A palavra “gnóstico” está para o universo esotérico como a
palavra ciência está para a actual época. Serve para tudo. Para o bem, para o
mal e para o assim-assim. Falar de conhecimento é um cliché neo-vanguardista
que pode ir desde o simples concurso na televisão com perguntas e alternativas
de quatro respostas com uma correcta apenas, até aos mundos mais invisíveis e
de difícil alcance. Na verdade, Dante, estava sobretudo preocupado com a Igreja
católica e com o destino dos bispos, se estavam mais ou menos acima no círculo
infernal que ele mesmo criou, bem como com os políticos. O seu interesse por Beatriz
não passa do facto de produzir energias sexuais estimuladas por essa mulher
distante e aproveitadas para fazer a obra. Francamente, não vejo amor nenhum
por Beatriz. Vejo antes, Eros a comandar toda a operação criativa em função de
uma Igreja que sempre recusou esse deus e o tomou como maldito. Não falo do
estilo, da língua ou dos poemas, falo do substracto. No fim, rende-se à Igreja
Católica como bom italiano. Já Cervantes, parece ficar num limbo gótico tardio.
No fundo, o seu entendimento da Idade Média é o de que era uma época cheia de
fantasia. Cervantes é um moderno cujo enaltecimento medieval é apenas uma
máscara que dissimula o seu fascínio por uma época “esclarecida” e, para isso,
produz um hiato artificial entre a imaginação e a realidade. O maniqueísmo
vence como força motora para a obra e todos sabemos que o maniqueísmo tem como
base, Eros, exactamente o mesmo deus, com os polos atraindo-se e repelindo-se.
Temos nós por aqui
Camões, o navegador. E aqui o caso é outro. É provável que Camões fosse cristão
novo, já alguns o afirmaram. Não sabemos se isso conta para o caso ou não. A realidade
é que a sua grande preocupação não foi a Igreja Católica, nem a Idade Média,
nem o Renascimento. A sua grande preocupação foi para com o povo português como
se este fosse, em si, um caso único, situado para além da religião e do tempo. E
é. Na sua gesta, o povo português está acima da época, transportando-as todas
em barcos. As guerras medievais, as mulheres distantes que ficaram à beira-mar,
as outras encontradas nas Ilhas Afortunadas. Há uma dispersão muito própria,
como disperso é o próprio mar. E, nessa dispersão, há uma rota em direcção à
recompensa concedida pela deusa. A deusa não é nem uma época, nem uma mulher
que morreu e que ficou no céu a servir de guia em direcção à Igreja Católica
como o é Beatriz. A deusa eleva-se acima das montanhas do espaço e do tempo e
recompensa os navegadores com o conhecimento que nada mais é do que a visão da essência
das coisas. Não foi nem a matriz erótica de Beatriz, nem a cisão do tempo entre
a Idade Média e o Renascimento, a força que impeliu os portugueses. A ser
alguma coisa foi esse apelo de diluição no mar em busca de uma rota, ou na construção
de uma rota (busca e construção neste caso vai dar no mesmo, daí a tónica na “experiência”).
Essa busca de rota, como constituição do ser-se português, provavelmente foi adquirida
no Dilúvio. Não sabemos até que ponto as memórias nos ficam incrustadas nos genes
(um chip não é nada face ao sangue). Essa busca de rota parte da ignorância de
não se saber ao certo por onde ir. Dante e Cervantes possuem roteiros “à priori”.
