morre, não é um
desgosto de amor. É a mágoa da injustiça, pura e dura, implacável sem intentos
divinos que a possam justificar. Absolutamente irracional, absolutamente
absurda no fim. Um non sense sem graça, uma desforra de coisa nenhuma. Mas
ei-la sempre viva, em cada esquina, em cada olhar, nos pormenores dos gestos,
dissimulada, imitando o amor.
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
Fecho portas e janelas e finjo-me ser uma casa abandonada. No jardim suspenso de uma qualquer memória, ouço hinos oscilando ao vento. Por entre as frestas dos ramos das árvores, o sol impõe-se. Nada é como foi, nesta terra. Foi tudo imaginado por alguém que quis, sem forças, suportar o mundo nos ombros. E agora, flutuamos livres no espaço. A forma da poesia altera-se e passa a ser um rio, em vez de uma pirâmide de palavras. Uma vez sabendo, perde-se a casca seca que se agarrava à arvore surgindo esta, agora jovem, com ramos lançados à vida. E balouço num salgueiro simples, cujo movimento perpétuo é o de se deitar nas águas da poesia. Em vez de nuvens, há sóis. E as manhãs são as pontes que pisamos ao atravessarmos o lago das ideias. Descomplica-se o mundo com uma tenaz e, dos nossos dedos, ergue-se o barro dos seres.
terça-feira, 27 de outubro de 2020
Clima Geral
Quando acordo de manhã e me lembro, quase de imediato, do
mundo adoentado como está, só me apetece voltar a dormir. As pessoas continuam
e continuarão a votar em Bolsonaros, em Trumps, em esquerdas apavoradas com a
Tradição, em blocos centrais que produzem e fazem a manutenção do próprio
sistema levando as pessoas a votar em direitas e esquerdas que se alimentam,
mutuamente, em seguida. Isto para uma monárquica, é impensável. Decido, todos
os dias, aproveitar o conforto. Arrumar a casa, ler, desenhar, ouvir música,
ver filmes e séries uns atrás dos outros e pensar o mínimo possível na minha
falta de contribuição para um mundo melhor. Se não o fizer, entro em depressão.
Ao meu lado, está sempre esta sombra de que não sirvo para nada. Nem a ninguém.
E, como eu, existem, de certeza, milhões de pessoas a sentirem-se entre o inútil e o
estupefacto perante tudo aquilo que este mundo oferece aos nossos olhos. Alguns pensam que mudam as coisas no Facebook, ou no Twiter, porque dizem a sua opinião.
Na verdade, a maioria dos que pensavam assim, já se deu conta de que as opiniões
se dissolvem na solução de um mundo que se auto-resolve, sem qualquer
intervenção do alto ou deles mesmos. Outros, entregam-se ao voluntariado. Tarefa nobre, não
direi que não, mas absolutamente inútil a longo prazo e extremamente útil a
curto prazo. De forma que, este desconforto, não se dissipa. Agravou-se até com
a pandemia. E como eu, há milhões de desconfortáveis por aí, por uma razão ou
por outra. Os restantes, consideram-se heróis de uma qualquer causa. Escrevo no
blogue para passar os dias e fazer meia com palavras que não agradam a ninguém.
E retiro-me do teclado do computador
para me concentrar numa qualquer outra tarefa. Invento tarefas. Tal como o
país, não tenho projecto nenhum. Não há dor que atravesse o corpo de Portugal que
por mim não passe. Ou antes ou depois, tanto faz, porque o tempo não existe.
domingo, 25 de outubro de 2020
Ruína
Não há um notável pensamento que sustente um mundo a arruinar-se.
As ruínas do passado são-nos nostálgicas. O pôr do sol em Roma é o resultado de
palavras doiradas que caem sobre as pedras tombadas. Mas há o momento em que o edifício
se torna ruína. O movimento e o momento de arruinar. Nesse instante, podemos
ter as mais belas ideias sobre o mundo. Os mais precisos sistemas filosóficos,
as manhãs mais gloriosas arquétipais, no entanto, a pedra desce e desvia-se do
eixo gravitacional. E nasce a ruína. São chamados fins-do-mundo que estão muito
mais na pedra do que em qualquer promontório porque estes são sempre uma
promessa de vida e de viagem, aquém ou além da vida. O momento da transformação
da pedra em ruína é a queda da própria ideia, o seu esvaziar, a sua insignificância
face ao contexto. É um momento apenas visual. Cinematográfico. Alguma luz
projectada num pano branco, sem profundidade ou sorte que não seja o tombo. A torre
que tomba. O caos da dispersão das pedras, a aterragem delas, já rodeadas pela
poeira que as irão fazer submergir em parte. Nesse momento, de morte de civilização,
as ideias, como as almas, vagueiam, passam para outro plano, tornam-se
fantasmáticas e ausentam-se até se evaporarem e passarem a ser apenas um
espectro na memória. E o mundo não é sustentado senão por um ligeiro sopro de
espírito. Uma brisa que traz e esconde a semente na poeira das ruínas. Uma chuva
miudinha que a fará germinar. Uma pequena grande ideia a ser, com a reviravolta
que irá dar em si, por si. Um raio de sol atento, preciso, que a irá iluminar. Quando
cai uma civilização, restam as sementes guardas em ânforas de barro. Sementes que
ainda nada são, na penumbra da poeira. Eis o retrato parado e esquecido do que
já é esta civilização. Ao contrário das ideias, as civilizações morrem mesmo. As
ideias, ausentam-se e estalam-se na memória. A queda da civilização é
indiferente aos homens, às ideias dos homens. Ela já tomou corpo sozinha, já se
fez grande, já foi do mundo, já decai, tomba e já se deixa adormecer na terra. E
as almas dos homens de uma civilização em movimento de ruína, andam tombado com
ela. Oscilam na rua como corpos em choque, o olhar triste e perdido de quem
sobrou de uma guerra. A rua sem princípio nem fim, limitada apenas pela poeira.
As mãos caídas sobre o corpo, como cadáveres de pé. A mente confusa e enublada,
perto, perto do vazio de si mesma ou alucinando tardes de Verão junto à fonte
das ideias, como um sonho ténue antes do último suspiro.
sábado, 24 de outubro de 2020
A Quinta da Regaleira e a celebração da Vida
Nenhum deles se auto-intitula de Mestre porque isso soaria
demasiado a autopromoção, mas não se importam de se apresentar como autênticos mestres de cerimónias de opiniões e de sínteses do que leram como exemplo da
sua superioridade. Na verdade, a preguiça de estudar é total. Antes ter quem
nos debite as coisas. Tenho uma amiga divorciada a quem o marido pedia para que
ela lhe contasse a história dos livros que ela tinha lido. Talvez fosse para
poder brilhar, um pouco mais tarde, numa festa ou num convívio, brilhar como
pessoa erudita ou talvez fosse a pura insistência em não ler, por ser coisa
vagarosa e implicar tempo e disponibilidade. O problema é que a minha amiga
poderia inventar uma história qualquer que ele a tomaria pela verdadeira. Os mestres
de cerimónias neste mundo esotérico estão bem visíveis nas interpretações da
Regaleira. Uns dizem uma coisa, outros dizem outra. Causam guerras. Guerras inúteis. Talvez o convite da própria
quinta de Carvalho Monteiro não seja bem esse. Talvez nunca tenha pensado em
mestres de cerimónias de opiniões. Talvez seja o de cada um sentir e ver com os
olhos que tem. E quem fala na quinta, fala em muitas outras coisas. Também eu
não me importaria de ser um Mestre de Cerimónias. Mas à moda antiga. Daqueles que
organizavam festas e faziam delas uma obra de arte. Uma arte efémera
inesquecível. E tomasse um cenário natural ou um palácio como base para a
criação. É por isso que não encontramos criatividade nenhuma a não ser, provavelmente,
nas interpretações dos mestres de cerimónias que ficam aquém de um verdadeiro Mestre de Cerimónias que se limita a conduzir as pessoas no voo da sua arte, da
sua imaginação sem querer, com isso, proclamar a verdade do mundo e acabando, no
entanto, por via da criatividade, por tocar nos pontos essenciais deste Mistério
de estarmos vivos. Talvez, Monteiro e Manini fossem Mestres de Cerimónias à
moda antiga e fizessem as pessoas voar nas suas asas com as asas que cada um tem.
Depois, vieram os herdeiros desses
mestres, desfasados. A queda da Arte na mera explicação mecânica dos símbolos. Com
tendência, naturalmente, para a imposição. São francamente mestres de cerimónias menores. São um produto deste tempo. Desta ausência
de arte. Destes rebanhos de gente sem vontade e sem alegria que nos cercam. São
produto do homem que se divorciou dos livros e da criatividade. Porque livros e
criatividade deveriam andar juntos, ser inseparáveis e, por isso, a nossa
relação com eles, deveria ser íntima e pessoal. Um dia emprestei um livro a um
amigo. Apareceu-me no outro dia, com um ar ligeiramente zangado. Disse-me: “Li
o livro de uma vez. Fartei-me de chorar”. Até hoje não sei que memórias ou em
que ponto da sensibilidade do meu amigo o livro tinha tocado. Não lhe perguntei
por que tinha chorando tanto. Fazia parte da sua intimidade. No entanto, sei,
que a relação dele com o livro foi única. E fiquei feliz com isso. Mesmo que tenham
sido lágrimas, foram lágrimas de ouro. Cansei-me de mestres de cerimónias de opiniões
e sínteses. Os únicos válidos são os que erguem palácios e jardins, da raiz ao
céu, partindo do céu para a raiz. Isso, sim, é uma verdadeira festa. Com esses vôos. Com os outros caímos num pantanal de guerras surdas. E a nossa alma cala-se. As festas não se fazem com desalmados.
