sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Interlúdio Interior


 (Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)


E lá foi a carquejar pela estrada fora, a galinha. Primeiro olhou-me com os olhos muito espantados pois nunca tinha visto nem uma pomba nem um pavão, sendo eu ambos, mudando conforme a luz do sol esteja a iluminar o meu corpo, depois pôs-se a dizer coisas porque pensava que sabia coisas. Mais do que isso. A galinha disse coisas e pensava saber coisas suficientes para brincar. Ora, nem uma coisa nem outra. Nem sabia coisas, quanto mais brincar com as coisas e, ainda muito menos, conseguir o meu estatuto de pomba e pavão na mesma pessoa. De maneira que, já em grande fúria, disse-me que não deveria passar por ali. Que aquele caminho era o percurso dela. E só dela. A galinha estava com a mania que era a dona do percurso que ia da montanha ao vale, ou da montanha ao monte, como disse o poeta. O problema é que ela não conhecia os desvios. Os atalhos disfarçados de desvios, direi antes. E, um deles, desses desvios ou atalhos, se assim poderemos dizer, estava nesta estranha capacidade de se conseguir ser pomba e pavão em simultâneo, sem ser nenhum dos dois, no íntimo. No íntimo apenas uma ave abstracta parecia esvoaçar por onde queria. A galinha tentava captar todos os meus gestos. Como se tivesse a ver alguma coisa com isso. E tinha dias. De vez em quando, passava por mim furiosa. Parecia uma galinha tonta, nessas alturas. Noutras, até dançava no meio da rua. Só para eu ver que sabia dançar. Pois é. Mas não sabe. Parece na mesma uma galinha tonta. Outras vezes lançava sobre mim os pintos que considerava macacos amestrados. Lá vinham eles a fazer macaquices e a imitar a galinha. Mas não lhes servia de nada. O pavão ou a pomba, conforme a luz do sol, continuava o seu caminho independentemente das pantomimas e da galinha tonta que persistia em afirmar ser dona do percurso. Não há nada como uma fábula para mostrar o caminho, os desvios e atalhos, e toda a fauna louca que por lá passa e que pensa que sabe coisas sobre aquela que, passando não passa e não passando, passa pois, sendo pavão, passa como pavão, mas não como pomba e, sendo pomba, passa como pomba, mas não como pavão e é dessa forma que a galinha tonta não percebe que ali não passa nem pomba nem pavão em simultâneo e que, como o ser é pleno e não fica a metade do que é, tenta, em vão, perceber quem lá passa, carquejando que aquele caminho é só dela, num acto tresloucado. É caso para dizer que a galinha vê coisas. Mas nunca vê na totalidade. Porque não voa. Dá uns pulinhos aqui e ali. Foge e dança tonta para os galos, mas pouco mais do que isso. Na verdade, o caminho sempre foi meu porque me foi concedido. Dei com ele naturalmente. Como quem se perde e se acha. Foi assim que descobri tantos caminhos, tantos quantos os raios de sol que sou. Nunca reivindiquei nenhum raio de sol. Foram nascendo, como penas, leves e capazes de atravessarem as tormentas. E a galinha, engana-se, quando pensa que só conheço aquele caminho do qual se julga dona. Eu sou o sol que me ilumina e lhe concede a visão do pavão e da pomba. Eu sou o sol nascente no Horizonte. Que nasce Oblíquo. Que ascende na Vertical. Assim, sou todas as distâncias e caminhos que a galinha não conhece, pois só conhece a recta da sua rua. A linha do adormecimento. Onde dorme e sonha com pombas e pavões. Onde oscila as asas e julga dançar. Onde Deus pôs um ovo para que fosse galinha e nada mais do que galinha, como condição da sua vida obscura, num galinheiro escurecido pelo tempo, apenas acessível aos homens com fome de corpo e não de Espírito.

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