quinta-feira, 1 de outubro de 2020

A Quinta da Regaleira


 

A palavra “gnóstico” está para o universo esotérico como a palavra ciência está para a actual época. Serve para tudo. Para o bem, para o mal e para o assim-assim. Falar de conhecimento é um cliché neo-vanguardista que pode ir desde o simples concurso na televisão com perguntas e alternativas de quatro respostas com uma correcta apenas, até aos mundos mais invisíveis e de difícil alcance. Na verdade, Dante, estava sobretudo preocupado com a Igreja católica e com o destino dos bispos, se estavam mais ou menos acima no círculo infernal que ele mesmo criou, bem como com os políticos. O seu interesse por Beatriz não passa do facto de produzir energias sexuais estimuladas por essa mulher distante e aproveitadas para fazer a obra. Francamente, não vejo amor nenhum por Beatriz. Vejo antes, Eros a comandar toda a operação criativa em função de uma Igreja que sempre recusou esse deus e o tomou como maldito. Não falo do estilo, da língua ou dos poemas, falo do substracto. No fim, rende-se à Igreja Católica como bom italiano. Já Cervantes, parece ficar num limbo gótico tardio. No fundo, o seu entendimento da Idade Média é o de que era uma época cheia de fantasia. Cervantes é um moderno cujo enaltecimento medieval é apenas uma máscara que dissimula o seu fascínio por uma época “esclarecida” e, para isso, produz um hiato artificial entre a imaginação e a realidade. O maniqueísmo vence como força motora para a obra e todos sabemos que o maniqueísmo tem como base, Eros, exactamente o mesmo deus, com os polos atraindo-se e repelindo-se.