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
Interlúdio Interior
E lá foi a carquejar pela estrada fora, a galinha. Primeiro olhou-me
com os olhos muito espantados pois nunca tinha visto nem uma pomba nem um
pavão, sendo eu ambos, mudando conforme a luz do sol esteja a iluminar o meu
corpo, depois pôs-se a dizer coisas porque pensava que sabia coisas. Mais do
que isso. A galinha disse coisas e pensava saber coisas suficientes para
brincar. Ora, nem uma coisa nem outra. Nem sabia coisas, quanto mais brincar
com as coisas e, ainda muito menos, conseguir o meu estatuto de pomba e pavão
na mesma pessoa. De maneira que, já em grande fúria, disse-me que não deveria
passar por ali. Que aquele caminho era o percurso dela. E só dela. A galinha
estava com a mania que era a dona do percurso que ia da montanha ao vale, ou da
montanha ao monte, como disse o poeta. O problema é que ela não conhecia os
desvios. Os atalhos disfarçados de desvios, direi antes. E, um deles, desses
desvios ou atalhos, se assim poderemos dizer, estava nesta estranha capacidade
de se conseguir ser pomba e pavão em simultâneo, sem ser nenhum dos dois, no
íntimo. No íntimo apenas uma ave abstracta parecia esvoaçar por onde queria. A galinha
tentava captar todos os meus gestos. Como se tivesse a ver alguma coisa com
isso. E tinha dias. De vez em quando, passava por mim furiosa. Parecia uma
galinha tonta, nessas alturas. Noutras, até dançava no meio da rua. Só para eu
ver que sabia dançar. Pois é. Mas não sabe. Parece na mesma uma galinha tonta. Outras
vezes lançava sobre mim os pintos que considerava macacos amestrados. Lá vinham
eles a fazer macaquices e a imitar a galinha. Mas não lhes servia de nada. O pavão
ou a pomba, conforme a luz do sol, continuava o seu caminho independentemente das pantomimas e da galinha tonta que persistia em afirmar ser dona do
percurso. Não há nada como uma fábula para mostrar o caminho, os desvios e
atalhos, e toda a fauna louca que por lá passa e que pensa que sabe coisas sobre
aquela que, passando não passa e não passando, passa pois, sendo pavão, passa
como pavão, mas não como pomba e, sendo pomba, passa como pomba, mas não como
pavão e é dessa forma que a galinha tonta não percebe que ali não passa nem
pomba nem pavão em simultâneo e que, como o ser é pleno e não fica a metade do
que é, tenta, em vão, perceber quem lá passa, carquejando que aquele caminho é
só dela, num acto tresloucado. É caso para dizer que a galinha vê coisas. Mas nunca
vê na totalidade. Porque não voa. Dá uns pulinhos aqui e ali. Foge e dança
tonta para os galos, mas pouco mais do que isso. Na verdade, o caminho sempre
foi meu porque me foi concedido. Dei com ele naturalmente. Como quem se perde e
se acha. Foi assim que descobri tantos caminhos, tantos quantos os raios de sol
que sou. Nunca reivindiquei nenhum raio de sol. Foram nascendo, como penas,
leves e capazes de atravessarem as tormentas. E a galinha, engana-se, quando
pensa que só conheço aquele caminho do qual se julga dona. Eu sou o sol que me
ilumina e lhe concede a visão do pavão e da pomba. Eu sou o sol nascente no
Horizonte. Que nasce Oblíquo. Que ascende na Vertical. Assim, sou todas as
distâncias e caminhos que a galinha não conhece, pois só conhece a recta da sua
rua. A linha do adormecimento. Onde dorme e sonha com pombas e pavões. Onde oscila
as asas e julga dançar. Onde Deus pôs um ovo para que fosse galinha e nada mais
do que galinha, como condição da sua vida obscura, num galinheiro escurecido
pelo tempo, apenas acessível aos homens com fome de corpo e não de Espírito.
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
A colina
Estou a ver um filme sobre terroristas. Escolhi ver esse filme. Não é bom ver filmes sobre terroristas. O terrorismo não é bom. Por que vemos filmes que não são bons, nem nos fazem sentir bem? Porque são importantes. Porque é importante saber. Os filmes têm um terreno próprio que não é o da pintura. Excepto Akira Kurosawa que é outra louça. Na Pintura só quero luz. Na Arquitectura também. Na Música já aceito a tristeza. Na dança aceito as emoções variadas. Nos filmes aceito tudo. O olhar que deitamos sobre as coisas é à portuguesa, isto quando conseguimos ser verdadeiramente portugueses e alcançamos a colina. No íntimo, no Portugal profundo que poucos conhecem, os portugueses são, em cima da colina. Poucos. O estatuto de louco é superior. O seu olhar também. Paira. Entende e paira. Eckart disse: "O olho pelo qual vejo Deus é o mesmo pelo qual Deus me vê". Falou em Deus, não falou dos homens. A sobranceria de pensar segundo os termos de uma psicologia barata quando afirma que vemos nos outros os nossos próprios fantasmas nega a loucura de ver os fantasmas que são exclusivamente dos outros. Um olhar de um louco português que alcançou a colina é precioso. Não necessita de romances sucessivos de telefilmes. O que vê é único. Um louco é desassossegado porque não está bem no mundo. Nem é do mundo. É da colina. E é a colina. Um louco não quer coros lamechas de emoções enternecidas nascidas da raiva. Quer emoções que sejam iguais ao nascimento delas. Um louco não finge que não ouve. Um louco não cai porque é a colina e a gruta que a acompanha. O seu olhar é límpido e fresco e não se envolve no que vê. É o que vê, no momento em que vê e não no recalcamento do passado do que é. O mundo não é uma pastelaria onde se escolhem os melhores bolos. O mundo é a pastelaria e a cozinha da pastelaria. Essa é a diferença entre o cliente e o pasteleiro. A diferença entre os desalmados deste mundo louco e os que têm a alma do mundo. Um louco não está na escola primária. Não está na Universidade. Está consigo no alto da colina, além do ensino. O olhar que deita às coisas constitui a sua sabedoria. A sabedoria não é um bem estar. É a liberdade. Está acima do bem estar. As crianças precisam de professores. Os raros exemplares adultos deste mundo necessitam de loucos. Os loucos nunca estão onde os que não são loucos pensam que eles estão porque os que não são loucos pensam sempre que os loucos estão mais abaixo e isto porque não alcançaram a colina. Nem a vêem sequer.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Índia
Ainda me converto ao hinduísmo e me vou embora daqui. Ainda me
converto ao hinduísmo e vou-me embora daqui. Farto-me de repetir esta frase
como uma espécie de ameaça contra um inimigo invisível. Onde vivo, dantes, há
muito tempo, esta zona, chamava-se Quinta do Anjo. Uma quinta onde vivia um
anjo. Provavelmente fartou-se e foi para a Índia. Depois, veio o Inverno.
Janeiro. E assim ficou, um Inverno permanente. Como é que sei? Sei lá como é
que sei. Nem quero saber como é que sei. Não utilizei meios ilícitos para saber
isto. Foi a memória que irrompeu porque quis. A memória e os sonhos são
parecidos nas suas aparições. O que sei é que as demandas solitárias, por
vezes, me parecem intragáveis. Fatigantes. Exasperantes. Retiro-me a olhar para
as coisas estupefacta. Nem cheguei a estar no mundo, por ele andei sempre
estupefacta. Um dia um médico perguntou-me porque tinha os olhos tão abertos. Respondi-lhe
que andava espantada com o mundo. Ele, que era Conde, um médico Conde, riu-se
com gosto e disse que me compreendia perfeitamente. O Conde e eu, num
consultório a rirmo-nos com gosto do nosso próprio olhar e da nossa falta de
jeito para compreender o absurdo. Já partiu, esse médico. Era um velho Conde na
altura. Olhou para as minhas análises e não viu nada. “Não tem nada”. O velho
tique dos médicos, à procura das doenças. Não tinha nada a não ser “falta de
adaptação ao absurdo”, podia ter acrescentado, uma vez que ele também sofria do
mesmo. E assim foi o diagnóstico que se mantém até hoje. O Inverno mantém-se e o
anjo da quinta foi para a India, o esperto. Deixou-me aqui a chamar por ele. Ou
a fazer as vezes dele. Que lata! Se eu fosse um anjo, não estava aqui estava na
Índia a subir degraus da escada de Jacob. Agora aqui? O que se passa aqui a não
ser as estações do ano? Umas atrás doutras, sem muito para contar. Sem muito
para dizer. Em terras de anjo, num só dia, chega a haver quatro estações que
disfarçam o Inverno que os ciclos são, sem possibilidade de espiralar. É preciso muita paciência para não perdermos a
paciência. É certo que há o mar, mas o mar não é todo ele uma promessa de Índia?
O mar é uma provocação constante, com as ondas a dançarem o fandango à beira-mar.
