domingo, 19 de maio de 2019

Lição de António Quadros

Pintura de Cynthia Guimarães Taveira intitulada
 "A Revelação de Téthys"  (técnica mista 120x80 cm) 
doada à Fundação Lusíada e
 para publicação na obra de Abel Lacerda
 "Re-Velando Os Lusíadas", Ed. Trás-os-Montes e
Alto Douro-Atlântida Nova, 2017

A lição de António Quadros é um conjunto de parágrafos retirados das notas introdutórias da sua obra "Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa", Edições Átrio, Lisboa, 1992, págs. 10 e 11 e diz assim:
     "Um livro (como um quadro ou um projecto arquitectónico) começa por ser, não uma carpintaria mais ou menos hábil, mas uma estrutura complexa, cujo santo dos santos é o seu dizer secreto, o seu simbolismo. É esse simbolismo que lhe confere o sentido e o faz mais do que um objecto estético pouco ou muito conseguido. Não é óbvio, tal simbolismo, mas se o leitor se aproximar, o desvelar, o fruir, poderá então acompanhar o autor na sua apaixonante procura, que é como uma peregrinação que revelará muitas surpresas.
(…) Mas esta função simbólica da estrutura cultural de uma obra só se encontra em autores que sejam grandes espíritos; nos pequenos o que conta é a anedota, o pormenor, a ilustração, o tique da época.
     Verdadeiramente o que mais nos interessa no imaginário pessoal destas estruturas simbólicas, que são as obras literárias, é o seu diálogo com o imaginário mais universal das estruturas culturais dos povos em que enraízam, das paidéias que os formaram: a matriz secular, uma herança tradicional, uma língua de comunicação e de expressão, um acervo de palavras significativas e dificilmente traduzíveis, um projecto de civilização.
      É o diálogo da micro-estrutura com a macro-estrutura, diálogo que constitui a vida profunda, ante-pedagógica, ante-política, ante-cultural da comunidade.
      Alguns grandes escritores e artistas mergulham neste húmus inconsciente e espontâneo para nele se alimentarem e para a ele doarem a sua imaginação renovadora e o seu imaginário próprio. São os que dão vida, alento e calor ao seu povo; são os que descobrem todos os dias a riqueza inesgotável do imaginário que ele trouxe da sua viagem pelo tempo: mitos, arquétipos, modelos, uma vivência do sagrado, uma vivência dos padecimentos do sagrado, o sentido do seu "estar no mundo" para lá de cada época e, como enfim, assumiram a herança de um imaginário, não para o receber estaticamente, mas para o dinamizar e renovar.
      Outros, por porém, que menos nos interessam neste livro, reforçam o negativo, fazem por desconhecer o trigo e arvoram triunfalmente o joio. Que têm uma função dialéctica, diz-se. Seja, mas não vamos perder tempo com espíritos pequenos, porque a universos mentais pobres correspondem literaturas pobres e irremediavelmente passageiras, sejam quais forem os aplausos do momento. Aliás, olhemo-las só por uns instantes e logo se descobre o aleatório, o sofístico, o sensacionalista, a marca do trauma não sublimado."


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