Não é só a classe política que vive num mundo à parte.
Também os pensadores, os que procuram a sabedoria (habitualmente apelidados de
filósofos) vivem nos mais destacados casulos pendurados na árvore do
conhecimento. Assumem formas gregárias quando querem divulgar o pensamento ou a
sua posição perante o mundo, e depressa retornam aos casulos onde vivem tecendo
as suas asas. Estamos numa queda de civilização acentuada e não temos consciência
do grau do ângulo de declive porque, enquanto caímos, não fazemos grandes medições
e o conforto facilmente se confunde com evolução. Ora os homens não evoluem,
passam apenas de um estado para o outro onde certas características passam a
estar mais acentuadas. Quando não deixam o mesmo estado estão simplesmente no
mesmo estado rodeados de um cenário mais ou menos confortável que, esse sim,
vai mudando e pode parecer mais evoluído. O sofá de hoje é mais confortável do
que o sofá de ontem, mas não deixa de ser um sofá. O lixo planetário, a poluição
maciça são o sofá que parece confortável, mas que talvez não o seja porque
nunca houve mudança de estado efectivo no homem. Neste estado, somos
efectivamente parecidos com aquilo que nos rodeia. Neste estado, o que somos,
confunde-se com o cenário. Daí que seja tão fácil confundir pessoas com quase
nada, com números, cadeiras, lugares, assentos, posições no espaço. Esvaziar as
pessoas é tremendamente fácil numa altura em que já se encontram vazias e o
conhecimento se tornou numa espécie de caça ao facto que é sempre contabilizável
e ao mecanismo causa-efeito, que também o é. Como dizem os chineses “se
funciona” é bom, mesmo sabendo que o mundo não se reduz ao funcionalismo. É desta
forma que encontramos termos como “famílias funcionais” ou “pessoas resolvidas”.
O grau de exigência é nenhum, mas muito face ao objectivo: equações resolvidas
que possam funcionar no mundo real. E não se passa disto e é este o cenário de
sonho criado colectivamente. Termos como a “libertação” estão completamente
fora do vocabulário porque não é esse o objectivo. O objectivo é uma equação matemática
que funcione em direcção, presume-se, a uma felicidade contínua arrastada no
tempo, sendo a felicidade altamente volátil e contextualizável, ou seja,
extraordinariamente pouco livre relativamente ao contexto. A liberdade é um
conceito político que se confunde com o de felicidade, a libertação, por seu lado,
é um conceito vindo da metafísica (é mais do que um conceito, é um verdadeiro
estado). Nesta queda da civilização que todos vivemos e a que todos assistimos,
esses conceitos de felicidade aproximam-se cada vez mais daquilo que são os
fantasmas “mal resolvidos” (como se diz agora) de cada individuo. Quando esses
fantasmas coincidem nas dores temos um grupo em funcionamento. Político ou não.
Os homens em queda unem-se conforme as dores. É por isso que encontramos tantas
associações especializadas em determinadas dores. As associações das maleitas
são uma espécie de um membro extra que cresce em cada um dos seres unidos em
redor da fogueira da sua dor. Essa dor, é algo que funciona mal face ao
conjunto da maquinaria. Os seres são máquinas, disso não restam dúvidas. Programáveis,
direcionáveis, manipuláveis, substituíveis enquanto o sentimentalismo mais
rasteiro deixa cair uma lágrima de crocodilo e diz que não, que “ninguém é substituível”,
e depressa volta a rir e a ser feliz, noutro contexto mais propicio muitas
vezes só possível com o apagamento da memória, uma tábua rasa que invade todos
os planos necessários para que a felicidade seja readquirida, como direito,
aliás. Todos os homens têm direito a ser felizes, nenhum tem direito à
libertação e isto prende-se com a noção de centro que está sempre ausente
quando a sociedade funcional e o individuo funcional trabalham um em função do
outro. Quanto muito a função é o centro, a pele da própria pele, uma superfície
tão superficial que nem chega a separar as águas superiores das inferiores, ou,
por outras palavras, a abrir o ovo do mundo em duas partes para que um novo
estado seja possível. Até mesmo, as ideologias de direita que se dizem
conservadoras, quando falam no “direito à vida” falam disso com a tónica
funcional que a vida adquiriu numa espécie de jogo binário: vida/morte como se
fossem opostos, quando na realidade não são. Se assim não fosse, não existia o
culto dos antepassados… A palavra
nascimento está ausente, a palavra renascer ainda mais ausente. A vida é
concedida, o nascimento é um milagre e daí para a frente a felicidade parece
tornar-se o culminar de uma máquina bem lubrificada e em pleno funcionamento em
direcção a “momentos felizes” que se querem o mais juntos possível no tempo e
durante muito tempo, numa contabilização desenfreada cujo número absoluto é
impossível de alcançar. “Básicamente”, como agora se diz, tudo se resume a esta
“base”. A “base” é o pico da montanha. O máximo que a vista consegue alcançar. Sendo
estes os “horizontes”, nem os degraus da escada são visíveis, quanto mais
subi-la. E chegámos ao ponto em que nem a própria queda existe. Está-se na
base, confortavelmente, com tudo aquilo que o conforto implica: o sofá de hoje
é mais confortável do que o de ontem, o planeta de hoje é menos confortável do
que o de ontem. Vive-se numa roda viva, numa pescadinha de rabo na boca, sem
que se renasça porque não há “onde” nem “quando” renascer. Talvez porque nunca se tenha sequer nascido
como ser humano e sejamos vistos como algo dotado de vida funcional em função
de uma sociedade funcional que tem de funcionar relativamente a nós. Mais rasteiro
do que isto é impossível. E doloroso também. Não admira que existam tantas
associações para as disfunções. Até os governos se tornaram numa associação
para o funcionamento da sociedade disfuncional. Basta ver a quantidade de
departamentos. E das reabilitações, termo que tanto dá para as coisas como para
as pessoas porque as pessoas são coisas e as coisas são pessoas: o animismo
puro e duro está de volta com o mundo virtual. Renascer é um milagre a mais. Nem um
nascimento, quanto mais dois.
sábado, 3 de outubro de 2020
Renascer
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Li, sim.
ResponderEliminarQue comentário tão estranho. Parece que o texto pergunta se leste.
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