E os pássaros que me vêm bater no vidro da janela a dizer coisas. “Entrem,
entrem. Sentem-se. Vamos tomar chá”, bem lhes vou dizendo. Mas eles debandam,
desinteressados. São como as ondas do mar, pousam na janela a provocar, com o
seu voo simpático. Que querem, afinal? Já os ouvi dizer que querem a minha
opinião sobre a política nacional. A política nacional? Querem que desça ao
nível do chinelo, ao nível da política Nacional. O meu médico é Conde. Conde! Estão
a ouvir? Os democratas nunca suportaram aristocratas. E ainda menos os anjos. Opõem-se
às hierarquias e depois vem-me pedir contas, satisfações, opiniões. Mas eles
têm tudo isso às mãos cheias. Não há um democrata leigo. Nunca encontrei
nenhum. São todos conhecedores de tudo e têm a Panaceia Universal nas mãos que
vão vender aos mercados internacionais. Um dia destes vou para a Índia e de lá
não saio. Garanto!
terça-feira, 20 de outubro de 2020
Nevoeiro
O tempo está parado e quadrado. Parece que não se mexe. Nevoeiro
denso que envolve e aniquila o horizonte. Penso no que vi e vivi e para quem
servirá a não ser a Deus como testemunha. Deus consola-nos por ser testemunha. Ouve
alturas em que o olhar estava alterado, mas outras em que estava límpido como
cristal. De que somos feitos? De que memórias, mais do que de histórias? Porque
as histórias escritas encerram um final, as vividas nunca estão acabadas. Pulsam
como no primeiro dia em que vieram à luz. Parece que queremos escutar sempre
qualquer coisa no intervalo em que alguém nos escuta e vice-versa. As proporções
variam como uma mistura de tintas ainda não totalmente acabada, com veios de
cores claras que se envolvem com as mais escuras. A minha filosofia é demasiado
prática e a minha prática demasiado filosófica e nunca encontro bem a verdade. Ela
aparece-me sempre pouco precisa num lusco fusco. Daí que nunca consiga afirmar
coisas como a última e derradeira verdade. Quando o faço, a isso chama-se
crença e a crença é sempre um salto no escuro. Verdadeiro, mas é um salto. O tempo
hoje está parado e quadrado. Ouço carros ao longe a deslizarem sobre o asfalto
molhado. São mais audíveis em dias de chuva. Sobrevaloriza-se tanto a prática
como a filosofia. Deviam ambas ter um meio termo. É por isso que só me encontro
com artistas. Aquilo a que se chama encontro. Com filósofos ou gente que só faz
e pouco pensa, parece que fico no silêncio interior, sempre à espera que alguma
coisa aconteça. E, normalmente, nada acontece. Seguem o seu caminho
alegremente. Quer no caminho das ideias, quer no caminho das coisas práticas. Imagino-os
num caminho alegre, debruado de flores, tão diferente do meu, cheio de abismos
e de estrelas incríveis visíveis na abóbada celeste. Cansei-me de fazer ensaios. Podia
pegar num qualquer texto de um qualquer autor e fazer um ensaio. Uma interpretação.
Dizer, por outras palavras o que ele quis dizer, e reuni-lo a outros autores em
pontes várias, chamando a atenção para as diferenças e semelhanças. No fim
dizer. “muito interessante”, mas é só isso. Os ensaios são muito interessantes,
mas, com o tempo, esquecem-se, perdem-se nesse mundo das ideias enquanto
procuram um porto onde possam ancorar e tornar-se coisas. Todas as preocupações
de todos os condutores dos carros que ouço ao longe são diferentes das minhas. Nenhum
se preocupa por estar um dia quadrado e com demasiado nevoeiro para se ver o
horizonte. Ninguém deu o nome ao dia de “quadrado”. Nenhum ficou preocupado
com isso. Só a mim essa palavra me faz cócegas. Me chega a amedrontar até. Tudo
produto da imaginação. Deste silêncio onde ela ecoa. Agora são os cães que ladram
a alguém que passa na sua rua. Querem dizer qualquer coisa, mas ninguém entende
o que dizem. O que dizem na sua imaginação que ecoa no silêncio da rua, quando
alguém passa. Tenho uma tonelada de livros para ler. Já não os vejo bem como livros.
Os livros são sempre romances. Aquilo que tenho é uma pilha de ensaios para ler.
Uma série de autores que resolveram ensaiar. Os ensaios não são livros. São fardos
de palha onde procuro sempre uma agulha, qualquer coisa que acrescente um
conhecimento a uma outra pilha de conhecimento que não está escrita, reunida. O
meu conhecimento nunca é muito sólido nem solidificado. Parece que se instala no
olhar que deito às coisas. Refugia-se aí para não ser apanhado pelas letras e
pelas leituras. É a forma como olhamos para as coisas que nos diz o que
realmente conhecemos. E os meus olhos, neste dia quadrado e cinzento parece que
esperam qualquer coisa. Um raio de sol qualquer que atrevesse todas estas
nuvens, como a alma quando se eleva e consegue atravessar as nuvens em direcção
à luz. Como se esperasse assim a alma do sol, numa viagem feita ao contrário, de
cima para baixo, em vez de ser eu a ir ter com ele.
domingo, 18 de outubro de 2020
A Arte e a Flor Azul
Há um certo ambiente que quase já
não existe. O da criação. O da criação nítida e assertiva. Vi dois filmes nos
últimos anos cujos argumentos não se deixaram enredar pelas malhas filosóficas
estéreis. O primeiro foi um filme belga de Roland Joffé, com o título “Vatel” e
o segundo com o título “A Little Chaos” (em português com o título “Nos Jardins
do Rei”) realizado por Alan Rickman e ambos têm como tema central a Arte. E
ambos possuem um determinado ambiente onde só alguns podem hoje nadar e
entender. Normalmente só vemos as obras de arte e raramente vemos para além dela,
a sua própria elaboração. Os documentários sobre arte procuram mostrar os
artistas por detrás das obras e certas leituras das mesmas, tanto ao nível da
técnica como ao nível da temática. Resultam sempre um pouco técnicos e frios
esses documentários. Por seu lado, as séries e os filmes sobre os artistas são
sempre romantizadas e intensas para poderem conquistar algum público. A arte em
si, raramente aparece. Nos dois filmes que referi a arte encontra-se sobretudo
num determinado ambiente e é lá que deve estar em primeiro lugar. Existe um
impulso natural em direcção à perfeição, tanto por parte do personagem Vatel
(interpretado por Gerdard Depardieu) que organiza um banquete no primeiro filme
supracitado, como por parte da personagem feminina e principal do segundo filme
mencionado, interpretada por Kate Winslet, personificando uma desenhadora de
jardins. Caminham ambos pelos mesmo trilhos de uma arte efémera (um jardim é
efémero porque está sempre em movimento). No primeiro filme a arte preenche
todos os gestos do personagem principal, no segundo, a arte aparece como
horizonte último onde reina mais do que o símbolo: a materialização celeste.
Existem coisas que, de facto, não podem ser descritas (nem sequer num texto
para um blogue) porque
pertencem ao domínio do éter, da essência das coisas. Ninguém consegue
descrever a essência de um perfume. Podemos dizer que é frutado, amadeirado,
amendoado, etc… Mas ninguém descreve a essência das coisas. O éter é
indiscritível, mas é apreensível. Às vezes dá-me vontade de me dedicar ao
silêncio como consequência natural do indescritível e limitar-me a ver o mundo,
silenciosamente, com os olhos alterados pelo facto de ter experimentado certas
vivências que estão implantadas na alma. E tenho saudades de outra personagem
que poderia ser: com vastas paisagens por recriar, com vastos banquetes para organizar.
O ambiente deste planeta não permite, por agora, a expansão do que a arte é.
Está demasiado desfigurado e as almas são demasiado jovens. E ninguém entende
nada do que tento dizer. Para isso seria necessário o silêncio interior que
escuta. Vivo silenciosamente magoada em busca do belo. Porque, como já escrevi,
o belo, quando é Belo, encerra em si a Sabedoria e a Graça (podemos dizer que a
Sabedoria é bela e cheia de Graça ou que a Graça é Sábia. No entanto, é mais
fácil (e entende-se melhor) quando dizemos que a Beleza encerra em si a
Sabedoria e a Graça. Cada vez me identifico menos com este planeta que está
cada vez mais longe da sua essência. A pobreza interior grassa sem graça por
todos os campos e confunde-se a capacidade de falar com a capacidade de criar
com uma facilidade estonteante. E confundem-se todas as imagens com arte. Na
verdade, já poucos conhecem o processo artístico em si mesmo, com aquilo que
tem de cosmogonia. O cosmos passou a ser algo de utilitário, de qualquer coisa
a explorar como se tratasse de “mais uma imagem”, quando o cosmo é o nosso
lugar no mundo… daí que dantes o homem fosse entendido como microcosmos. Mesmo
no mundo esotérico e filosófico encontrei, sobretudo, cabeças baralhadas com
leituras sucessivas do que nunca entenderão. Não digo isto com um sentimento de
superioridade, mas sim com um sentimento de inferioridade uma vez que eles são
mais vistosos e maiores em número. Às vezes pergunto-me porque nasci assim, e
porque me foram dadas determinadas experiências tão de acordo com a minha alma
se não consigo comunicar o que seja. Mas talvez não seja para comunicar e seja
para silenciar. Talvez tenha uma espécie de “complexo de serviço” que me diz
que tudo o que me é dado tenho que dar. Mas sei que isso não é verdade. Não
pode ser. É uma espécie de complexo provindo de uma cultura que se quer
“caritativa” para que se possa “salvar” a “alma”. Na verdade, aquilo que a uns
salva a alma a outros só pode dificultar essa suposta salvação. Ou antes, para
alguns, é necessário o consolo de alguém que lhes diz que a sua alma “está
salva” ou “a caminho da salvação”. Talvez seja esta a marca cultural mais funda
aqui no Ocidente e, por ser uma marca cultural, é também uma marca “social”, o
que não deixa de constituir um estorvo para quem nasceu para criar, ou seja,
para sair da sociedade. Um criador nunca está em sociedade, está sempre no seu
casulo a criar ou a chorar e a gritar quando não pode criar. Tenho saudades de
certos ambientes que já não existem. Talvez seja uma tradicionalista inveterada
e tenha nascido simplesmente assim: com memórias e saberes que não são desta
época. Quanto aos filmes que mencionei, esses sim, mostram um determinado
ambiente que reconheço. Reconheci logo. E fiquei contente. No entanto, nem sei
se aqueles que realizaram os filmes souberem o que fizerem. Se calhar fizeram
inconscientemente ou foram encaminhados por mãos divinas… como um sopro
invisível. Mas sei que, quando Vatel coloca aquela flor azul, sabe
perfeitamente o que está a fazer.
quinta-feira, 15 de outubro de 2020
O quê?