No primeiro, o imaginário é adquirido via catolicismo com um sentimento de
culpa exacerbado, bem como o de pecado, o que é o mesmo. No segundo, o roteiro,
é o próprio espírito renascentista que o encaminha para a Idade Média como
coisa “outra” e perdida. O seu roteiro é binário. A aventura lusitana parte da
esperança e da incerteza. Não existem “à priori” demasiado materiais. Os únicos
“à priori” são essa deusa que nunca foi mulher carnal bem como todas as épocas
que este povo concentrou em si, desde o dilúvio, como memória difusa e como
apelo para regressar ao mar em busca de “algo” maravilhoso. E esse algo de
maravilhoso é efectivamente encontrado. Essa é a marca de génio de Camões. Não
está preocupado nem com a salvação (apenas com a salvação da diluição através
da descoberta ou construção – as obras ”libertam da lei da morte” - de uma rota-espaço- ao longo do tempo) como
Dante, nem com o tempo como ilusão (como Cervantes) e essa despreocupação é aquilo
vai fazer com que ambos, espaço e tempo sejam dados a conhecer pela deusa ao
povo português como deve ser conhecido: com a Máquina do Mundo, ou seja, espaço
e tempo indissociáveis. O problema do gnosticismo actual, afirmamos de novo, é
confundir isto tudo. Tal como a ciência se confunde na fragmentação das
certezas. Falar-se em gnosticismo ou em ciência é hoje a mesmíssima coisa e a
opinião diverge apenas devido ao ângulo de visão. O bom, o mal e o assim-assim,
funcionam como tábuas de salvação momentâneas num mar caótico onde nem sequer
chega a existir diluição porque, de ambos os lados, já se partem com “a prioris”
materialistas ou materiais. Sendo o “a priori” português, fora do espaço e do
tempo isso torna as coisas muito mais interessantes. Da mesma forma de que
quando falamos actualmente em ciência temos de perguntar “de que ciência
estamos a falar?”, o mesmo se passa com o gnosticismo, “de que gnosticismo estamos
a falar?”. E começam a surgir as respostas mais variadas e mesmo divergentes,
por vezes. O caso português é atípico na sua base. Na sua parte mais material,
existe o “apelo do mar”, da “saída de si”, como memória de um dilúvio, de uma
forma de vida que desapareceu nos abismos do oceano, a tal ponto que, mesmo
materialmente, esse apelo de regresso ao mar para o estabelecimento de uma rota
é difuso o suficiente para não ser totalmente palpável ou material: o apelo é, na
sua essência, misterioso e tem o seu quê de etéreo. É nesse instante que toca a deusa e que ela
compreende o povo português. O apelo português e a deusa são feitos da mesma
matéria que é imaterial e material ao mesmo tempo. Esse “toque” é aquilo que é
mais difícil de compreender pelos outros povos. Ele está na palavra saudade que
se confunde, em mentes mais simplistas, com o fado cantado, embora o fado
cantado seja o lamento ininterrupto do dilúvio. Uma prece permanente para o não
afogamento e corremos o risco de, com ele, andarmos sempre de xaile negro… como
negro ficou o céu quando caíram as águas (corremos o risco de nos afogarmos em
lágrimas) e corremos também o risco de o povo português se confundir com isso o
que seria, no mínimo absurdo. O fado é apenas um aspecto da Saudade e muito restrito
no tempo. Um entre muitos. Com esta moda
dos gnosticismos corremos também o mesmo risco que corre a ciência: que venha algo
de muito pequenino, como um vírus e toda a estrutura fica em risco. O
gnosticismo é equivalente a “conhecimento”. E, a palavra em si, no fundo, não
quer dizer nada. Podemos conhecer tudo, como a ciência, o bem, o mal e o assim-assim,
já dizia a Bíblia. O gnosticismo ou conhecimento é apenas um dos aspectos da
Saudade, apenas um. O aspecto mais importante da Saudade é a tentativa do povo
português de sair dela em direcção a qualquer coisa onde já não a sintam. E a
deusa, aí, distraída no seu passeio sempre matinal, repara, pára e concede. Não há nada de Católico nisto, nem nada de
Medieval. São dois factores absolutamente alheios a esta estranha relação que o
povo tem com a sua deusa, mãe do mar, mãe de mar, mãe sobre o mar, mãe e mar,
mater e matriz, a única capaz de nos levar a fazer uma rota, estabelecida com e
nos quatro cantos da terra. As guerras absurdas sobre a “interpretação da quinta
da Regaleira”, parece que têm em vista o esquecimento da figura mais importante
desse complexo arquitéctónico. A menina que se ergue acima de tudo (e se parece
soltar até da própria pedra) com pombas no regaço. As mesmas pombas soltas em
alto-mar aquando as festas do Espírito Santo. Aquela que se ergue acima das montanhas
e que “oferece” a libertação. O ponto central da Regaleira de que se fala e
escreve “por alto”, sem efectivamente se olhar para o alto para a ver, e ao
qual nunca se dá a devida importância. A menina-neta, o futuro. E, aqui para
nós. O único possível. Em vez disso perdem-se as interpretações do cenário que
não é mais do que um cenário de uma ópera, onde deuses se elevam em patamares e
poços invocam à força universos dantescos, cenas de caça e um anjo que ri ao
pés da cama enquanto anota os sonhos, uns atrás dos outros… de maneira a que
todos se percam neles, nas ciências, nos gnosticismos, nas alquimias soporíferas,
nas “Beatrizes” beatas, nos catolicismos baratos, nos ritos que imaginam, nas
espadas que disferem e rasgam camisas em duelos, magoando-se e ferindo-se. A grande lição deixada em pedra no século XIX,
o século mais contrastante de que há memória com forças de tensão entre um “passado
imaginado” e um “progresso imaginado”. As épocas e os presságios ficam sempre
inscritos nas pedras. Enquanto andarmos divididos entre Dante e Cervantes, não
lemos Camões, ou antes, lemos Camões com o coração e com os olhos de Dante e de
Cervantes o que é desarmónico e nada tem a ver com ele.
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