Hoje vou comprar um livro e fugir para dentro dele. A realidade
é absurda demais. Os livros são abusrdíces consentidas e não me apetece consentir
esta realidade. Nada é suficientemente suficiente, ao passo que nos livros, as
palavras bastam por elas mesmas, são pequenas ilhotas que emergem do absurdo
real. Gostava de ser elogiada pelo que faço. Não porque eu goste de ser elogiada,
mas porque isso seria sintoma de bom gosto e de capacidade de leitura. Os parvos
dos esoteristas nunca perceberam isso. Têm o umbigo nos olhos e por isso é que
são todos tão competitivos. Como as empresas. Ontem a minha amiga disse-me que eu
parecia o Eça de Queiroz no dia em que não sabia bem o que escrever para o jornal
onde tinha uma coluna. Com pressa, acabou por desancar o Governador de Tunes,
tema que não interessava a ninguém. Estou sempre a desancar o governador de
Tunes. E agora ele nem sequer existe. Gosto de desancar pessoas. De as apanhar
nas fraquezas e contradições. É um passatempo como qualquer outro e, como
ninguém lê, não aquece nem arrefece aos desancados. É um hobbie como comer
pastilhas elásticas que sejam apenas cor de rosa choque. O que é que se pode
dizer deste lamaçal a não ser dizer que é um lamaçal? Estamos reduzidos ao
ponto zero da crítica. A crítica construtiva é inútil numa altura em que está
tudo a ser destruído. É uma espécie de nova crença, de uma nova religião, de
uma nova língua como o esperanto. A crítica construtiva não passa disso e, como
não passa disso, é new age, já nasceu estragada. Ando sempre a falar com Deus,
mesmo quando não ando a falar com ele. O facto de universo responder é sempre
uma resposta vaga. Também já escrevi sobre isso no primeiro número duma revista
de Filosofia auto-denominada de Extravagante. As coincidências correm o risco
de entrar no reino do absurdo. São uma espécie de teia. Ultimamente tenho
preferido fugir para dentro dos livros. Têm capítulos e estão bem arranjados. São
decentes. Abrimo-los e sublinhamo-los. Gosto de sublinhar os livros e depois de
tirar apontamentos dos sublinhados. Acabo por ler duas vezes. Dá-me tempo assim
para os digerir. Ler livros parece-me ser a única solução disponível quando o
tédio se instala. Interpretá-los. Fazer associações de pensamento. Procurar. Procurar
entender numa época de especializações. Houve uma cientista portuguesa que
ganhou um prémio por ter feito um plástico transparente que pode ser aplicado
numa série de coisas. Passou horas e dias e meses e anos da vida dela à procura
do plástico. É preciso paciência. Admiro, sobretudo, a paciência dela. Eu não
tinha. Gosto demasiado de pensamentos grandes, de grandes sinfonias, de grandes
vias abertas ao céu. Fico quase ausente por causa disso. Vou ao céu, por causa
disso. A um céu desconhecido dos aviões feitos de plásticos especiais. Onde não
há plástico. Escrevo por descarga de consciência. Quando morremos há uma
descarga de consciência. Dizem que ela ascende. Escrever é estar um pouco
morto, a descarregar a consciência só que ao contrário. Materializamos as
coisas em palavras. É uma morte de pernas para o ar, o que não deixa de ser
engraçado. Escrever é engraçado. Quase lúdico. Só não é porque há leitores. Os leitores
fazem com que essa parte lúdica desapareça. Começam logo a intervir, a pensar,
a antever, a reflectir sobre o que se escreve. Até quando riem, riem a sério, nunca
a brincar. É por isso que a realidade é tão absurda e que fujo para os livros. Para
ver se me trono um pouco absurda também. À procura de qualquer coisa. Não é bem
de qualquer coisa. É qualquer coisa de concreto que me retire do absurdo que
sou. Parece uma pescadinha de rabo na boca, mas não é. As pescadinhas de rabo na
boca são miméticas. São o símbolo do mimetismo. Do símio. É por isso que os
revivalismos raramente trazem qualquer coisa de novo, de fresco e, quando o
trazem, deixam de ser revivalismo e só têm duas hipóteses: ou trazem qualquer
coisa de novo e isso é new age, ou estão inseridos da Tradição e isso é “out of
age”. O velho Shakespeare tinha razão: “Ser ou não ser, eis a questão”. A grande
questão. Se se for um criador essa questão não se coloca sequer. Essa questão é
para os que não sabem o que fazer consigo mesmos. Uma espécie de
quebra-cabeças. De passatempo. Quem havia de dizer que essa questão é
irrelevante. Só mesmo um grande criador para a colocar.
quarta-feira, 7 de outubro de 2020
O Governador de Tunes
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