A cara dos meus cães depois de ouvirem dizer que os Templários não existem logo a seguir a aparecerem no Jornal da SIC muito bem aperaltados. Deve ter sido incubação a mais, das duas partes, evidentemente: dos que dizem que não existem e dos que dizem que existem. Eles que se entendam. Tomem lá um osso. Duro de roer que é para levar mais tempo.
Fim de tarde
Até percorreria todos os ambientes de que me lembro. Bares
com bancos altos e pernas cruzadas. Um cigarro, uma boquilha e os espelhos na
parede do bar onde espreitam os rostos, os vestidos cor de pérola, os fatos
escuros. Como num filme. Sim, como num filme qualquer. Qualquer imagem serve.
Uma casa no cimo de uma ligeira elevação no terreno. O verde das ervas e as
searas competindo pela fotografia e o sol já do fim da tarde tornando esguias
todas as sombras. Ou o gelo por onde vagueia um urso. Qualquer imagem que me sossegue.
E tudo o que escrevo me parece ser menos
importante do que aquilo que penso, nos intervalos em que escrevo, enquanto
olho pela janela e deixo que os pensamentos fluam como as águas da grande
cascata. Este fim de tarde esquecido de si entra pela minha paisagem interior
quando não espero. E dentro de mim, as sombras esguias, não são negras, mas
possuem um brilho que se distancia do sol. E dançam num outro sistema solar,
feito pelos planetas interiores e pelas luas que são pássaros que cantam os sorrisos
sortidos e intermitentes do brilho dos planetas.
O Cânone
Há uns anos, na Universidade, uma professora de Mestrado
ensinou-me a problemática do cânone. Desde as suas origens, à sua diversidade,
passando pela sua perpetuidade ou não. Desde aí que assisto a autênticas
invasões, por parte do cânone, em todos os territórios. Tornei-me mais atenta
ao cânone que não se confunde (embora, por vezes pareça) com moda. É frequente
nas redes sociais, apelar-se à publicação dos “livros mais importantes da minha
vida”, uma espécie de cânone pessoal que pode servir para comparar, para
estabelecer um determinado perfil sobre a personagem que editou a publicação,
para dar ideias de leitura. Há diversas possibilidades de utilização. Mas o
mesmo se passa com tudo. Facilmente uma opinião, hoje em dia, é entendida (pela
veemência com que é debitada) como uma espécie de cânone ou modelo exemplar,
absolutamente incontornável e motor de acções vindouras. O problema é que há de
tudo para todos os gostos e, tal como aconteceu ao cânone das artes, o mesmo
acontece às vozes: uma dissolução na multidão delas com pequenos agrupamentos,
aqui e ali, em torno de uma delas, tal e qual o “cânone”. Praticamente somos
todos canonizáveis assim, basta ser independente de qualquer instituição que
canonize institucionalmente. Este tipo de comportamento aproxima-se a passos
largos da anarquia. Já escrevi várias vezes que existe uma anarquia superior e
uma inferior. A inferior é visível no dito popular “cada um é como cada qual” e
a superior também é visível no mesmo dito popular. No entanto, na sua forma
inferior, a anarquia procura e exige o reconhecimento pelos pares. Na superior
isso não se passa. Digamos que a primeira tende a auto aniquilar-se em si mesma
na constituição de critérios comuns quando procura e/ou exige esse
reconhecimento, o que equivale a dizer que o “individuo” tende a desaparecer em
função desses critérios e desse reconhecimento. Na anarquia superior, o diálogo
é sempre feito com o centro de “cada qual”, independentemente dos cânones
impostos pelo exterior. Se há um exterior ao indivíduo, esse “exterior” está
num plano individual e não colectivo. Entendendo isto, poderá compreender-se melhor
o princípio da causalidade superior uma vez que, segundo a lei universal da
intensidade, quanto mais perto do seu centro um individuo se encontra, maior
repercussão têm as suas acções por mais diminutas que pareçam à luz dos cânones
que lhe são exteriores. Penso ter respondido a uma série de gente.
quarta-feira, 14 de outubro de 2020
terça-feira, 13 de outubro de 2020
Símbolos
A ausência de símbolo incomoda-me tanto como uma pedra no
sapato. Quase não me deixa andar. É isso que mais me assusta na nova arte. A falta
de linguagem simbólica. Quem vive e está num jardim vive rodeado de símbolos. Esses
símbolos estão todos ligados à fonte. São portais que se abrem. Sucessivos. Uns
a seguir aos outros. Um jardim é como o Nilo. Desagua a Norte. Desagua na
fonte. Sempre pintei símbolos. Sempre vivi num jardim. Sempre fui quase
invisível como são os jardins. Quando vou num jardim e encontro um vaso tombado
pelo vento, levanto-o sempre. Não o piso. Levanto-o. Um vaso tombado pelo vento
é muito mais simbólico do que aquilo que se pensa. Muito mais forte do que
aquilo que se pensa. Um vaso tombado num jardim é o início de muitas coisas e
pode chegar a constituir o eixo da integridade. Pode ser o encontro inato com o
jardim. Pode ser a natureza a desvendar-nos a nossa própria natureza. Pode ser o
silêncio donde brotam palavras d’oiro. O mistério de Portugal é o jardim que é.
sábado, 10 de outubro de 2020
Vocação e Destino
Pus-me a ler o prefácio que Ananda K. Coomaraswamy escreveu
para Related Arts de Mary Noreen
e, às primeiras páginas (são poucas, vinte), não estranhei nada. O pensamento
acerca da natureza da arte como algo tradicional versus este pensamento moderno
sobre ela é o ar que respiro. Podemos ser frutos da nossa época e desta cultura
enraizada nas terras pantanosas do individualismo mas, por vezes, podemos ser
fruto de outra sem sabermos e só descobrimos que não somos loucos mais tarde. Quando
Dalila P. da Costa, com o seu olhar puro sobre as coisas, observou a minha
pintura afirmou, quase imediatamente, que eu era indiana. E talvez seja se isso
significar que nasci com a marca artística e que não tive que a adquirir com
esforço. A vocação funciona e é imprescindível para estas coisas da arte. O
problema é que a vocação deixou de existir numa conversa normal. O termo é, em
si, considerado bafiento, coisa do passado, uma espécie de condenação sem se
ter culpa. Bem lá no fundo, aquilo que a nossa educação nos diz é que
escolhemos a nossa vocação o que é o oposto da vocação. Também há quem confunda
vocação com destino, mas são duas coisas diferentes. Na verdade, quem nasce com
uma vocação pode ter um destino que nada tem a ver com a sua vocação. Continua
vivo e a respirar e a cumprir ou antes, a pensar que está a cumprir um destino.
E está. Se o destino for considerado um caminho. Um caminho onde a sua vocação
não está presente, ou porque não pode ou porque nunca a descobriu. Em última
instância todos cumprimos o nosso destino, no entanto, nem todos se cumprem na
sua vocação e daí que ponha sempre muitas reticências relativamente ao chamado
“destino”. Quantas vezes ele serve para justificar qualquer acção. Qualquer
uma. E nunca serve para justificar uma vocação. Na verdade, é a vocação que
justifica o destino. Apenas isso. É muito curioso que a vocação esteja ligada
às artes e às coisas da espiritualidade. Como se a vocação fosse superior
sobretudo construtiva. E é. Como é superior e construtiva, foi retirada do
nosso vocabulário. Em vez disso apareceu a palavra “escolha”. A palavra escolha
significa que se escolhe aleatoriamente ou não por entre determinados
elementos. Há um caldo inicial e escolhe-se isto ou aquilo. A liberdade é
total. O resultado é a existência de muitos destinos e de poucas vocações e
isto passa-se porque a vocação tem muito mais a ver com a audição do que com a
visão. Quando pinto o elemento “audível” é muito mais importante do que não
parece. Digo “não parece” porque esse elemento não se vê. Eu ouço a pintura.
Escuto-a, antes, durante e depois de a fazer. A “escolha” implica muito mais a
visão. Escolhemos entre o que vimos, mas não escolhemos aquilo que ouvimos. O
som é franco, a vista é fraca sem o som. É por isso que qualquer pintura nasce
do que se ouve e vem cheia de palavras. É por isso que não havia distinção
entre escrever e pintar. Dantes. E é por isso também que o som com que se pinta
é um equivalente ao início da Manifestação. O som vem directo, surge puro, é
tão essencial como um qualquer arquétipo de Platão quando ecoa na escuridão do
cosmos. Aliás, toda a vibração desses arquétipos visuais é audível. Nada que
Pitágoras não afirmasse. A mentalidade contemporânea está ausente de todos
estes valores (isto são, são valores e não essa coisa transitória que é a
moral) e, por isso, a arte é desvalorizada, por um lado, sobrevalorizada, por
outro, no que toca ao aspecto monetário, e sem valor no que respeita à maioria
das “obras” que por aí se vêem. Na maioria dos casos, os “artistas” cumprem o
seu destino, mas não cumprem a sua vocação. É a inversão das coisas. É o
destino a justificar a suposta vocação e não a vocação a justificar o destino.
