sábado, 3 de outubro de 2020

Renascer


 

Não é só a classe política que vive num mundo à parte. Também os pensadores, os que procuram a sabedoria (habitualmente apelidados de filósofos) vivem nos mais destacados casulos pendurados na árvore do conhecimento. Assumem formas gregárias quando querem divulgar o pensamento ou a sua posição perante o mundo, e depressa retornam aos casulos onde vivem tecendo as suas asas. Estamos numa queda de civilização acentuada e não temos consciência do grau do ângulo de declive porque, enquanto caímos, não fazemos grandes medições e o conforto facilmente se confunde com evolução. Ora os homens não evoluem, passam apenas de um estado para o outro onde certas características passam a estar mais acentuadas. Quando não deixam o mesmo estado estão simplesmente no mesmo estado rodeados de um cenário mais ou menos confortável que, esse sim, vai mudando e pode parecer mais evoluído. O sofá de hoje é mais confortável do que o sofá de ontem, mas não deixa de ser um sofá. O lixo planetário, a poluição maciça são o sofá que parece confortável, mas que talvez não o seja porque nunca houve mudança de estado efectivo no homem. Neste estado, somos efectivamente parecidos com aquilo que nos rodeia. Neste estado, o que somos, confunde-se com o cenário. Daí que seja tão fácil confundir pessoas com quase nada, com números, cadeiras, lugares, assentos, posições no espaço. Esvaziar as pessoas é tremendamente fácil numa altura em que já se encontram vazias e o conhecimento se tornou numa espécie de caça ao facto que é sempre contabilizável e ao mecanismo causa-efeito, que também o é. Como dizem os chineses “se funciona” é bom, mesmo sabendo que o mundo não se reduz ao funcionalismo. É desta forma que encontramos termos como “famílias funcionais” ou “pessoas resolvidas”. O grau de exigência é nenhum, mas muito face ao objectivo: equações resolvidas que possam funcionar no mundo real. E não se passa disto e é este o cenário de sonho criado colectivamente. Termos como a “libertação” estão completamente fora do vocabulário porque não é esse o objectivo. O objectivo é uma equação matemática que funcione em direcção, presume-se, a uma felicidade contínua arrastada no tempo, sendo a felicidade altamente volátil e contextualizável, ou seja, extraordinariamente pouco livre relativamente ao contexto. A liberdade é um conceito político que se confunde com o de felicidade, a libertação, por seu lado, é um conceito vindo da metafísica (é mais do que um conceito, é um verdadeiro estado). Nesta queda da civilização que todos vivemos e a que todos assistimos, esses conceitos de felicidade aproximam-se cada vez mais daquilo que são os fantasmas “mal resolvidos” (como se diz agora) de cada individuo. Quando esses fantasmas coincidem nas dores temos um grupo em funcionamento. Político ou não. Os homens em queda unem-se conforme as dores. É por isso que encontramos tantas associações especializadas em determinadas dores. As associações das maleitas são uma espécie de um membro extra que cresce em cada um dos seres unidos em redor da fogueira da sua dor. Essa dor, é algo que funciona mal face ao conjunto da maquinaria. Os seres são máquinas, disso não restam dúvidas. Programáveis, direcionáveis, manipuláveis, substituíveis enquanto o sentimentalismo mais rasteiro deixa cair uma lágrima de crocodilo e diz que não, que “ninguém é substituível”, e depressa volta a rir e a ser feliz, noutro contexto mais propicio muitas vezes só possível com o apagamento da memória, uma tábua rasa que invade todos os planos necessários para que a felicidade seja readquirida, como direito, aliás. Todos os homens têm direito a ser felizes, nenhum tem direito à libertação e isto prende-se com a noção de centro que está sempre ausente quando a sociedade funcional e o individuo funcional trabalham um em função do outro. Quanto muito a função é o centro, a pele da própria pele, uma superfície tão superficial que nem chega a separar as águas superiores das inferiores, ou, por outras palavras, a abrir o ovo do mundo em duas partes para que um novo estado seja possível. Até mesmo, as ideologias de direita que se dizem conservadoras, quando falam no “direito à vida” falam disso com a tónica funcional que a vida adquiriu numa espécie de jogo binário: vida/morte como se fossem opostos, quando na realidade não são. Se assim não fosse, não existia o culto dos antepassados…  A palavra nascimento está ausente, a palavra renascer ainda mais ausente. A vida é concedida, o nascimento é um milagre e daí para a frente a felicidade parece tornar-se o culminar de uma máquina bem lubrificada e em pleno funcionamento em direcção a “momentos felizes” que se querem o mais juntos possível no tempo e durante muito tempo, numa contabilização desenfreada cujo número absoluto é impossível de alcançar. “Básicamente”, como agora se diz, tudo se resume a esta “base”. A “base” é o pico da montanha. O máximo que a vista consegue alcançar. Sendo estes os “horizontes”, nem os degraus da escada são visíveis, quanto mais subi-la. E chegámos ao ponto em que nem a própria queda existe. Está-se na base, confortavelmente, com tudo aquilo que o conforto implica: o sofá de hoje é mais confortável do que o de ontem, o planeta de hoje é menos confortável do que o de ontem. Vive-se numa roda viva, numa pescadinha de rabo na boca, sem que se renasça porque não há “onde” nem “quando” renascer.  Talvez porque nunca se tenha sequer nascido como ser humano e sejamos vistos como algo dotado de vida funcional em função de uma sociedade funcional que tem de funcionar relativamente a nós. Mais rasteiro do que isto é impossível. E doloroso também. Não admira que existam tantas associações para as disfunções. Até os governos se tornaram numa associação para o funcionamento da sociedade disfuncional. Basta ver a quantidade de departamentos. E das reabilitações, termo que tanto dá para as coisas como para as pessoas porque as pessoas são coisas e as coisas são pessoas: o animismo puro e duro está de volta com o mundo virtual.  Renascer é um milagre a mais. Nem um nascimento, quanto mais dois.

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