domingo, 18 de outubro de 2020

A Arte e a Flor Azul


 

Há um certo ambiente que quase já não existe. O da criação. O da criação nítida e assertiva. Vi dois filmes nos últimos anos cujos argumentos não se deixaram enredar pelas malhas filosóficas estéreis. O primeiro foi um filme belga de Roland Joffé, com o título “Vatel” e o segundo com o título “A Little Chaos” (em português com o título “Nos Jardins do Rei”) realizado por Alan Rickman e ambos têm como tema central a Arte. E ambos possuem um determinado ambiente onde só alguns podem hoje nadar e entender. Normalmente só vemos as obras de arte e raramente vemos para além dela, a sua própria elaboração. Os documentários sobre arte procuram mostrar os artistas por detrás das obras e certas leituras das mesmas, tanto ao nível da técnica como ao nível da temática. Resultam sempre um pouco técnicos e frios esses documentários. Por seu lado, as séries e os filmes sobre os artistas são sempre romantizadas e intensas para poderem conquistar algum público. A arte em si, raramente aparece. Nos dois filmes que referi a arte encontra-se sobretudo num determinado ambiente e é lá que deve estar em primeiro lugar. Existe um impulso natural em direcção à perfeição, tanto por parte do personagem Vatel (interpretado por Gerdard Depardieu) que organiza um banquete no primeiro filme supracitado, como por parte da personagem feminina e principal do segundo filme mencionado, interpretada por Kate Winslet, personificando uma desenhadora de jardins. Caminham ambos pelos mesmo trilhos de uma arte efémera (um jardim é efémero porque está sempre em movimento). No primeiro filme a arte preenche todos os gestos do personagem principal, no segundo, a arte aparece como horizonte último onde reina mais do que o símbolo: a materialização celeste. Existem coisas que, de facto, não podem ser descritas (nem sequer num texto para um blogue) porque pertencem ao domínio do éter, da essência das coisas. Ninguém consegue descrever a essência de um perfume. Podemos dizer que é frutado, amadeirado, amendoado, etc… Mas ninguém descreve a essência das coisas. O éter é indiscritível, mas é apreensível. Às vezes dá-me vontade de me dedicar ao silêncio como consequência natural do indescritível e limitar-me a ver o mundo, silenciosamente, com os olhos alterados pelo facto de ter experimentado certas vivências que estão implantadas na alma. E tenho saudades de outra personagem que poderia ser: com vastas paisagens por recriar, com vastos banquetes para organizar. O ambiente deste planeta não permite, por agora, a expansão do que a arte é. Está demasiado desfigurado e as almas são demasiado jovens. E ninguém entende nada do que tento dizer. Para isso seria necessário o silêncio interior que escuta. Vivo silenciosamente magoada em busca do belo. Porque, como já escrevi, o belo, quando é Belo, encerra em si a Sabedoria e a Graça (podemos dizer que a Sabedoria é bela e cheia de Graça ou que a Graça é Sábia. No entanto, é mais fácil (e entende-se melhor) quando dizemos que a Beleza encerra em si a Sabedoria e a Graça. Cada vez me identifico menos com este planeta que está cada vez mais longe da sua essência. A pobreza interior grassa sem graça por todos os campos e confunde-se a capacidade de falar com a capacidade de criar com uma facilidade estonteante. E confundem-se todas as imagens com arte. Na verdade, já poucos conhecem o processo artístico em si mesmo, com aquilo que tem de cosmogonia. O cosmos passou a ser algo de utilitário, de qualquer coisa a explorar como se tratasse de “mais uma imagem”, quando o cosmo é o nosso lugar no mundo… daí que dantes o homem fosse entendido como microcosmos. Mesmo no mundo esotérico e filosófico encontrei, sobretudo, cabeças baralhadas com leituras sucessivas do que nunca entenderão. Não digo isto com um sentimento de superioridade, mas sim com um sentimento de inferioridade uma vez que eles são mais vistosos e maiores em número. Às vezes pergunto-me porque nasci assim, e porque me foram dadas determinadas experiências tão de acordo com a minha alma se não consigo comunicar o que seja. Mas talvez não seja para comunicar e seja para silenciar. Talvez tenha uma espécie de “complexo de serviço” que me diz que tudo o que me é dado tenho que dar. Mas sei que isso não é verdade. Não pode ser. É uma espécie de complexo provindo de uma cultura que se quer “caritativa” para que se possa “salvar” a “alma”. Na verdade, aquilo que a uns salva a alma a outros só pode dificultar essa suposta salvação. Ou antes, para alguns, é necessário o consolo de alguém que lhes diz que a sua alma “está salva” ou “a caminho da salvação”. Talvez seja esta a marca cultural mais funda aqui no Ocidente e, por ser uma marca cultural, é também uma marca “social”, o que não deixa de constituir um estorvo para quem nasceu para criar, ou seja, para sair da sociedade. Um criador nunca está em sociedade, está sempre no seu casulo a criar ou a chorar e a gritar quando não pode criar. Tenho saudades de certos ambientes que já não existem. Talvez seja uma tradicionalista inveterada e tenha nascido simplesmente assim: com memórias e saberes que não são desta época. Quanto aos filmes que mencionei, esses sim, mostram um determinado ambiente que reconheço. Reconheci logo. E fiquei contente. No entanto, nem sei se aqueles que realizaram os filmes souberem o que fizerem. Se calhar fizeram inconscientemente ou foram encaminhados por mãos divinas… como um sopro invisível. Mas sei que, quando Vatel coloca aquela flor azul, sabe perfeitamente o que está a fazer.

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