Por isso, quando me falam em destino, desconfio. Bastante. E ou me explicam as
coisas como deve de ser ou então fico na mesma.
quarta-feira, 7 de outubro de 2020
O Governador de Tunes
Hoje vou comprar um livro e fugir para dentro dele. A realidade
é absurda demais. Os livros são abusrdíces consentidas e não me apetece consentir
esta realidade. Nada é suficientemente suficiente, ao passo que nos livros, as
palavras bastam por elas mesmas, são pequenas ilhotas que emergem do absurdo
real. Gostava de ser elogiada pelo que faço. Não porque eu goste de ser elogiada,
mas porque isso seria sintoma de bom gosto e de capacidade de leitura. Os parvos
dos esoteristas nunca perceberam isso. Têm o umbigo nos olhos e por isso é que
são todos tão competitivos. Como as empresas. Ontem a minha amiga disse-me que eu
parecia o Eça de Queiroz no dia em que não sabia bem o que escrever para o jornal
onde tinha uma coluna. Com pressa, acabou por desancar o Governador de Tunes,
tema que não interessava a ninguém. Estou sempre a desancar o governador de
Tunes. E agora ele nem sequer existe. Gosto de desancar pessoas. De as apanhar
nas fraquezas e contradições. É um passatempo como qualquer outro e, como
ninguém lê, não aquece nem arrefece aos desancados. É um hobbie como comer
pastilhas elásticas que sejam apenas cor de rosa choque. O que é que se pode
dizer deste lamaçal a não ser dizer que é um lamaçal? Estamos reduzidos ao
ponto zero da crítica. A crítica construtiva é inútil numa altura em que está
tudo a ser destruído. É uma espécie de nova crença, de uma nova religião, de
uma nova língua como o esperanto. A crítica construtiva não passa disso e, como
não passa disso, é new age, já nasceu estragada. Ando sempre a falar com Deus,
mesmo quando não ando a falar com ele. O facto de universo responder é sempre
uma resposta vaga. Também já escrevi sobre isso no primeiro número duma revista
de Filosofia auto-denominada de Extravagante. As coincidências correm o risco
de entrar no reino do absurdo. São uma espécie de teia. Ultimamente tenho
preferido fugir para dentro dos livros. Têm capítulos e estão bem arranjados. São
decentes. Abrimo-los e sublinhamo-los. Gosto de sublinhar os livros e depois de
tirar apontamentos dos sublinhados. Acabo por ler duas vezes. Dá-me tempo assim
para os digerir. Ler livros parece-me ser a única solução disponível quando o
tédio se instala. Interpretá-los. Fazer associações de pensamento. Procurar. Procurar
entender numa época de especializações. Houve uma cientista portuguesa que
ganhou um prémio por ter feito um plástico transparente que pode ser aplicado
numa série de coisas. Passou horas e dias e meses e anos da vida dela à procura
do plástico. É preciso paciência. Admiro, sobretudo, a paciência dela. Eu não
tinha. Gosto demasiado de pensamentos grandes, de grandes sinfonias, de grandes
vias abertas ao céu. Fico quase ausente por causa disso. Vou ao céu, por causa
disso. A um céu desconhecido dos aviões feitos de plásticos especiais. Onde não
há plástico. Escrevo por descarga de consciência. Quando morremos há uma
descarga de consciência. Dizem que ela ascende. Escrever é estar um pouco
morto, a descarregar a consciência só que ao contrário. Materializamos as
coisas em palavras. É uma morte de pernas para o ar, o que não deixa de ser
engraçado. Escrever é engraçado. Quase lúdico. Só não é porque há leitores. Os leitores
fazem com que essa parte lúdica desapareça. Começam logo a intervir, a pensar,
a antever, a reflectir sobre o que se escreve. Até quando riem, riem a sério, nunca
a brincar. É por isso que a realidade é tão absurda e que fujo para os livros. Para
ver se me trono um pouco absurda também. À procura de qualquer coisa. Não é bem
de qualquer coisa. É qualquer coisa de concreto que me retire do absurdo que
sou. Parece uma pescadinha de rabo na boca, mas não é. As pescadinhas de rabo na
boca são miméticas. São o símbolo do mimetismo. Do símio. É por isso que os
revivalismos raramente trazem qualquer coisa de novo, de fresco e, quando o
trazem, deixam de ser revivalismo e só têm duas hipóteses: ou trazem qualquer
coisa de novo e isso é new age, ou estão inseridos da Tradição e isso é “out of
age”. O velho Shakespeare tinha razão: “Ser ou não ser, eis a questão”. A grande
questão. Se se for um criador essa questão não se coloca sequer. Essa questão é
para os que não sabem o que fazer consigo mesmos. Uma espécie de
quebra-cabeças. De passatempo. Quem havia de dizer que essa questão é
irrelevante. Só mesmo um grande criador para a colocar.
terça-feira, 6 de outubro de 2020
Os ditadores tolerantes
Quando há uma tendência inata para se possuir um espírito
Inquisidor, ou Totalitário, essa tendência encontra, nesta época, terreno
fértil para a sua idiotia e por via do mais absurdo dos argumentos: a
tolerância e o suposto “respeito” por ideias divergentes. A falta de coluna
vertebral é disfarçada com princípios vagos de tolerância. Esses princípios são
vagos e sem fronteiras definidas a não ser por cada um que é, no fundo,
ditador. Um espírito tolerante é aquele que aceita tudo, mas cuja própria
vontade está acima de qualquer outra alternativa. Sempre detestei a palavra
tolerância porque nasce e vive numa espécie de violência contida, na chamada violência
passiva que consegue ser mais enervante do que a efectiva. Isto a propósito dos
republicanos que não toleram os monárquicos. A ética republicana (que não
tolera clientelismos… boa piada, basta ver o que se passa em Portugal e o que
se vai passar agora com os fundos comunitários que estão a chegar), tolera os
monárquicos remetendo-os para o silêncio. Para a prateleira dos “coitadinhos”,
às vezes mesmo, de uma forma brejeira, para a prateleira dos “ridículos”. Os seus
argumentos são simples: os monárquicos compactuam com o clientelismo, os
monárquicos não possuem ética porque o sangue está acima de tudo, os
monárquicos não têm o direito, nem natural (quanto mais divino) de governar. Os
detentores do futuro, de uma sociedade justa, equilibrada e tolerante são os
republicanos. Os monárquicos são chão que já deu uvas. Isto num país cujas
republicas nunca tornaram o país grande e nem sequer toleraram o pensamento que,
como país constituído há quase um milénio (na minha perspetiva o país está
constituído há muito mais tempo do que isso: somos o caso típico da pescada que
antes de o ser já o era), possa ter um papel único relativamente aos outros
países porque, segundo os republicanos, as repúblicas são todas iguais. A marca
distintiva fica apenas para os nomes dos Presidentes da República que vão
instalando arraiais em Belém. Os republicanos usurparam o nome do país e substituíram-no
pelo seu, temporário e frágil e que vêem nesses anos diminutos que variam entre
cinco a dez anos a marca da eternidade… ou da eternidade que conseguem alcançar.
Há uns anos, um grande republicano, Miguel Real, escrevia sobre a “morte de
Portugal”, e talvez seja esse o desejo inconsciente de um republicano convicto.
Se as repúblicas são todas iguais e se elas, num grau último se podem fundir
em Estados Federados, as pátrias deixam de ter qualquer importância e a família
real é patética no meio de tantas famílias, todas iguais e bem definidas no seu
mundo indefinido, dissolvidas no pantanal das leis. Os pantanais das leis donde
normalmente se esquivam os corruptos, os desordeiros, os malfeitores. Ainda ontem,
numa série de televisão alguém comparava as leis a uma teia que só apanhava
moscas e mosquitos deixando fugir os besouros e abelhões… a república tem a lei
do seu lado, nunca o símbolo porque o símbolo serve a grandes e a pequenos, é
um farol acima da lei. A apropriação dos símbolos nacionais pelos Presidentes
da República tem em vista o enaltecer dessa Lei (que nunca é símbolo) onde
pairam, acima dela, bandos de clientelas, de compadrios, de capelinhas, de
instituições corruptas. Normalmente, o argumento dos republicanos não vai além
do simples “sou melhor do que tu” porque não há muito mais a dizer. Queixam-se de que nunca viram uma monarquia exemplar e esquecem-se de que nunca houve uma república
exemplar. Em Portugal é frequente vermos monárquicos não assumidos publicamente
(cai mal dizer-se que se é monárquico, entra-se mesmo na esfera do detestável e,
por vezes, do “coitadinho está desfasado do tempo") que dizem coisas como “ há
que ser tolerante e respeitar os republicanos ainda que eles dêem cabo da monárquica
que sonhamos”, esta última parte da frase fica omissa, no lugar do silêncio onde
os republicanos querem que fique. Há também muitos monárquicos que não dizem
que são, por vergonha. E há os idiotas e perigosos que dizem que o são, mas que
não são outra coisa a não ser pessoas (caminham para deixarem de ser pessoas a
passos largos para se tornarem robôs) formadas pelas ideias tanto do Facebook,
como pelas ideias da Extrema Direita, provinda do Nacional Socialismo,
socialistas portanto… (basta estudar um bocadinho para se ver o que são os
socialismos de esquerda e de direita, e, para quem não percebe, a palavra “
socialismo” provém de social, ou seja “das massas” e isto é ponto assente). A
extrema direita nunca toleraria uma monarquia porque a esta lhe falta as massas
que elegem o ditador a partir de elas próprias e não a partir de uma família
real (antigamente o rei era aclamado, ou seja, adoptado pelo povo, por entre os
candidatos ao trono provindos de famílias nobres, e essa pequena diferença é a
que existe entre uma elite e uma massa de gente: a proveniência do governante).
