Há um certo ambiente que quase já
não existe. O da criação. O da criação nítida e assertiva. Vi dois filmes nos
últimos anos cujos argumentos não se deixaram enredar pelas malhas filosóficas
estéreis. O primeiro foi um filme belga de Roland Joffé, com o título “Vatel” e
o segundo com o título “A Little Chaos” (em português com o título “Nos Jardins
do Rei”) realizado por Alan Rickman e ambos têm como tema central a Arte. E
ambos possuem um determinado ambiente onde só alguns podem hoje nadar e
entender. Normalmente só vemos as obras de arte e raramente vemos para além dela,
a sua própria elaboração. Os documentários sobre arte procuram mostrar os
artistas por detrás das obras e certas leituras das mesmas, tanto ao nível da
técnica como ao nível da temática. Resultam sempre um pouco técnicos e frios
esses documentários. Por seu lado, as séries e os filmes sobre os artistas são
sempre romantizadas e intensas para poderem conquistar algum público. A arte em
si, raramente aparece. Nos dois filmes que referi a arte encontra-se sobretudo
num determinado ambiente e é lá que deve estar em primeiro lugar. Existe um
impulso natural em direcção à perfeição, tanto por parte do personagem Vatel
(interpretado por Gerdard Depardieu) que organiza um banquete no primeiro filme
supracitado, como por parte da personagem feminina e principal do segundo filme
mencionado, interpretada por Kate Winslet, personificando uma desenhadora de
jardins. Caminham ambos pelos mesmo trilhos de uma arte efémera (um jardim é
efémero porque está sempre em movimento). No primeiro filme a arte preenche
todos os gestos do personagem principal, no segundo, a arte aparece como
horizonte último onde reina mais do que o símbolo: a materialização celeste.
Existem coisas que, de facto, não podem ser descritas (nem sequer num texto
para um blogue) porque
pertencem ao domínio do éter, da essência das coisas. Ninguém consegue
descrever a essência de um perfume. Podemos dizer que é frutado, amadeirado,
amendoado, etc… Mas ninguém descreve a essência das coisas. O éter é
indiscritível, mas é apreensível. Às vezes dá-me vontade de me dedicar ao
silêncio como consequência natural do indescritível e limitar-me a ver o mundo,
silenciosamente, com os olhos alterados pelo facto de ter experimentado certas
vivências que estão implantadas na alma. E tenho saudades de outra personagem
que poderia ser: com vastas paisagens por recriar, com vastos banquetes para organizar.
O ambiente deste planeta não permite, por agora, a expansão do que a arte é.
Está demasiado desfigurado e as almas são demasiado jovens. E ninguém entende
nada do que tento dizer. Para isso seria necessário o silêncio interior que
escuta. Vivo silenciosamente magoada em busca do belo. Porque, como já escrevi,
o belo, quando é Belo, encerra em si a Sabedoria e a Graça (podemos dizer que a
Sabedoria é bela e cheia de Graça ou que a Graça é Sábia. No entanto, é mais
fácil (e entende-se melhor) quando dizemos que a Beleza encerra em si a
Sabedoria e a Graça. Cada vez me identifico menos com este planeta que está
cada vez mais longe da sua essência. A pobreza interior grassa sem graça por
todos os campos e confunde-se a capacidade de falar com a capacidade de criar
com uma facilidade estonteante. E confundem-se todas as imagens com arte. Na
verdade, já poucos conhecem o processo artístico em si mesmo, com aquilo que
tem de cosmogonia. O cosmos passou a ser algo de utilitário, de qualquer coisa
a explorar como se tratasse de “mais uma imagem”, quando o cosmo é o nosso
lugar no mundo… daí que dantes o homem fosse entendido como microcosmos. Mesmo
no mundo esotérico e filosófico encontrei, sobretudo, cabeças baralhadas com
leituras sucessivas do que nunca entenderão. Não digo isto com um sentimento de
superioridade, mas sim com um sentimento de inferioridade uma vez que eles são
mais vistosos e maiores em número. Às vezes pergunto-me porque nasci assim, e
porque me foram dadas determinadas experiências tão de acordo com a minha alma
se não consigo comunicar o que seja. Mas talvez não seja para comunicar e seja
para silenciar. Talvez tenha uma espécie de “complexo de serviço” que me diz
que tudo o que me é dado tenho que dar. Mas sei que isso não é verdade. Não
pode ser. É uma espécie de complexo provindo de uma cultura que se quer
“caritativa” para que se possa “salvar” a “alma”. Na verdade, aquilo que a uns
salva a alma a outros só pode dificultar essa suposta salvação. Ou antes, para
alguns, é necessário o consolo de alguém que lhes diz que a sua alma “está
salva” ou “a caminho da salvação”. Talvez seja esta a marca cultural mais funda
aqui no Ocidente e, por ser uma marca cultural, é também uma marca “social”, o
que não deixa de constituir um estorvo para quem nasceu para criar, ou seja,
para sair da sociedade. Um criador nunca está em sociedade, está sempre no seu
casulo a criar ou a chorar e a gritar quando não pode criar. Tenho saudades de
certos ambientes que já não existem. Talvez seja uma tradicionalista inveterada
e tenha nascido simplesmente assim: com memórias e saberes que não são desta
época. Quanto aos filmes que mencionei, esses sim, mostram um determinado
ambiente que reconheço. Reconheci logo. E fiquei contente. No entanto, nem sei
se aqueles que realizaram os filmes souberem o que fizerem. Se calhar fizeram
inconscientemente ou foram encaminhados por mãos divinas… como um sopro
invisível. Mas sei que, quando Vatel coloca aquela flor azul, sabe
perfeitamente o que está a fazer.
domingo, 18 de outubro de 2020
A Arte e a Flor Azul
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