quarta-feira, 7 de outubro de 2020

O Governador de Tunes


 

Hoje vou comprar um livro e fugir para dentro dele. A realidade é absurda demais. Os livros são abusrdíces consentidas e não me apetece consentir esta realidade. Nada é suficientemente suficiente, ao passo que nos livros, as palavras bastam por elas mesmas, são pequenas ilhotas que emergem do absurdo real. Gostava de ser elogiada pelo que faço. Não porque eu goste de ser elogiada, mas porque isso seria sintoma de bom gosto e de capacidade de leitura. Os parvos dos esoteristas nunca perceberam isso. Têm o umbigo nos olhos e por isso é que são todos tão competitivos. Como as empresas. Ontem a minha amiga disse-me que eu parecia o Eça de Queiroz no dia em que não sabia bem o que escrever para o jornal onde tinha uma coluna. Com pressa, acabou por desancar o Governador de Tunes, tema que não interessava a ninguém. Estou sempre a desancar o governador de Tunes. E agora ele nem sequer existe. Gosto de desancar pessoas. De as apanhar nas fraquezas e contradições. É um passatempo como qualquer outro e, como ninguém lê, não aquece nem arrefece aos desancados. É um hobbie como comer pastilhas elásticas que sejam apenas cor de rosa choque. O que é que se pode dizer deste lamaçal a não ser dizer que é um lamaçal? Estamos reduzidos ao ponto zero da crítica. A crítica construtiva é inútil numa altura em que está tudo a ser destruído. É uma espécie de nova crença, de uma nova religião, de uma nova língua como o esperanto. A crítica construtiva não passa disso e, como não passa disso, é new age, já nasceu estragada. Ando sempre a falar com Deus, mesmo quando não ando a falar com ele. O facto de universo responder é sempre uma resposta vaga. Também já escrevi sobre isso no primeiro número duma revista de Filosofia auto-denominada de Extravagante. As coincidências correm o risco de entrar no reino do absurdo. São uma espécie de teia. Ultimamente tenho preferido fugir para dentro dos livros. Têm capítulos e estão bem arranjados. São decentes. Abrimo-los e sublinhamo-los. Gosto de sublinhar os livros e depois de tirar apontamentos dos sublinhados. Acabo por ler duas vezes. Dá-me tempo assim para os digerir. Ler livros parece-me ser a única solução disponível quando o tédio se instala. Interpretá-los. Fazer associações de pensamento. Procurar. Procurar entender numa época de especializações. Houve uma cientista portuguesa que ganhou um prémio por ter feito um plástico transparente que pode ser aplicado numa série de coisas. Passou horas e dias e meses e anos da vida dela à procura do plástico. É preciso paciência. Admiro, sobretudo, a paciência dela. Eu não tinha. Gosto demasiado de pensamentos grandes, de grandes sinfonias, de grandes vias abertas ao céu. Fico quase ausente por causa disso. Vou ao céu, por causa disso. A um céu desconhecido dos aviões feitos de plásticos especiais. Onde não há plástico. Escrevo por descarga de consciência. Quando morremos há uma descarga de consciência. Dizem que ela ascende. Escrever é estar um pouco morto, a descarregar a consciência só que ao contrário. Materializamos as coisas em palavras. É uma morte de pernas para o ar, o que não deixa de ser engraçado. Escrever é engraçado. Quase lúdico. Só não é porque há leitores. Os leitores fazem com que essa parte lúdica desapareça. Começam logo a intervir, a pensar, a antever, a reflectir sobre o que se escreve. Até quando riem, riem a sério, nunca a brincar. É por isso que a realidade é tão absurda e que fujo para os livros. Para ver se me trono um pouco absurda também. À procura de qualquer coisa. Não é bem de qualquer coisa. É qualquer coisa de concreto que me retire do absurdo que sou. Parece uma pescadinha de rabo na boca, mas não é. As pescadinhas de rabo na boca são miméticas. São o símbolo do mimetismo. Do símio. É por isso que os revivalismos raramente trazem qualquer coisa de novo, de fresco e, quando o trazem, deixam de ser revivalismo e só têm duas hipóteses: ou trazem qualquer coisa de novo e isso é new age, ou estão inseridos da Tradição e isso é “out of age”. O velho Shakespeare tinha razão: “Ser ou não ser, eis a questão”. A grande questão. Se se for um criador essa questão não se coloca sequer. Essa questão é para os que não sabem o que fazer consigo mesmos. Uma espécie de quebra-cabeças. De passatempo. Quem havia de dizer que essa questão é irrelevante. Só mesmo um grande criador para a colocar.

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