Os monárquicos não assumidos e os
republicanos assumidos, entendem-se perfeitamente porque são frutos da mesma
árvore. Os primeiros deitam-se e rebolam-se às ordens dos segundos e vivem
felizes para sempre. Dizer abertamente que se é monárquico (sem se ser de
extrema direita ou doutro partido conservador qualquer) normalmente provoca uma
ira inflamada, mais ou menos visível no republicano (o sonho interior de qualquer
republicano é exercer o poder, mesmo que
não tenha qualificações para isso e delega, por isso, essa possibilidade a
alguém que é “um dos seus”, um irmão da mesma ninhada, um compensador, “não
estou lá eu mas está o meu irmão”, ou seja, a raiz do próprio clientelismo) e
provoca um silêncio embaraçado nos monárquicos não assumidos. Entre a ira e o
embaraço, entendem-se todos, encontram-se nas urnas na hora de votar e a seguir
vão almoçar brindando à fraternidade. Evidentemente que o mais importante fica
por dizer porque não há discussão possível. Aliás, como bons burgueses, não
querem discussões, querem manter as aparências. Quando dizem que “monárquicos e
republicanos se devem respeitar”, lembro-me do respeito que houve aquando a
mudança de Regime. É sabido que a transição de Regime foi pacífica. Feita com
um enorme respeito. Muita honra. Os republicanos silenciaram os monárquicos com
promessas de um mundo melhor e mais justo. Foi só isso que aconteceu. A “tábua
rasa” da História, apanágio de espíritos ditatoriais. Mais valia dizerem para
os monárquicos estarem calados, era mais franco. A “tábua rasa” da História
prevê e deseja o fim de Portugal. É só isso. E esse fim é feito e tecido por
gente sem coluna vertebral por mais colunas que possam ter certos templos seus.
Ser-se monárquico é outra louça. É estar sozinho trazendo o povo no coração.
Nunca vi isso num republicano. Normalmente dizem “juntos somos mais fortes”, o número
a vencer e a convencer. O coração ausente, substituído pela euforia da batalha
na cruzada contra Portugal. E a coragem também está ausente, substituída pelos corpos dos
outros. Respeito? Respeito quem merece.
segunda-feira, 5 de outubro de 2020
A "elite"
A páginas tantas da sua extensa obra (extensão, neste caso,
não indica quantidade), René Guénon afirma que o povo, quando não há condições
para que a Tradição esteja visível (é mais ou menos esta ideia do binómio visível/invisível),
é o maior refúgio para quem a guarda. Esta afirmação é também muito extensa
porque tem vários níveis de leitura. Quando as elites se perdem na política
(ainda ontem alguém numa série televisiva citava um qualquer autor que escreveu
“quem entra para a política fica imediatamente desqualificado”), entram no
universo de Sodoma e Gomorra e começam logo a meter as mãos pelos pés,
sobretudo nestes tempos de pensamentos totalizantes, sem profundidade nem
capacidade de pensamento. Este refúgio é extraordinariamente verdadeiro e pode
ser apenas a possibilidade da passagem de testemunho adquirido de forma inconsciente
pelo povo que em seguida vai manter as informações e replicá-las ao longo de
gerações através da cultura popular. Neste caso, estamos perante a passagem de
testemunho ao longo da linha horizontal do tempo. Mas essa passagem de
testemunho, também é feita através do eixo do tempo vertical, o tempo do kairos,
e aí, todo o povo que aceitou ser concha protectora, participa nos ensinamentos
consoante as suas capacidades. Ai temos fixada a “esperteza saloia” que não é
mais do que uma forma muito inteligente de estar. O que torna o saloio esperto
é o seu interesse, o seu genuíno interesse em aprender. Nesse momento pousa a
enxada e escuta. Com a máxima atenção. É o verdadeiro aprendiz de uma voz
superior e que entende, por intuição, que essa voz, é de facto superior. As duas
vozes, encontram-se na humildade. Mas isto passa-se quando as elites já não
possuem elas próprias essa capacidade de serem humildes e essa capacidade é
transversal a todas as classes intelectuais. E por não possuírem essa
capacidade, que é espontânea, nunca poderão participar nesse tempo vertical que
exige a total transparência por parte dos intervenientes. A depreciação da “esperteza
saloia” passa-se quando, incapaz de humildade, longe já da Tradição, a elite
intelectual portuguesa espezinha por instintos malignos, o único reservatório
disponível para o conhecimento e fá-lo com o maior descaramento: aproveita as
uvas (que nunca cultivou), coloca-as sobre a mesa do banquete, aproveita o
vinho (que nunca produziu) e coloca-o também na mesa do banquete. Banqueteia-se
e acaba bêbedo com os seus próprios discursos e com as suas próprias palavras
(é a chamada vingança do saloio) e isto porque, nem lançou sementes, nem
produziu vinho alguma vez na vida e se limitou a deambular por literaturas
várias sem nunca pisar as uvas com os pés bem assentes na terra. Permanecem como
elite, mais por convenção do que por sabedoria. A característica mais forte das
massas é a preguiça e, como tal, nunca muda a “sua elite”, primeiro, por
desconhecimento (via preguiça amorfa) de que exista, segundo, porque as massas,
na sua preguiça mental, nunca questionam absolutamente nada nem querem saber
absolutamente nada. O seu domínio é o da acção, pura e dura, traduzível numa
espécie de pasta que vai crescendo lentamente por via da fermentação até á
bebedeira final e conduzidas por uma suposta elite que nada mais é do que uma
excrescência de si mesmas e altamente desqualificada por via da política.
domingo, 4 de outubro de 2020
Pela manhã
Nem me dá vontade de acordar de manhã. Para se ser herói ou
anti-herói por via da estupfacção com o azar das gentes. Está-se melhor a
dormir, longe, longe. Portugal só foi grande em tempo de reis, depois, embarcou
no barquinho republicano e ficou a dar às costas e às sortes. Há muita
filosofia por aí que disfarça que é política e muita divulgação das almas
nobres que encobre vícios obscuros. Pela manhã, rolas e pardais partilham
biscoitos no relvado das letras, serenos como o pôr-do-sol que há-de vir. Só me
animo a mirar o mar, suficientemente grande para os meus olhos. Os meus
companheiros de pensamento passaram a ser os cães que abanam a cauda com as
palavras que lhes digo. Não sabem do significado, mas conhecem o coração das
palavras o que é o suficiente. Os outros sabem todos os significados, mas
desconhecem o coração. De que lhes serve? É por isso que nunca abanam a cauda
nem se sentem felizes quando me vêem. É tudo tão mental que enjoa. Os cães,
pelo menos, são uns trapalhões mentais o que lhes dá graça e fazem-me rir com
gosto. Os outros, fazem-me rir com desgosto. São cassetes e cassetetes, cansaços
extremos. Não sinto saudades deles. Da presença deles. Se sentisse iria a
correr e arriscar-me-ia a tudo. Mas não sinto. Não posso fingir o que não
sinto, não me apetece ser meio poeta e ser poeta pela metade e fingir o que
deveras não sinto. Estou melhor no reino dos sonhos onde tudo é possível do que
aqui onde tudo é impossível. O planeta dos anti-milagres. Dos homens dos olhos
tristes e das mulheres protagonizáveis ao mínimo engano dos projectores.
sábado, 3 de outubro de 2020
Renascer
Não é só a classe política que vive num mundo à parte.
Também os pensadores, os que procuram a sabedoria (habitualmente apelidados de
filósofos) vivem nos mais destacados casulos pendurados na árvore do
conhecimento. Assumem formas gregárias quando querem divulgar o pensamento ou a
sua posição perante o mundo, e depressa retornam aos casulos onde vivem tecendo
as suas asas. Estamos numa queda de civilização acentuada e não temos consciência
do grau do ângulo de declive porque, enquanto caímos, não fazemos grandes medições
e o conforto facilmente se confunde com evolução. Ora os homens não evoluem,
passam apenas de um estado para o outro onde certas características passam a
estar mais acentuadas. Quando não deixam o mesmo estado estão simplesmente no
mesmo estado rodeados de um cenário mais ou menos confortável que, esse sim,
vai mudando e pode parecer mais evoluído. O sofá de hoje é mais confortável do
que o sofá de ontem, mas não deixa de ser um sofá. O lixo planetário, a poluição
maciça são o sofá que parece confortável, mas que talvez não o seja porque
nunca houve mudança de estado efectivo no homem. Neste estado, somos
efectivamente parecidos com aquilo que nos rodeia. Neste estado, o que somos,
confunde-se com o cenário. Daí que seja tão fácil confundir pessoas com quase
nada, com números, cadeiras, lugares, assentos, posições no espaço. Esvaziar as
pessoas é tremendamente fácil numa altura em que já se encontram vazias e o
conhecimento se tornou numa espécie de caça ao facto que é sempre contabilizável
e ao mecanismo causa-efeito, que também o é. Como dizem os chineses “se
funciona” é bom, mesmo sabendo que o mundo não se reduz ao funcionalismo. É desta
forma que encontramos termos como “famílias funcionais” ou “pessoas resolvidas”.
O grau de exigência é nenhum, mas muito face ao objectivo: equações resolvidas
que possam funcionar no mundo real. E não se passa disto e é este o cenário de
sonho criado colectivamente. Termos como a “libertação” estão completamente
fora do vocabulário porque não é esse o objectivo. O objectivo é uma equação matemática
que funcione em direcção, presume-se, a uma felicidade contínua arrastada no
tempo, sendo a felicidade altamente volátil e contextualizável, ou seja,
extraordinariamente pouco livre relativamente ao contexto. A liberdade é um
conceito político que se confunde com o de felicidade, a libertação, por seu lado,
é um conceito vindo da metafísica (é mais do que um conceito, é um verdadeiro
estado). Nesta queda da civilização que todos vivemos e a que todos assistimos,
esses conceitos de felicidade aproximam-se cada vez mais daquilo que são os
fantasmas “mal resolvidos” (como se diz agora) de cada individuo. Quando esses
fantasmas coincidem nas dores temos um grupo em funcionamento. Político ou não.
