sábado, 10 de outubro de 2020

Vocação e Destino


 

Pus-me a ler o prefácio que Ananda K. Coomaraswamy escreveu para  Related Arts de Mary Noreen e, às primeiras páginas (são poucas, vinte), não estranhei nada. O pensamento acerca da natureza da arte como algo tradicional versus este pensamento moderno sobre ela é o ar que respiro. Podemos ser frutos da nossa época e desta cultura enraizada nas terras pantanosas do individualismo mas, por vezes, podemos ser fruto de outra sem sabermos e só descobrimos que não somos loucos mais tarde. Quando Dalila P. da Costa, com o seu olhar puro sobre as coisas, observou a minha pintura afirmou, quase imediatamente, que eu era indiana. E talvez seja se isso significar que nasci com a marca artística e que não tive que a adquirir com esforço. A vocação funciona e é imprescindível para estas coisas da arte. O problema é que a vocação deixou de existir numa conversa normal. O termo é, em si, considerado bafiento, coisa do passado, uma espécie de condenação sem se ter culpa. Bem lá no fundo, aquilo que a nossa educação nos diz é que escolhemos a nossa vocação o que é o oposto da vocação. Também há quem confunda vocação com destino, mas são duas coisas diferentes. Na verdade, quem nasce com uma vocação pode ter um destino que nada tem a ver com a sua vocação. Continua vivo e a respirar e a cumprir ou antes, a pensar que está a cumprir um destino. E está. Se o destino for considerado um caminho. Um caminho onde a sua vocação não está presente, ou porque não pode ou porque nunca a descobriu. Em última instância todos cumprimos o nosso destino, no entanto, nem todos se cumprem na sua vocação e daí que ponha sempre muitas reticências relativamente ao chamado “destino”. Quantas vezes ele serve para justificar qualquer acção. Qualquer uma. E nunca serve para justificar uma vocação. Na verdade, é a vocação que justifica o destino. Apenas isso. É muito curioso que a vocação esteja ligada às artes e às coisas da espiritualidade. Como se a vocação fosse superior sobretudo construtiva. E é. Como é superior e construtiva, foi retirada do nosso vocabulário. Em vez disso apareceu a palavra “escolha”. A palavra escolha significa que se escolhe aleatoriamente ou não por entre determinados elementos. Há um caldo inicial e escolhe-se isto ou aquilo. A liberdade é total. O resultado é a existência de muitos destinos e de poucas vocações e isto passa-se porque a vocação tem muito mais a ver com a audição do que com a visão. Quando pinto o elemento “audível” é muito mais importante do que não parece. Digo “não parece” porque esse elemento não se vê. Eu ouço a pintura. Escuto-a, antes, durante e depois de a fazer. A “escolha” implica muito mais a visão. Escolhemos entre o que vimos, mas não escolhemos aquilo que ouvimos. O som é franco, a vista é fraca sem o som. É por isso que qualquer pintura nasce do que se ouve e vem cheia de palavras. É por isso que não havia distinção entre escrever e pintar. Dantes. E é por isso também que o som com que se pinta é um equivalente ao início da Manifestação. O som vem directo, surge puro, é tão essencial como um qualquer arquétipo de Platão quando ecoa na escuridão do cosmos. Aliás, toda a vibração desses arquétipos visuais é audível. Nada que Pitágoras não afirmasse. A mentalidade contemporânea está ausente de todos estes valores (isto são, são valores e não essa coisa transitória que é a moral) e, por isso, a arte é desvalorizada, por um lado, sobrevalorizada, por outro, no que toca ao aspecto monetário, e sem valor no que respeita à maioria das “obras” que por aí se vêem. Na maioria dos casos, os “artistas” cumprem o seu destino, mas não cumprem a sua vocação. É a inversão das coisas. É o destino a justificar a suposta vocação e não a vocação a justificar o destino. Por isso, quando me falam em destino, desconfio. Bastante. E ou me explicam as coisas como deve de ser ou então fico na mesma.

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