E lá foi a carquejar pela estrada fora, a galinha. Primeiro olhou-me
com os olhos muito espantados pois nunca tinha visto nem uma pomba nem um
pavão, sendo eu ambos, mudando conforme a luz do sol esteja a iluminar o meu
corpo, depois pôs-se a dizer coisas porque pensava que sabia coisas. Mais do
que isso. A galinha disse coisas e pensava saber coisas suficientes para
brincar. Ora, nem uma coisa nem outra. Nem sabia coisas, quanto mais brincar
com as coisas e, ainda muito menos, conseguir o meu estatuto de pomba e pavão
na mesma pessoa. De maneira que, já em grande fúria, disse-me que não deveria
passar por ali. Que aquele caminho era o percurso dela. E só dela. A galinha
estava com a mania que era a dona do percurso que ia da montanha ao vale, ou da
montanha ao monte, como disse o poeta. O problema é que ela não conhecia os
desvios. Os atalhos disfarçados de desvios, direi antes. E, um deles, desses
desvios ou atalhos, se assim poderemos dizer, estava nesta estranha capacidade
de se conseguir ser pomba e pavão em simultâneo, sem ser nenhum dos dois, no
íntimo. No íntimo apenas uma ave abstracta parecia esvoaçar por onde queria. A galinha
tentava captar todos os meus gestos. Como se tivesse a ver alguma coisa com
isso. E tinha dias. De vez em quando, passava por mim furiosa. Parecia uma
galinha tonta, nessas alturas. Noutras, até dançava no meio da rua. Só para eu
ver que sabia dançar. Pois é. Mas não sabe. Parece na mesma uma galinha tonta. Outras
vezes lançava sobre mim os pintos que considerava macacos amestrados. Lá vinham
eles a fazer macaquices e a imitar a galinha. Mas não lhes servia de nada. O pavão
ou a pomba, conforme a luz do sol, continuava o seu caminho independentemente das pantomimas e da galinha tonta que persistia em afirmar ser dona do
percurso. Não há nada como uma fábula para mostrar o caminho, os desvios e
atalhos, e toda a fauna louca que por lá passa e que pensa que sabe coisas sobre
aquela que, passando não passa e não passando, passa pois, sendo pavão, passa
como pavão, mas não como pomba e, sendo pomba, passa como pomba, mas não como
pavão e é dessa forma que a galinha tonta não percebe que ali não passa nem
pomba nem pavão em simultâneo e que, como o ser é pleno e não fica a metade do
que é, tenta, em vão, perceber quem lá passa, carquejando que aquele caminho é
só dela, num acto tresloucado. É caso para dizer que a galinha vê coisas. Mas nunca
vê na totalidade. Porque não voa. Dá uns pulinhos aqui e ali. Foge e dança
tonta para os galos, mas pouco mais do que isso. Na verdade, o caminho sempre
foi meu porque me foi concedido. Dei com ele naturalmente. Como quem se perde e
se acha. Foi assim que descobri tantos caminhos, tantos quantos os raios de sol
que sou. Nunca reivindiquei nenhum raio de sol. Foram nascendo, como penas,
leves e capazes de atravessarem as tormentas. E a galinha, engana-se, quando
pensa que só conheço aquele caminho do qual se julga dona. Eu sou o sol que me
ilumina e lhe concede a visão do pavão e da pomba. Eu sou o sol nascente no
Horizonte. Que nasce Oblíquo. Que ascende na Vertical. Assim, sou todas as
distâncias e caminhos que a galinha não conhece, pois só conhece a recta da sua
rua. A linha do adormecimento. Onde dorme e sonha com pombas e pavões. Onde oscila
as asas e julga dançar. Onde Deus pôs um ovo para que fosse galinha e nada mais
do que galinha, como condição da sua vida obscura, num galinheiro escurecido
pelo tempo, apenas acessível aos homens com fome de corpo e não de Espírito.
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
Interlúdio Interior
(Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)
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