Os homens em queda unem-se conforme as dores. É por isso que encontramos tantas
associações especializadas em determinadas dores. As associações das maleitas
são uma espécie de um membro extra que cresce em cada um dos seres unidos em
redor da fogueira da sua dor. Essa dor, é algo que funciona mal face ao
conjunto da maquinaria. Os seres são máquinas, disso não restam dúvidas. Programáveis,
direcionáveis, manipuláveis, substituíveis enquanto o sentimentalismo mais
rasteiro deixa cair uma lágrima de crocodilo e diz que não, que “ninguém é substituível”,
e depressa volta a rir e a ser feliz, noutro contexto mais propicio muitas
vezes só possível com o apagamento da memória, uma tábua rasa que invade todos
os planos necessários para que a felicidade seja readquirida, como direito,
aliás. Todos os homens têm direito a ser felizes, nenhum tem direito à
libertação e isto prende-se com a noção de centro que está sempre ausente
quando a sociedade funcional e o individuo funcional trabalham um em função do
outro. Quanto muito a função é o centro, a pele da própria pele, uma superfície
tão superficial que nem chega a separar as águas superiores das inferiores, ou,
por outras palavras, a abrir o ovo do mundo em duas partes para que um novo
estado seja possível. Até mesmo, as ideologias de direita que se dizem
conservadoras, quando falam no “direito à vida” falam disso com a tónica
funcional que a vida adquiriu numa espécie de jogo binário: vida/morte como se
fossem opostos, quando na realidade não são. Se assim não fosse, não existia o
culto dos antepassados… A palavra
nascimento está ausente, a palavra renascer ainda mais ausente. A vida é
concedida, o nascimento é um milagre e daí para a frente a felicidade parece
tornar-se o culminar de uma máquina bem lubrificada e em pleno funcionamento em
direcção a “momentos felizes” que se querem o mais juntos possível no tempo e
durante muito tempo, numa contabilização desenfreada cujo número absoluto é
impossível de alcançar. “Básicamente”, como agora se diz, tudo se resume a esta
“base”. A “base” é o pico da montanha. O máximo que a vista consegue alcançar. Sendo
estes os “horizontes”, nem os degraus da escada são visíveis, quanto mais
subi-la. E chegámos ao ponto em que nem a própria queda existe. Está-se na
base, confortavelmente, com tudo aquilo que o conforto implica: o sofá de hoje
é mais confortável do que o de ontem, o planeta de hoje é menos confortável do
que o de ontem. Vive-se numa roda viva, numa pescadinha de rabo na boca, sem
que se renasça porque não há “onde” nem “quando” renascer. Talvez porque nunca se tenha sequer nascido
como ser humano e sejamos vistos como algo dotado de vida funcional em função
de uma sociedade funcional que tem de funcionar relativamente a nós. Mais rasteiro
do que isto é impossível. E doloroso também. Não admira que existam tantas
associações para as disfunções. Até os governos se tornaram numa associação
para o funcionamento da sociedade disfuncional. Basta ver a quantidade de
departamentos. E das reabilitações, termo que tanto dá para as coisas como para
as pessoas porque as pessoas são coisas e as coisas são pessoas: o animismo
puro e duro está de volta com o mundo virtual. Renascer é um milagre a mais. Nem um
nascimento, quanto mais dois.
sexta-feira, 2 de outubro de 2020
O fantasma da ópera
Não convém ser-se muito pesado numa altura em que uma piada pode
ser dificilmente entendida por tudo ser demasiado leve à nossa volta. Aparentemente
isto é um paradoxo. As piadas deveriam servir para atenuar a dor. Pelo menos é
o que se costuma dizer. Mas parece que o que é leve se torna facilmente pesado
e aquilo que é pesado dificilmente é entendido. Talvez pense demais quando nem
deveria pensar numa altura em que o pensamento é levado a mal. Quando temos um
percurso sem folclore dificilmente passamos à condição de existência. O privilégio
de se ser sem existir é apanágio do mundo invisível. Foi quando me tornei
fantasma que o mundo começou a ser uma plataforma quadrada, um pouco elevada e
cujo acesso a ela se dava por meia dúzia de degraus de madeira que procuravam ranger
o mínimo possível quando alguém os pisava. A transição entre a plateia e o
palco e vice-versa deve ser silenciosa senão essa fronteira torna-se demasiado
audível e, quando isso acontece, parece deixar de existir diferença entre a
plateia e o palco. Não é isso que se deseja. Gostamos de fronteiras bem
definidas para que possamos entrar noutro mundo, saltar entre mundos por entre
um eclipse de tempo no qual deixamos de existir. Nesses degraus não existimos. Apenas
somos qualquer coisa de invisível entre cá e lá, entre a plateia da realidade e
o sonho real. Dito isto, o esoterismo não tem muito mais que se lhe diga. Há
entidades de um lado e do outro que se podem cruzar ou não e que se olham
mutuamente quando os projectores não batem demais nos olhos. Este fenómeno
luminoso serve para ambos os lados porque a luz tanto pode ser considerada como
qualquer coisa de divino que preenche por inteiro qualquer extâse como pode ser
considerado um simples foco de luz sobre alguém, tornando esse alguém o centro
das atenções, o centro dos centros da atenção dos humanos, um humano demasiado
cheio de si o que constitui uma autêntica blasfémia para todas as religiões. Todas
elas professam o apagamento. Um estranho apagamento face à luz, o que não deixa
de ser um paradoxo. A luz brilha e apaga o ego e os seres tornam-se uns simples
receptáculos de luz, formas passivas gozando a beatude. Como se pode constatar
o espectáculo acabou na mesma proporção em que nunca acaba. É muito sério,
isto. Não devemos rir em voz alta. Nem cantar acima do coro. A uniformidade
eleva-se por si, não necessita de primeiras figuras. Necessita de uma espécie
de limbo onde todos dão as mãos. Somos todos pavilhões multiusos e, uma das
nossas vertentes é dar-mos as mãos uns aos outros para nos fundirmos no todo
musical. Uma espécie de suicido colectivo para que o coro cante. Ai, a vida é
tão complicada. Deveras. Foi quando me tronei fantasma que comecei a ver o por
do sol com a máxima atenção. A vida de um fantasma tende a descomplicar-se. É uma
tendência natural. Está aqui e ali e prega uns sustos. Diz umas coisas que
fazem os outros fugir. Alguns malucos chamam por nós. Sentam-se numa mesa, dão
as mãos e alteram a voz. Já lhes tentei dizer que não é necessário alterar a
voz. Nem gritar. Não somos parvos nem surdos. Mas prosseguem contentes a chamar
pelos seus fantasmas de estimação. Sentem-se realizados assim. Aquilo que mais
me tem custado ultimamente é o facto de dizer piadas e de ninguém as entender. Logo
agora numa altura em que as “stand up” (é um termo estrangeiro) estão aí e em
força. Os que levam a vida a fazer rir têm o papel de chatear os que levam a
vida a fazer chorar e vice versa. Pelo menos é isso que parece. Por outro lado,
parece não haver motivo para rir e, nessas alturas, quando isso acontece somos
os que levam a vida a fazer chorar. As piadas têm um feitio intratável. Nunca se
sabe bem quando dão uma volta de cento e oitenta graus e se transformam em
tragédia ou em piadas de mau gosto. O mau gosto. Esse está por aí e venceu. É por
isso que o por do sol é um eixo de beleza. Há quem diga que é só isso. Beleza. Um
por do sol é belo, ponto final. Não há mais nada. Quem pensa que a beleza só é
bela engana-se, tem padrões lá dentro. Harmonias. Cores combinadas. Equilíbrios.
Sons. Palavras, memórias, histórias. E para além disso tudo a beleza é bela. A cereja
em cima do bolo. A beleza comunica por si. Só os desatentos ao belo não veem
isso e dizem que a beleza por si mesma não chega. Chega e sobra. Sobra para
tudo. A vida é complicada, mas a de um fantasma é menos. Consegue subir os
degraus sem que mostre que existe. Normalmente são muito observadores. E sabem dançar.
Nunca estão quietos. Dizem que isso acontece por serem almas atormentadas. Mas os
mesmo se pode dizer de um poeta. A diferença é mínima. É uma questão corporal. Uns
são mais encorpados do que outros. Os poetas são encorpados porque são incorporados
por fantasmas. Nunca poderão ser santos. Mas contribuem para ela, essa coisa a
que se chama santidade e que se limita a brilhar e a curar doenças. Um poeta é
um doente que provoca doenças de alma. Atormenta as pessoas. Torna-as
fantasmas. Quem sabe se fantasmas de si. A vida é muito complicada. Complicadíssima.
Mas um fantasma é menos. Limita-se a andar por aí e prega sustos. Pode incorporar
um poeta e passa a pregar sustos com as palavras. A poesia é um susto, bem
vistas as coisas. Afantasma os seres. Adoenta-os. Depois vem o santo e cura. É o
fim da poesia. Acaba-se tudo. Até a vida se acaba no momento da cura. Fica tudo
parado. Em beatude incessante nas saias do Senhor a ouvir os pedidos de ajuda. A
ouvi-los sem parar. Eternos. Normalmente são para curar doenças, esses pedidos.
Sim, na sua grande percentagem é um pedido para que a vida possa continuar e
para que o poeta continue a escrever poesia, de boa saúde, por mais anos e robusto.
