Ainda me converto ao hinduísmo e me vou embora daqui. Ainda me
converto ao hinduísmo e vou-me embora daqui. Farto-me de repetir esta frase
como uma espécie de ameaça contra um inimigo invisível. Onde vivo, dantes, há
muito tempo, esta zona, chamava-se Quinta do Anjo. Uma quinta onde vivia um
anjo. Provavelmente fartou-se e foi para a Índia. Depois, veio o Inverno.
Janeiro. E assim ficou, um Inverno permanente. Como é que sei? Sei lá como é
que sei. Nem quero saber como é que sei. Não utilizei meios ilícitos para saber
isto. Foi a memória que irrompeu porque quis. A memória e os sonhos são
parecidos nas suas aparições. O que sei é que as demandas solitárias, por
vezes, me parecem intragáveis. Fatigantes. Exasperantes. Retiro-me a olhar para
as coisas estupefacta. Nem cheguei a estar no mundo, por ele andei sempre
estupefacta. Um dia um médico perguntou-me porque tinha os olhos tão abertos. Respondi-lhe
que andava espantada com o mundo. Ele, que era Conde, um médico Conde, riu-se
com gosto e disse que me compreendia perfeitamente. O Conde e eu, num
consultório a rirmo-nos com gosto do nosso próprio olhar e da nossa falta de
jeito para compreender o absurdo. Já partiu, esse médico. Era um velho Conde na
altura. Olhou para as minhas análises e não viu nada. “Não tem nada”. O velho
tique dos médicos, à procura das doenças. Não tinha nada a não ser “falta de
adaptação ao absurdo”, podia ter acrescentado, uma vez que ele também sofria do
mesmo. E assim foi o diagnóstico que se mantém até hoje. O Inverno mantém-se e o
anjo da quinta foi para a India, o esperto. Deixou-me aqui a chamar por ele. Ou
a fazer as vezes dele. Que lata! Se eu fosse um anjo, não estava aqui estava na
Índia a subir degraus da escada de Jacob. Agora aqui? O que se passa aqui a não
ser as estações do ano? Umas atrás doutras, sem muito para contar. Sem muito
para dizer. Em terras de anjo, num só dia, chega a haver quatro estações que
disfarçam o Inverno que os ciclos são, sem possibilidade de espiralar. É preciso muita paciência para não perdermos a
paciência. É certo que há o mar, mas o mar não é todo ele uma promessa de Índia?
O mar é uma provocação constante, com as ondas a dançarem o fandango à beira-mar.
E os pássaros que me vêm bater no vidro da janela a dizer coisas. “Entrem,
entrem. Sentem-se. Vamos tomar chá”, bem lhes vou dizendo. Mas eles debandam,
desinteressados. São como as ondas do mar, pousam na janela a provocar, com o
seu voo simpático. Que querem, afinal? Já os ouvi dizer que querem a minha
opinião sobre a política nacional. A política nacional? Querem que desça ao
nível do chinelo, ao nível da política Nacional. O meu médico é Conde. Conde! Estão
a ouvir? Os democratas nunca suportaram aristocratas. E ainda menos os anjos. Opõem-se
às hierarquias e depois vem-me pedir contas, satisfações, opiniões. Mas eles
têm tudo isso às mãos cheias. Não há um democrata leigo. Nunca encontrei
nenhum. São todos conhecedores de tudo e têm a Panaceia Universal nas mãos que
vão vender aos mercados internacionais. Um dia destes vou para a Índia e de lá
não saio. Garanto!
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
Índia
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