 Temos nós por aqui Camões, o navegador. E aqui o caso é outro. É provável que Camões fosse cristão novo, já alguns o afirmaram. Não sabemos se isso conta para o caso ou não. A realidade é que a sua grande preocupação não foi a Igreja Católica, nem a Idade Média, nem o Renascimento. A sua grande preocupação foi para com o povo português como se este fosse, em si, um caso único, situado para além da religião e do tempo. E é. Na sua gesta, o povo português está acima da época, transportando-as todas em barcos. As guerras medievais, as mulheres distantes que ficaram à beira-mar, as outras encontradas nas Ilhas Afortunadas. Há uma dispersão muito própria, como disperso é o próprio mar. E, nessa dispersão, há uma rota em direcção à recompensa concedida pela deusa. A deusa não é nem uma época, nem uma mulher que morreu e que ficou no céu a servir de guia em direcção à Igreja Católica como o é Beatriz. A deusa eleva-se acima das montanhas do espaço e do tempo e recompensa os navegadores com o conhecimento que nada mais é do que a visão da essência das coisas. Não foi nem a matriz erótica de Beatriz, nem a cisão do tempo entre a Idade Média e o Renascimento, a força que impeliu os portugueses. A ser alguma coisa foi esse apelo de diluição no mar em busca de uma rota, ou na construção de uma rota (busca e construção neste caso vai dar no mesmo, daí a tónica na “experiência”). Essa busca de rota, como constituição do ser-se português, provavelmente foi adquirida no Dilúvio. Não sabemos até que ponto as memórias nos ficam incrustadas nos genes (um chip não é nada face ao sangue). Essa busca de rota parte da ignorância de não se saber ao certo por onde ir. Dante e Cervantes possuem roteiros “à priori”. No primeiro, o imaginário é adquirido via catolicismo com um sentimento de culpa exacerbado, bem como o de pecado, o que é o mesmo. No segundo, o roteiro, é o próprio espírito renascentista que o encaminha para a Idade Média como coisa “outra” e perdida. O seu roteiro é binário. A aventura lusitana parte da esperança e da incerteza. Não existem “à priori” demasiado materiais. Os únicos “à priori” são essa deusa que nunca foi mulher carnal bem como todas as épocas que este povo concentrou em si, desde o dilúvio, como memória difusa e como apelo para regressar ao mar em busca de “algo” maravilhoso. E esse algo de maravilhoso é efectivamente encontrado. Essa é a marca de génio de Camões. Não está preocupado nem com a salvação (apenas com a salvação da diluição através da descoberta ou construção – as obras ”libertam da lei da morte” -  de uma rota-espaço- ao longo do tempo) como Dante, nem com o tempo como ilusão (como Cervantes) e essa despreocupação é aquilo vai fazer com que ambos, espaço e tempo sejam dados a conhecer pela deusa ao povo português como deve ser conhecido: com a Máquina do Mundo, ou seja, espaço e tempo indissociáveis. O problema do gnosticismo actual, afirmamos de novo, é confundir isto tudo. Tal como a ciência se confunde na fragmentação das certezas. Falar-se em gnosticismo ou em ciência é hoje a mesmíssima coisa e a opinião diverge apenas devido ao ângulo de visão. O bom, o mal e o assim-assim, funcionam como tábuas de salvação momentâneas num mar caótico onde nem sequer chega a existir diluição porque, de ambos os lados, já se partem com “a prioris” materialistas ou materiais. Sendo o “a priori” português, fora do espaço e do tempo isso torna as coisas muito mais interessantes. Da mesma forma de que quando falamos actualmente em ciência temos de perguntar “de que ciência estamos a falar?”, o mesmo se passa com o gnosticismo, “de que gnosticismo estamos a falar?”. E começam a surgir as respostas mais variadas e mesmo divergentes, por vezes. O caso português é atípico na sua base. Na sua parte mais material, existe o “apelo do mar”, da “saída de si”, como memória de um dilúvio, de uma forma de vida que desapareceu nos abismos do oceano, a tal ponto que, mesmo materialmente, esse apelo de regresso ao mar para o estabelecimento de uma rota é difuso o suficiente para não ser totalmente palpável ou material: o apelo é, na sua essência, misterioso e tem o seu quê de etéreo.  É nesse instante que toca a deusa e que ela compreende o povo português. O apelo português e a deusa são feitos da mesma matéria que é imaterial e material ao mesmo tempo. Esse “toque” é aquilo que é mais difícil de compreender pelos outros povos. Ele está na palavra saudade que se confunde, em mentes mais simplistas, com o fado cantado, embora o fado cantado seja o lamento ininterrupto do dilúvio. Uma prece permanente para o não afogamento e corremos o risco de, com ele, andarmos sempre de xaile negro… como negro ficou o céu quando caíram as águas (corremos o risco de nos afogarmos em lágrimas) e corremos também o risco de o povo português se confundir com isso o que seria, no mínimo absurdo. O fado é apenas um aspecto da Saudade e muito restrito no tempo.  Um entre muitos. Com esta moda dos gnosticismos corremos também o mesmo risco que corre a ciência: que venha algo de muito pequenino, como um vírus e toda a estrutura fica em risco. O gnosticismo é equivalente a “conhecimento”. E, a palavra em si, no fundo, não quer dizer nada. Podemos conhecer tudo, como a ciência, o bem, o mal e o assim-assim, já dizia a Bíblia. O gnosticismo ou conhecimento é apenas um dos aspectos da Saudade, apenas um. O aspecto mais importante da Saudade é a tentativa do povo português de sair dela em direcção a qualquer coisa onde já não a sintam. E a deusa, aí, distraída no seu passeio sempre matinal, repara, pára e concede.  Não há nada de Católico nisto, nem nada de Medieval. São dois factores absolutamente alheios a esta estranha relação que o povo tem com a sua deusa, mãe do mar, mãe de mar, mãe sobre o mar, mãe e mar, mater e matriz, a única capaz de nos levar a fazer uma rota, estabelecida com e nos quatro cantos da terra. As guerras absurdas sobre a “interpretação da quinta da Regaleira”, parece que têm em vista o esquecimento da figura mais importante desse complexo arquitéctónico. A menina que se ergue acima de tudo (e se parece soltar até da própria pedra) com pombas no regaço. As mesmas pombas soltas em alto-mar aquando as festas do Espírito Santo. Aquela que se ergue acima das montanhas e que “oferece” a libertação. O ponto central da Regaleira de que se fala e escreve “por alto”, sem efectivamente se olhar para o alto para a ver, e ao qual nunca se dá a devida importância. A menina-neta, o futuro. E, aqui para nós. O único possível. Em vez disso perdem-se as interpretações do cenário que não é mais do que um cenário de uma ópera, onde deuses se elevam em patamares e poços invocam à força universos dantescos, cenas de caça e um anjo que ri ao pés da cama enquanto anota os sonhos, uns atrás dos outros… de maneira a que todos se percam neles, nas ciências, nos gnosticismos, nas alquimias soporíferas, nas “Beatrizes” beatas, nos catolicismos baratos, nos ritos que imaginam, nas espadas que disferem e rasgam camisas em duelos, magoando-se e ferindo-se.  A grande lição deixada em pedra no século XIX, o século mais contrastante de que há memória com forças de tensão entre um “passado imaginado” e um “progresso imaginado”. As épocas e os presságios ficam sempre inscritos nas pedras. Enquanto andarmos divididos entre Dante e Cervantes, não lemos Camões, ou antes, lemos Camões com o coração e com os olhos de Dante e de Cervantes o que é desarmónico e nada tem a ver com ele.


Sem comentários:

Enviar um comentário