Um fantasma raramente tem piada como a vida que é complicadíssima, mas isso é
porque um fantasma é um vivente que não vive na vida. Na vida de todos os dias.
Na vida corriqueira. É, de facto um ser à parte. Embora muito corra por aí,
pouco tem de corriqueiro. E diz piadas que ninguém entende.
quinta-feira, 1 de outubro de 2020
A Quinta da Regaleira
A palavra “gnóstico” está para o universo esotérico como a
palavra ciência está para a actual época. Serve para tudo. Para o bem, para o
mal e para o assim-assim. Falar de conhecimento é um cliché neo-vanguardista
que pode ir desde o simples concurso na televisão com perguntas e alternativas
de quatro respostas com uma correcta apenas, até aos mundos mais invisíveis e
de difícil alcance. Na verdade, Dante, estava sobretudo preocupado com a Igreja
católica e com o destino dos bispos, se estavam mais ou menos acima no círculo
infernal que ele mesmo criou, bem como com os políticos. O seu interesse por Beatriz
não passa do facto de produzir energias sexuais estimuladas por essa mulher
distante e aproveitadas para fazer a obra. Francamente, não vejo amor nenhum
por Beatriz. Vejo antes, Eros a comandar toda a operação criativa em função de
uma Igreja que sempre recusou esse deus e o tomou como maldito. Não falo do
estilo, da língua ou dos poemas, falo do substracto. No fim, rende-se à Igreja
Católica como bom italiano. Já Cervantes, parece ficar num limbo gótico tardio.
No fundo, o seu entendimento da Idade Média é o de que era uma época cheia de
fantasia. Cervantes é um moderno cujo enaltecimento medieval é apenas uma
máscara que dissimula o seu fascínio por uma época “esclarecida” e, para isso,
produz um hiato artificial entre a imaginação e a realidade. O maniqueísmo
vence como força motora para a obra e todos sabemos que o maniqueísmo tem como
base, Eros, exactamente o mesmo deus, com os polos atraindo-se e repelindo-se.
Temos nós por aqui
Camões, o navegador. E aqui o caso é outro. É provável que Camões fosse cristão
novo, já alguns o afirmaram. Não sabemos se isso conta para o caso ou não. A realidade
é que a sua grande preocupação não foi a Igreja Católica, nem a Idade Média,
nem o Renascimento. A sua grande preocupação foi para com o povo português como
se este fosse, em si, um caso único, situado para além da religião e do tempo. E
é. Na sua gesta, o povo português está acima da época, transportando-as todas
em barcos. As guerras medievais, as mulheres distantes que ficaram à beira-mar,
as outras encontradas nas Ilhas Afortunadas. Há uma dispersão muito própria,
como disperso é o próprio mar. E, nessa dispersão, há uma rota em direcção à
recompensa concedida pela deusa. A deusa não é nem uma época, nem uma mulher
que morreu e que ficou no céu a servir de guia em direcção à Igreja Católica
como o é Beatriz. A deusa eleva-se acima das montanhas do espaço e do tempo e
recompensa os navegadores com o conhecimento que nada mais é do que a visão da essência
das coisas. Não foi nem a matriz erótica de Beatriz, nem a cisão do tempo entre
a Idade Média e o Renascimento, a força que impeliu os portugueses. A ser
alguma coisa foi esse apelo de diluição no mar em busca de uma rota, ou na construção
de uma rota (busca e construção neste caso vai dar no mesmo, daí a tónica na “experiência”).
Essa busca de rota, como constituição do ser-se português, provavelmente foi adquirida
no Dilúvio. Não sabemos até que ponto as memórias nos ficam incrustadas nos genes
(um chip não é nada face ao sangue). Essa busca de rota parte da ignorância de
não se saber ao certo por onde ir. Dante e Cervantes possuem roteiros “à priori”.
No primeiro, o imaginário é adquirido via catolicismo com um sentimento de
culpa exacerbado, bem como o de pecado, o que é o mesmo. No segundo, o roteiro,
é o próprio espírito renascentista que o encaminha para a Idade Média como
coisa “outra” e perdida. O seu roteiro é binário. A aventura lusitana parte da
esperança e da incerteza. Não existem “à priori” demasiado materiais. Os únicos
“à priori” são essa deusa que nunca foi mulher carnal bem como todas as épocas
que este povo concentrou em si, desde o dilúvio, como memória difusa e como
apelo para regressar ao mar em busca de “algo” maravilhoso. E esse algo de
maravilhoso é efectivamente encontrado. Essa é a marca de génio de Camões. Não
está preocupado nem com a salvação (apenas com a salvação da diluição através
da descoberta ou construção – as obras ”libertam da lei da morte” - de uma rota-espaço- ao longo do tempo) como
Dante, nem com o tempo como ilusão (como Cervantes) e essa despreocupação é aquilo
vai fazer com que ambos, espaço e tempo sejam dados a conhecer pela deusa ao
povo português como deve ser conhecido: com a Máquina do Mundo, ou seja, espaço
e tempo indissociáveis. O problema do gnosticismo actual, afirmamos de novo, é
confundir isto tudo. Tal como a ciência se confunde na fragmentação das
certezas. Falar-se em gnosticismo ou em ciência é hoje a mesmíssima coisa e a
opinião diverge apenas devido ao ângulo de visão. O bom, o mal e o assim-assim,
funcionam como tábuas de salvação momentâneas num mar caótico onde nem sequer
chega a existir diluição porque, de ambos os lados, já se partem com “a prioris”
materialistas ou materiais. Sendo o “a priori” português, fora do espaço e do
tempo isso torna as coisas muito mais interessantes. Da mesma forma de que
quando falamos actualmente em ciência temos de perguntar “de que ciência
estamos a falar?”, o mesmo se passa com o gnosticismo, “de que gnosticismo estamos
a falar?”. E começam a surgir as respostas mais variadas e mesmo divergentes,
por vezes. O caso português é atípico na sua base. Na sua parte mais material,
existe o “apelo do mar”, da “saída de si”, como memória de um dilúvio, de uma
forma de vida que desapareceu nos abismos do oceano, a tal ponto que, mesmo
materialmente, esse apelo de regresso ao mar para o estabelecimento de uma rota
é difuso o suficiente para não ser totalmente palpável ou material: o apelo é, na
sua essência, misterioso e tem o seu quê de etéreo. É nesse instante que toca a deusa e que ela
compreende o povo português. O apelo português e a deusa são feitos da mesma
matéria que é imaterial e material ao mesmo tempo. Esse “toque” é aquilo que é
mais difícil de compreender pelos outros povos. Ele está na palavra saudade que
se confunde, em mentes mais simplistas, com o fado cantado, embora o fado
cantado seja o lamento ininterrupto do dilúvio. Uma prece permanente para o não
afogamento e corremos o risco de, com ele, andarmos sempre de xaile negro… como
negro ficou o céu quando caíram as águas (corremos o risco de nos afogarmos em
lágrimas) e corremos também o risco de o povo português se confundir com isso o
que seria, no mínimo absurdo. O fado é apenas um aspecto da Saudade e muito restrito
no tempo. Um entre muitos. Com esta moda
dos gnosticismos corremos também o mesmo risco que corre a ciência: que venha algo
de muito pequenino, como um vírus e toda a estrutura fica em risco. O
gnosticismo é equivalente a “conhecimento”. E, a palavra em si, no fundo, não
quer dizer nada. Podemos conhecer tudo, como a ciência, o bem, o mal e o assim-assim,
já dizia a Bíblia. O gnosticismo ou conhecimento é apenas um dos aspectos da
Saudade, apenas um. O aspecto mais importante da Saudade é a tentativa do povo
português de sair dela em direcção a qualquer coisa onde já não a sintam. E a
deusa, aí, distraída no seu passeio sempre matinal, repara, pára e concede. Não há nada de Católico nisto, nem nada de
Medieval. São dois factores absolutamente alheios a esta estranha relação que o
povo tem com a sua deusa, mãe do mar, mãe de mar, mãe sobre o mar, mãe e mar,
mater e matriz, a única capaz de nos levar a fazer uma rota, estabelecida com e
nos quatro cantos da terra. As guerras absurdas sobre a “interpretação da quinta
da Regaleira”, parece que têm em vista o esquecimento da figura mais importante
desse complexo arquitéctónico. A menina que se ergue acima de tudo (e se parece
soltar até da própria pedra) com pombas no regaço. As mesmas pombas soltas em
alto-mar aquando as festas do Espírito Santo. Aquela que se ergue acima das montanhas
e que “oferece” a libertação. O ponto central da Regaleira de que se fala e
escreve “por alto”, sem efectivamente se olhar para o alto para a ver, e ao
qual nunca se dá a devida importância. A menina-neta, o futuro. E, aqui para
nós. O único possível. Em vez disso perdem-se as interpretações do cenário que
não é mais do que um cenário de uma ópera, onde deuses se elevam em patamares e
poços invocam à força universos dantescos, cenas de caça e um anjo que ri ao
pés da cama enquanto anota os sonhos, uns atrás dos outros… de maneira a que
todos se percam neles, nas ciências, nos gnosticismos, nas alquimias soporíferas,
nas “Beatrizes” beatas, nos catolicismos baratos, nos ritos que imaginam, nas
espadas que disferem e rasgam camisas em duelos, magoando-se e ferindo-se. A grande lição deixada em pedra no século XIX,
o século mais contrastante de que há memória com forças de tensão entre um “passado
imaginado” e um “progresso imaginado”. As épocas e os presságios ficam sempre
inscritos nas pedras. Enquanto andarmos divididos entre Dante e Cervantes, não
lemos Camões, ou antes, lemos Camões com o coração e com os olhos de Dante e de
Cervantes o que é desarmónico e nada tem a ver com ele.