quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Índia


 

Ainda me converto ao hinduísmo e me vou embora daqui. Ainda me converto ao hinduísmo e vou-me embora daqui. Farto-me de repetir esta frase como uma espécie de ameaça contra um inimigo invisível. Onde vivo, dantes, há muito tempo, esta zona, chamava-se Quinta do Anjo. Uma quinta onde vivia um anjo. Provavelmente fartou-se e foi para a Índia. Depois, veio o Inverno. Janeiro. E assim ficou, um Inverno permanente. Como é que sei? Sei lá como é que sei. Nem quero saber como é que sei. Não utilizei meios ilícitos para saber isto. Foi a memória que irrompeu porque quis. A memória e os sonhos são parecidos nas suas aparições. O que sei é que as demandas solitárias, por vezes, me parecem intragáveis. Fatigantes. Exasperantes. Retiro-me a olhar para as coisas estupefacta. Nem cheguei a estar no mundo, por ele andei sempre estupefacta. Um dia um médico perguntou-me porque tinha os olhos tão abertos. Respondi-lhe que andava espantada com o mundo. Ele, que era Conde, um médico Conde, riu-se com gosto e disse que me compreendia perfeitamente. O Conde e eu, num consultório a rirmo-nos com gosto do nosso próprio olhar e da nossa falta de jeito para compreender o absurdo. Já partiu, esse médico. Era um velho Conde na altura. Olhou para as minhas análises e não viu nada. “Não tem nada”. O velho tique dos médicos, à procura das doenças. Não tinha nada a não ser “falta de adaptação ao absurdo”, podia ter acrescentado, uma vez que ele também sofria do mesmo. E assim foi o diagnóstico que se mantém até hoje. O Inverno mantém-se e o anjo da quinta foi para a India, o esperto. Deixou-me aqui a chamar por ele. Ou a fazer as vezes dele. Que lata! Se eu fosse um anjo, não estava aqui estava na Índia a subir degraus da escada de Jacob. Agora aqui? O que se passa aqui a não ser as estações do ano? Umas atrás doutras, sem muito para contar. Sem muito para dizer. Em terras de anjo, num só dia, chega a haver quatro estações que disfarçam o Inverno que os ciclos são, sem possibilidade de espiralar.  É preciso muita paciência para não perdermos a paciência. É certo que há o mar, mas o mar não é todo ele uma promessa de Índia? O mar é uma provocação constante, com as ondas a dançarem o fandango à beira-mar. E os pássaros que me vêm bater no vidro da janela a dizer coisas. “Entrem, entrem. Sentem-se. Vamos tomar chá”, bem lhes vou dizendo. Mas eles debandam, desinteressados. São como as ondas do mar, pousam na janela a provocar, com o seu voo simpático. Que querem, afinal? Já os ouvi dizer que querem a minha opinião sobre a política nacional. A política nacional? Querem que desça ao nível do chinelo, ao nível da política Nacional. O meu médico é Conde. Conde! Estão a ouvir? Os democratas nunca suportaram aristocratas. E ainda menos os anjos. Opõem-se às hierarquias e depois vem-me pedir contas, satisfações, opiniões. Mas eles têm tudo isso às mãos cheias. Não há um democrata leigo. Nunca encontrei nenhum. São todos conhecedores de tudo e têm a Panaceia Universal nas mãos que vão vender aos mercados internacionais. Um dia destes vou para a Índia e de lá não saio. Garanto!


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