sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O fantasma da ópera


 

Não convém ser-se muito pesado numa altura em que uma piada pode ser dificilmente entendida por tudo ser demasiado leve à nossa volta. Aparentemente isto é um paradoxo. As piadas deveriam servir para atenuar a dor. Pelo menos é o que se costuma dizer. Mas parece que o que é leve se torna facilmente pesado e aquilo que é pesado dificilmente é entendido. Talvez pense demais quando nem deveria pensar numa altura em que o pensamento é levado a mal. Quando temos um percurso sem folclore dificilmente passamos à condição de existência. O privilégio de se ser sem existir é apanágio do mundo invisível. Foi quando me tornei fantasma que o mundo começou a ser uma plataforma quadrada, um pouco elevada e cujo acesso a ela se dava por meia dúzia de degraus de madeira que procuravam ranger o mínimo possível quando alguém os pisava. A transição entre a plateia e o palco e vice-versa deve ser silenciosa senão essa fronteira torna-se demasiado audível e, quando isso acontece, parece deixar de existir diferença entre a plateia e o palco. Não é isso que se deseja. Gostamos de fronteiras bem definidas para que possamos entrar noutro mundo, saltar entre mundos por entre um eclipse de tempo no qual deixamos de existir. Nesses degraus não existimos. Apenas somos qualquer coisa de invisível entre cá e lá, entre a plateia da realidade e o sonho real. Dito isto, o esoterismo não tem muito mais que se lhe diga. Há entidades de um lado e do outro que se podem cruzar ou não e que se olham mutuamente quando os projectores não batem demais nos olhos. Este fenómeno luminoso serve para ambos os lados porque a luz tanto pode ser considerada como qualquer coisa de divino que preenche por inteiro qualquer extâse como pode ser considerado um simples foco de luz sobre alguém, tornando esse alguém o centro das atenções, o centro dos centros da atenção dos humanos, um humano demasiado cheio de si o que constitui uma autêntica blasfémia para todas as religiões. Todas elas professam o apagamento. Um estranho apagamento face à luz, o que não deixa de ser um paradoxo. A luz brilha e apaga o ego e os seres tornam-se uns simples receptáculos de luz, formas passivas gozando a beatude. Como se pode constatar o espectáculo acabou na mesma proporção em que nunca acaba. É muito sério, isto. Não devemos rir em voz alta. Nem cantar acima do coro. A uniformidade eleva-se por si, não necessita de primeiras figuras. Necessita de uma espécie de limbo onde todos dão as mãos. Somos todos pavilhões multiusos e, uma das nossas vertentes é dar-mos as mãos uns aos outros para nos fundirmos no todo musical. Uma espécie de suicido colectivo para que o coro cante. Ai, a vida é tão complicada. Deveras. Foi quando me tronei fantasma que comecei a ver o por do sol com a máxima atenção. A vida de um fantasma tende a descomplicar-se. É uma tendência natural. Está aqui e ali e prega uns sustos. Diz umas coisas que fazem os outros fugir. Alguns malucos chamam por nós. Sentam-se numa mesa, dão as mãos e alteram a voz. Já lhes tentei dizer que não é necessário alterar a voz. Nem gritar. Não somos parvos nem surdos. Mas prosseguem contentes a chamar pelos seus fantasmas de estimação. Sentem-se realizados assim. Aquilo que mais me tem custado ultimamente é o facto de dizer piadas e de ninguém as entender. Logo agora numa altura em que as “stand up” (é um termo estrangeiro) estão aí e em força. Os que levam a vida a fazer rir têm o papel de chatear os que levam a vida a fazer chorar e vice versa. Pelo menos é isso que parece. Por outro lado, parece não haver motivo para rir e, nessas alturas, quando isso acontece somos os que levam a vida a fazer chorar. As piadas têm um feitio intratável. Nunca se sabe bem quando dão uma volta de cento e oitenta graus e se transformam em tragédia ou em piadas de mau gosto. O mau gosto. Esse está por aí e venceu. É por isso que o por do sol é um eixo de beleza. Há quem diga que é só isso. Beleza. Um por do sol é belo, ponto final. Não há mais nada. Quem pensa que a beleza só é bela engana-se, tem padrões lá dentro. Harmonias. Cores combinadas. Equilíbrios. Sons. Palavras, memórias, histórias. E para além disso tudo a beleza é bela. A cereja em cima do bolo. A beleza comunica por si. Só os desatentos ao belo não veem isso e dizem que a beleza por si mesma não chega. Chega e sobra. Sobra para tudo. A vida é complicada, mas a de um fantasma é menos. Consegue subir os degraus sem que mostre que existe. Normalmente são muito observadores. E sabem dançar. Nunca estão quietos. Dizem que isso acontece por serem almas atormentadas. Mas os mesmo se pode dizer de um poeta. A diferença é mínima. É uma questão corporal. Uns são mais encorpados do que outros. Os poetas são encorpados porque são incorporados por fantasmas. Nunca poderão ser santos. Mas contribuem para ela, essa coisa a que se chama santidade e que se limita a brilhar e a curar doenças. Um poeta é um doente que provoca doenças de alma. Atormenta as pessoas. Torna-as fantasmas. Quem sabe se fantasmas de si. A vida é muito complicada. Complicadíssima. Mas um fantasma é menos. Limita-se a andar por aí e prega sustos. Pode incorporar um poeta e passa a pregar sustos com as palavras. A poesia é um susto, bem vistas as coisas. Afantasma os seres. Adoenta-os. Depois vem o santo e cura. É o fim da poesia. Acaba-se tudo. Até a vida se acaba no momento da cura. Fica tudo parado. Em beatude incessante nas saias do Senhor a ouvir os pedidos de ajuda. A ouvi-los sem parar. Eternos. Normalmente são para curar doenças, esses pedidos. Sim, na sua grande percentagem é um pedido para que a vida possa continuar e para que o poeta continue a escrever poesia, de boa saúde, por mais anos e robusto. Um fantasma raramente tem piada como a vida que é complicadíssima, mas isso é porque um fantasma é um vivente que não vive na vida. Na vida de todos os dias. Na vida corriqueira. É, de facto um ser à parte. Embora muito corra por aí, pouco tem de corriqueiro. E diz piadas que ninguém entende.

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